Foi Dona Nilda quem cantou a bola no Twitter: o Grand Hotel Ca’d’Oro, que fechou em dezembro, está leiloando de tudo: móveis, utensílios, objetos de decoração, máquinas — tudo. Isso é meio triste para todo mundo em São Paulo, eu acho. O hotel tinha lá sua importância pra cidade.
Fabrizio Guzzoni, o fundador, vinha de uma família de Bergamo, norte da Itália, que estava no negócio de hotelaria desde o século XIX. O hotel teve sua primeira encarnação como restaurante em 1953 e virou hotel em 1956. Tanto o hotel quanto o restaurante viraram símbolos de tudo o que havia de sofisticado em São Paulo. O Ca’d’Oro, parece, foi o primeiro cinco estrelas da cidade. Todo mundo se hospedava lá: o rei da Espanha, o presidente Figueiredo, o Raul Seixas. Dez anos depois da inauguração do primeiro restaurante, um baiano de 19 anos chamado Lindauro entrou para a folha de pagamento de Fabrizio Guzzoni como faxineiro. Lindauro, vocês sabem, é meu pai.
Meu pai foi faxineiro, almoxarife, apontador de obras e não sei mais o quê. Foi por muitos anos gerente de manutenção, seu trabalho preferido até hoje. Foi também gerente de compras por algum tempo. Ganhava mais, mas não gostava do cargo. Pediu demissão, abriu uma floricultura, não deu muito certo. Voltou uns anos depois, a pedido de Fabrizio Guzzoni, para ser novamente gerente de manutenção. Trabalhou no hotel por quase 40 anos, com alguns intervalos. Quando eu e meus irmãos éramos crianças, meu pai levava a família para Itanhaém. Ficávamos hospedados na casa do Seu Guzzoni (ou Seu Fabrizio, como minha mãe preferia) na Praia do Sonho — na época em que a Praia do Sonho era chique.
Só aos catorze ou quinze anos de idade eu só fui conhecer Seu Guzzoni. Foi estranho ver de perto aquele homem de que meu pai tanto falava; aquele homem que tinha para mim uma imagem de rico honesto, trabalhador e que tinha confiança absoluta no meu pai e em quem ele recomendasse. Acho que pelo menos seis dos oito irmãos do meu pai trabalharam no Ca’d’Oro. Dois irmãos da minha mãe também trabalharam lá, e até meu avô paterno teve seu período de funcionário dos Guzzoni. Um tio que mora em Itanhaém era o caseiro na Praia do Sonho.
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Em 2005, Seu Guzzoni chamou meu tio Zé (José Augusto, mas só meu pai o chama assim) à sua mansão no Morumbi. Esse meu tio carrega os genes artísticos da família da minha mãe: entalha coisas em madeira, pinta, canta, monta geringonças eletrônicas, o diabo. Pois Seu Guzzoni o chamou lá para encomendar um serviço. Entregou a ele uma tábua de madeira de lei. A madeira, ele explicou, era usada como tábua de carne ou para cortar limão para as caipirinhas nos churrascos que servia aos amigos — no tempo em que tinha amigos. Pediu ao meu tio que envernizasse a tábua e entalhasse nela a inscrição La Rialta em letras góticas.
O Zé voltou dias depois com a tábua pronta e Seu Guzzoni o convidou para entrar. Ele nunca tinha entrado no escritório do velho. Ficou impressionado com os móveis, as pinturas, os tapetes e que-sei-eu. Seu Guzzoni falou da vida, da recente viuvez. Meu tio conta que ficou triste ao vê-lo daquele jeito: riquíssimo, mas sozinho no mundo. Depois de um tempo conversando, o velho pagou o combinado e pediu um último favor: que ele dependurasse a tábua na entrada da mansão. Meu tio pegou uma corda, uma escada, e ajustou a tábua acima da porta de acordo com as instruções do dono da casa (“Mais pra lá… Mais pra cá… Tá bom aí”). Desceu da escada e reparou que o velho olhava fixamente para a tábua, emocionado.
— Seu Guzzoni… O que é “La Rialta”?
— Era o nome da casa onde eu nasci, lá na Itália.
Fabrizio Guzzoni morreu duas semanas depois.
