E aí que no sábado eu e Ana Cartola passamos na casa dos meus pais e fomos todos ao Ca’d’Oro para ver os lotes do leilão. “Eu não acredito que isso está acontecendo”, disse Seu Lindauro ao ver todos aqueles objetos que fizeram parte da vida dele amontoados por todo canto, com pedaços de papel informando o número de cada lote. “Parece um sonho.” Dona Ana, minha mãe, chorou ao ver os quadros. Dona Antonieta, esposa de Seu Fabrizio Guzzoni, era quem cuidava dos quadros. Minha mãe gostava de Dona Antonieta. Gostava da família toda, na verdade. “Deus dá dinheiro pro Seu Fabrizio”, ela me explicou uma vez, “e Seu Fabrizio dá dinheiro para o seu pai”. Eu imaginava o Seu Fabrizio saindo do escritório de Deus com aqueles sacos de dinheiro de desenho animado, dividindo tudo em pacotinhos e distribuindo aos funcionários.
Bom. Chegamos ao hotel, tinha fila. Pessoas esperavam sentadas em poltronas de couro dispostas de quatro em quatro em volta de mesas de madeira. Poltronas e mesas estavam à venda também. A espera era longa, então fomos olhar o lugar onde estavam expostos alguns dos quadros. Meu pai parou na frente de um deles e comentou:
— Esse quadro aqui tem uma história. Uma vez que o Figueiredo se hospedou aqui…
— Seu Lindauro, tá se escondendo da gente?
Era um funcionário do hotel que chegou para interromper a históra. Os Guzzoni pediram a alguns funcionários que continuassem por lá até o fim do leilão. Meu pai o cumprimentou, nos apresentou, sumiu. Quando fui ver, ele já estava atrás do balcão da recepção. Dava informações aos visitantes e tudo, estava no ambiente dele. Outros funcionários chegaram para cumprimentá-lo. Anotei o lote do quadro que tinha a história do Figueiredo para dar um lance mais tarde. Só depois descobri que o quadro a que meu pai se referia não era aquele. A história foi assim: o presidente estava no hotel, faltou luz. Meu pai foi consertar o disjuntor, mas a imprensa estava ali por perto. Ele teve o cuidado de ficar de costas para as câmeras, mas mesmo assim apareceu na edição do Jornal Nacional daquela noite.
— Mas e o quadro, pai? O quadro apareceu também, você estava do lado do quadro, é isso?
— Não. Eu estava em frente ao quadro, vendo o disjuntor que caiu.
Levei um tempo para entender que ele estava falando do quadro de luz. Voltei para o lugar onde ele tinha começado a história e lá estava o quadro de luz na parede, logo acima da pintura de praia com coqueiros. Só meu pai é capaz de falar em quadro numa sala cheia de quadros e esperar que a gente entenda que ele está falando do quadro de luz. Eu já estava cansado dos quadros, ainda bem que chegou nossa vez de fazer o tour pelo hotel. “Vocês deram sorte, vão ser acompanhados pelo Fabrizio”, disse a recepcionista, referindo-se ao neto de Seu Guzzoni. “Ele é da família e tem esse sorriso lindo.” Ou ela estava muito a fim do cara ou achou que eu tinha cara de bicha.
Fabrizio nos acompanhou pelo restaurante, por alguns andares de apartamentos, passamos pela biblioteca. A biblioteca, meu pai me contou mais tarde, tinha importância estratégica para o hotel: quando um hóspede morria, levavam o corpo por dentro da biblioteca, que tinha uma saída para a rua Caio Prado. Assim se evitava o escândalo de um cadáver saindo pela entrada principal, na Rua Augusta — o que provavelmente não seria muito bom para os negócios. Uma vez uma mulher se jogou de uma janela. A camareira chamou meu pai quando a mulher ameaçava se jogar; quando ele chegou, era tarde. Um outro sujeito estava numa reunião. Foi ao banheiro e por lá ficou. Seu Lindauro ajudou a carregar o corpo.
