A vida toda eu achei que meu pai não me entendia. Nunca o culpei por isso: eu era esquisito mesmo. Gostava de ler, era introspectivo, tímido, sensível, delicado. Não levava jeito nenhum para esportes nem gostava das brincadeiras brutas dos meninos. Preferia a companhia das meninas à dos meninos, mas do que eu gostava mesmo era de ficar sozinho. Quer dizer: nada do que uma família da década de 1970 esperava de um primeiro filho homem. Depois veio minha irmã, e aí meu irmão, que em tudo correspondia ao arquétipo do moleque. Finalmente, eu achava, meu pai tinha o filho que tanto queria. Eu podia continuar sendo o filhinho da mamãe.
Foi preciso eu vir a Monte Santo e escutar uma história da infância do meu pai para tudo isso virar de cabeça pra baixo. A Romana, prima do meu pai, me contou segundo contado a ela por Dona Silvana, minha avó. Diz que Dona Silvana saía de casa deixando os 9 filhos, e os proibia de sair enquanto ela estivesse fora. Conhecendo as crias, porém, se escondia em algum ponto da estrada e ficava de olho. Logo vinham as pestes. Ela gritava, “NÃO FALEI QUE NÃO ERA PRA SAIR” e voltava para bater em todos. Ou melhor: em quase todos. Um dos filhos, o terceiro, era obediente. Ela tinha proibido todo mundo de sair, então ele não saía. E dizia “eu não fui, mamãe, porque sou obediente”.
Esse, claro, era meu pai. O filhinho da mamãe original.
Hoje, voltando de Juazeiro para Monte Santo, vim pensando nisso. Lembrei de uma vez em que, depois de uma longa caminhada, eu reclamei de cansaço. Meu pai riu e falou: “Tá sem forças? Chute aquele limão ali”. Eu fui chutar o limão caído na rua e fiz palhaçada, fingi que não conseguia. E ele: “Eita, nem parece meu filho! Parece filho do Lúcio!”. Lúcio é o segundo filho de Dona Silvana. Quietão, o último da família a casar, gostava mais de ler do que de conversar com os outros. Sempre gostei muito do Lúcio, mas meu pai me dizer aquilo doeu de um jeito esquisito. Eu sabia que era só brincadeira, coisa à toa. Mas doeu, que que eu vou fazer? Sou sensível.
Mas na estrada, voltando de Juazeiro, percebi: não é que meu pai não me conhecesse, não me entendesse. Conhecia e entendia até demais, e sabia como eu ia sofrer na vida se continuasse sendo tão delicado, quieto, sensível, todas essas coisas pouco masculinas. Ele não queria me excluir: queria me proteger.
Isso estava na cara desde sempre. Meu pai se comovia quando via o arco-íris depois da chuva. Gostava da beleza das plantas e dos passarinhos, dos cachorros e dos bebês. Era delicado, ele também, e nem a roça nem a ferocidade de São Paulo conseguiram calejar aquela alma. Mas a que custo? Nunca vou saber, só sei que ele não queria que eu sofresse.
Meu pai veio a Monte Santo em agosto de 2009. Romana me contou que ele foi ver o milharal na roça do Leôncio, primo dele, e ficou encantado com o tamanho dos pés de milho, a quantidade de espigas. “Leôncio, como você conseguiu fazer isso?”, ele se admirava. Depois que todos voltaram pra casa, ele ainda ficou um tempão lá sozinho, quieto, só admirando o milho. Depois que voltaram à casa da Romana, ele ficou muito tempo com o olhar longe. No que ele pensava? No milho? Na infância? Em mim? Sei lá. Só sei que uma hora ele se levantou, suspirou e disse: “É… Infelizmente tenho que ir”. A Romana fica comovida quando lembra: “Parecia que ele estava se despedindo”.
Ele morreu 14 meses depois. 14 anos depois, ainda estou aqui tentando entender meu pai. E agora penso que talvez não haja nada para entender. Que talvez eu só precise sentir por ele o amor que ele teve por mim e eu não soube ver, porque estava muito preocupado em entender as coisas.