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Mesmo ano passado, aposentado já há alguns anos, meu pai ainda pensava em voltar ao Ca’d’Oro. “Bom mesmo seria se o hotel me chamasse”, ele falava às vezes. Então, como eu dizia, esse leilão das coisas do hotel deve ser triste para todo mundo em São Paulo, mas é bem triste para mim. Parece que pegaram uma foto minha pelado aos dois anos de idade e botaram na internet: não chega a ser um escândalo, mas incomoda um pouco. Todo mundo sabe da importância do Ca’d’Oro, mas só lá em casa sabemos da vez que o Raul Seixas (“umas perninha fiiiina…”) passou uma manhã inteira encolhido na beira da piscina, para se levantar à tarde, ir até o hall de entrada e mijar num daqueles cinzeiros de saguão de hotel. Outra exclusiva: meu pai era gerente de compras quando o Luciano Pavarotti veio para o Brasil e se hospedou no hotel. O Pavarotti inventou que queria cozinhar no quarto, e Seu Lindauro que teve de correr atrás de comprar o que ele precisava — fogão, panelas de ferro, dúzias de tomates.
Teve uma vez que uns africanos entraram no elevador e o sujeito que estava com meu pai comentou:
— Ó o tamanho desses negão. Um feladaputa desse pega leão na unha, Lindauro.
Quando eles desceram, meu pai explicou ao cara que eram angolanos, falavam português e tinham entendido tudo.
Em outra ocasião, Seu Guzzoni apareceu na manutenção com o zíper da calça aberto.
— Ô, Seu Guzzoni — avisou um funcionário mais gaiato. — O passarinho vai voar.
— Fica tranqüilo, meu filho, que esse passarinho aqui não voa faz tempo.
Tem também a história de um funcionário do hotel que enfiava um dente de alho no cu para ter febre e ir pra casa mais cedo.
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Contei para minha mãe o negócio do leilão, para minha irmã, para o Zé. Todo mundo ficou triste. Meu pai ficou mais ainda, é claro. Sábado nós vamos até o hotel olhar as peças que estão no leilão e ver se tem alguma coisa que valha a pena. Quero pelo menos comprar uma lembrança pro meu pai, algo que lembre o lugar onde ele passou a maior parte do tempo, durante a maior parte da vida, para que eu e meus irmãos pudéssemos ser alguma coisa.
Que pena Marco,
lembro tanto do Cadoro, sempre que passo na Augusta lembro desses tempos..
Belíssimo texto Marcurélio, tomara que dê para vocês fazerem um agrado pro seu Lindauro.
Ah, e muito legal tua gratidão para com ele.
Locomovente, mizinfi, locomovente.
Uma lágrima saudosa escorre do canto de minha boca enquanto ergo minha caneca deScheppes citrus em homenagem a Seu Lindauro.
Guarde sempre em ti um pedacinho do Ca’d’Oro, mizinfi, nem que seja uma cabeça de alho semi nova.
Mais histórias pra eu roubar e ganhar iPods!
Rolam aquelas poltronas de uma tonelada em couro avermelhado?
Que história bonita, Marco!
Compra pra você o cesto de lixo onde o Raul Seixas mijou! 🙂
..
E Rafael, essa história vale bem mais que um iPod! Um macbook pro, no mínimo 🙂
GAH!
Em casa eu leio. Comecei a chorar já no segundo parágrafo.
Belo texto MC, porque você não escreve um livro sobre o Cadoro baseado nas histórias do seu pai?
Nilton: obrigado.
Ratapulgo: vou meter logo uma réstia, que é pra garantir.
Rafael: você não é doido de fazer isso. Eu te capo.
Baratófago: Cara, tem muito estofado lá no leilão. Tem uns conjuntos de jacarandá e couro, mas o lance INICIAL já fica acima dos 4 mil reais.
Jot, na verdade não era um cesto de lixo: era um cinzeiro daqueles de hotel, saca? Vou mudar o texto e botar o link.
Cartola: NUM CHORE!
Poxa, Marco, eu nem sabia que você tinha sentimentos. Maior surpresa do dia!
Brincadeira. Lindo texto. Certeza que seus amigos vão se fartar de ganhar prêmios em concursos com ele.
Também torço para que o seu Lindauro possa receber um agrado que represente a lembrança desse tempo bom!
Abrassss
Bela história!
Nossa Marcos,
lamento muito por vc e pela sua familia o triste fim do hotel Cadoro! nao o conhecia pois sou do RJ, mas a historia eh bem tocante!!!
História bonita, rapaz. Vc escreve bem, mesmo. Quando sai um livro que não é de blog?