“Se meu avô pudesse escolher um lugar pra assombrar, não ia escolher a casa dele”, comentou Fabrizio Neto enquanto passávamos pelo restaurante. “Ia escolher o hotel, tenho certeza”. Olhei em volta para ver se notava alguma manifestação sobrenatural. Se o fantasma estava por lá, achou melhor se fazer de besta. O pai do Fabrizio, Eugênio Guzzoni, morreu também. Era um bom sujeito. Minha mãe contou ao Fabrizio que meu pai estava trabalhando no dia em que minha irmã nasceu. Quando o Eugênio soube, botou ele pra correr. “A família primeiro, Lindauro.”
Andamos mais um pouco, anotei os números de lote dos produtos que me interessavam. Dei alguns lances, todos já foram superados. Vamos ver se até o final do leilão eu consigo arrematar alguma coisa.
* * *
Na volta para casa, meu pai me explicou a cronologia da família no Ca’d’Oro. O primeiro cidadão de Monte Santo a trabalhar para Fabrizio Guzzoni foi um amigo de meu avô chamado Ático Alves de Souza. O Ático começou como ajudante de garçom no primeiro restaurante Ca’d’Oro em 1953. Deve ter feito uma propaganda danada lá na Bahia, porque em 1956 meu avô, dois irmãos dele e um amigo da família vieram para São Paulo. Meu avô trabalhou um ano e meio no hotel. Valia a pena, mas ele tinha nove filhos para sustentar e não tinha como trazer todos para cá. Então voltou para a Bahia e a história acabaria por aí. Mas o filho mais velho resolveu vir para São Paulo no começo da década de 60, e foi logo trabalhar no Ca’d’Oro. Meu pai veio em 1963 e foi trabalhar numa padaria na Rego Freitas. Ficou só um mês no emprego. Meu tio comentou no hotel que havia outro membro da família morando em São Paulo. “Seu irmão tá morando aqui?”, comentou alguém. “Traz ele pra cá logo!”
Meu pai trabalhou um ano no Ca’d’Oro, até o irmão mais velho decidir voltar para Monte Santo. Ele foi junto, mas ficou pouco tempo: achou a cidade pequena demais, sem perspectivas e voltou para São Paulo. Tinha emprego garantido. Nos anos seguintes, os irmãos foram saindo de Monte Santo direto para a folha de pagamento do Ca’d’Oro. O Ático foi promovido a garçom, depois a maître. Hoje, aos 83 anos, ele é maître do Fasano.
Odeio chorar e me emocionar logo pela manhã…
EMOÇÃO!
Poisé Corélio….
Estranho esse negócio de ver como a vida da gente dá voltas né? Em um dia, a coisa parece tudo bem, no outro, viram memórias….
Vew, mais uma coisa (sei que vc não tem nada com isso, maas…): Acompanho o Blog desde quando Caim e Abel eram uma dupla sertaneja, e vi o seu (só um pouquinho) crescimento como escritor e pessoa. Responda uma pergunta pra minha pesquisa de campo: Vale a pena mesmo se enfiar no casamento?
(Eu disse que vc não tinha muito a ver, maas…)
Olá !
Sou um descendente da família Guzzoni, não exatamente do pessoal do C’adoro.
Minha família veio da região de Montecatini na Toscana Itália. Meu tetra-avô Sr Luigi Guzzoni fundou o primeiro hotel internacional Guzzoni no Brasil, isto foi a muito tempo atrás, em 1900 na cidade de Ponta Grossa no Paraná, naquela época esta cidade era a maior do estado, isto devido ao entroncamento ferroviário que ligava São Paulo a todo Sul do Brasil.
Mas antes disto teve algumas passagens interessantes, em 1888 durante a viagem do imperador Dom Pedro II, o chef do imperador ficou muito doente e quando chegaram na cidade de Ponta Grossa convidaram o Guzzoni para seguir a viagem como chef do imperador. O Hotel internacional Guzzoni ficou aberto até 1914.
Estou escrevendo pois também fui ao hotel no sábado e tenho acompanhado dia a dia sobre o hotel pois é muito triste um império construído com muito esforço cair ao chão, mas tenho certeza que logo receberemos novas e boas noticias sobre este ícone da cidade de São Paulo, acredito que lá não será mais o local pois a cidade mudou muito e o Hotel tem que acompanhar.
As historias que você tem colocado no seu blog é bem interessante, acho que deve absorver o maximo de informação de seu pai e quem sabe até escrever um livro, pois acredito que deve saber de muita historia que aconteceu lá dentro.
Desejo que continue o seu trabalho e se for escrever o livro tenho certeza que este livro terá um final feliz e não deixe de mencionar sobre o 1° hotel de luxo Guzzoni, se quiser vou buscar mais informações.
Grande abraço
Guzzoni
Conta Mais!!!!
Marco,
Saiu uma bela reportagem sobre o “Seu” Ático na Wish Report.
A foto dele:
http://www.flickr.com/photos/ruimendes/4148289861/
Abs
Muuuuuuuuuuuuito bom!!!
Memórias de família e dessa bela história…pena que com final triste.
Repito a dica (ou pedido) escreva um livro sobre isso.
Marco Aurelio
Fiquei muito contente em poder ler seus comentarios sobre o Ca’d’Oro.
Realmente agora só falta escrever o livro “Ca’d’oro a Sua Casa Fora de Casa”. É o que representava o Ca’d’Oro para seus hospedes, clientes, amigos e funcionarios, sempre tratados com muito carinho e respeito pela familia Guzzoni.
Felizmente tive o privilegio de poder conviver durante 25 anos com esta equipe.
Com certeza o Lindauro tem muitas memorias que podera compartilhar.
Escreva
Claides
Olá !!!
andei reparando que muita gente curte este lugar, e como você tem contato com o Fabrizio neto, pede alguns arquivos como fotos, recortes de jornais, coisas deste tipo, ou até mesmo a pagina antiga do site do Cadoro, lembro bem dela, não lembro exatamente quando saiu do ar, lebro do site do ano 2001, era com muitas fotos antigas, fotos dos famosos que naquele local fizeram parte.
Queremos compartilhar isto, assim criando uma comunidade de pessoas que curtem aquele local, e daqui 3 anos vamos nos encontrar na nova casa CADORO.
ahh !!! meu amigo,
como vc tem contato com o neto Guzzoni, vê se tem fotos dos hoteis da italia, e que fim levou o hotel na Italia e Suiça.
abraço
oie !
esta não contei ainda, durante a ultima semana do CADORO, enviei e-mail para Band News FM, pedindo para que o Wessel falasse um pouco dos pratos do CADORO e assim automaticamente convidado o pessoal de São Paulo para participar do ultimo jantar no CADORO.
Fiz minha parte. lembro que durante aquela tarde de sexta-feira de dezembro no programa ‘pitada de gastronomia’ às 18 hs o Wessel falava com Boris Casoy, contava que o CADORO foi um icone para gastronomia da São Paulo, pois pouco sabia da Gastronomia do norte da Italia, tivemos a introdução do Carpaccio, hoje é bem tradicional em São Paulo e tambem do Bollito misto, que é um cozido com varias carnes e mostarda.
Se for fazer aquele livro coloca algumas das 150 receitas que Aurelio Guzzoni tem arquivadas.
adorei a história
É, o Wessel sempre foi muito generoso com o Ca’d’Oro. Já o Boris Casoy, que perdeu a majestade no último dia de 2009, deixou uma dedicatória hilária no livro de ouro do hotel: Ao escrever o nome Ca’d’Oro, errou na complicada disposição de letras e apóstrofes da marca, e ao lado escreveu: “errei o nome, é uma vergonha”. Não há dúvidas que aos poucos o pessoal do hotel irá compartilhar na rede todo conteúdo histórico que passou por lá.