Muito interessante (:
ops, acho que não é hora de falar que comprei um safety razor graças a vc (e busquei o post que ensina a se barbear com o dito). mal aê. texto ótimo, como sempre.
O que é um apontador de obras?
O desafio do lagarto
dica do Wessel
Não é saboroso nem suculento: é redondo! Esse foi sempre o principal atributo dessa carne tão sem graça e assim mesmo tão famosa, um dos maiores desafios das cozinheiras. Competentes eram as que conseguiam obter ótimos assados de uma carne sem maiores predicados. Tirando proveito de que a gente come primeiro é com os olhos mesmo, o lagarto vem alcançando lugar de destaque nos almoços de domingo por razões estéticas: é redondo e é clarinho. Certamente foi por essas características que recebeu outros nomes, como lagarto redondo e lagarto branco, pelos quais ficou conhecido fora de São Paulo.
O preparo, na forma de assado, era sempre bem passado e muitas vezes com recheio de lingüiça, um artifício para torná-lo mais saboroso e suculento, já que ling6uiça que se preze tem bons nacos de toucinho em seu interior.
Como as carnes bem passadas andam em baixa, o consumo dos lagartos assim preparados também decaiu. Mas há aí uma contradição, pois como o lagarto é uma carne mais dura, durante seu longo tempo de forno ela se amacia. É certo que muitos usam o lagarto assado para roast beef o que, a bem da verdade, fica muito melhor frio, pois cortada em fatias finas essa carne se amacia de verdade, quase um carpaccio.
Por sinal, foi como carpaccio, em 1980, que surgiu a grande chance do lagarto. Se o leitor me permite, vou contar a nossa versão dessa preparação no Brasil, na certeza de que dificilmente será desmentida. Na década de 70, o melhor restaurante italiano de São Paulo era o do Grande Hotel Ca’d’Oro. Era lá que fazíamos nossos almoços de família e foi lá que experimentei pela primeira vez o carpaccio. Com certeza foi a família Guzzoni que trouxe para o Brasil esse prato italiano que passou a ser obrigatório em restaurantes de todo o país.
Hoje o carpaccio é preparado com peixes, carnes e até aves. Mas voltemos aos primórdios dessa história. Sônia, minha mulher, insistia que nós deveríamos produzir essa carne para poder também ser servida em casa. Foi por um descuido que a escutei, pois casado há pouco tempo, na época, ouvia a todos, menos às sábias palavras de minha própria mulher. O Ca’d’Oro preparava o carpaccio com filé , mas resolvi fazer com lagarto, uma carne de seção mais uniforme, que resultaria em fatias semelhantes ao longo de toda a peça. Embora o carpaccio, em sua origem no Harry’s Bar de Veneza, fosse cortado resfriado, achei que, para produção em larga escala, seria melhor congelar e cortar em fatias finíssimas, nas máquinas de cortar frios.
Chegado o grande dia, o carpaccio foi lançado, recebendo um grande destaque no Jornal da Tarde, de São Paulo, com o seguinte título: ‘Carne crua, para quem não gosta de carne crua”. Era a mais pura realidade. Convencer as pessoas, em 1980, a comer carne crua não foi nada fácil. Os consumidores gostavam da aparência, mas insistiam: “Não seria uma carne curada, como a bresaola?” A resposta negativa foi sempre frustrante até que alguns, mais arrojados, resolviam experimentar. “Que maravilha!”, era o mínimo que se ouvia. Assim, da pequena produção de então, em pouco menos de dez anos ultrapassamos o número redondo de 1 milhão de caixinhas vendidas, sem falar na concorrência, que veio atrás vendendo mais e mais.
O carpaccio tornou-se prato cosmopolita, pois tem todos os atributos que os habitantes das grandes cidades precisam: rápido preparo, leve, nutritivo e, mais que tudo, delicioso. Neste número de Gula, mostramos o lagarto para ser assado e também para carpaccio, tal qual era preparado em sua origem – fino, à mão e batido entre duas folhas de celofane para que, mesmo fininho, não arrebentasse. Com essa técnica, pode ser feito em casa, caso não seja encontrado no comércio.
Assim, por conta do carpaccio e ironia do destino, essa carne nem saborosa, nem suculenta, tornou-se um dos cortes mais consumidos no Brasil.
fonte: http://www.wessel.com.br/noticias.asp?codNoticia=115&codMenu=1&codArea=v
Eu lembro que li certa vez na Folha que o fundador da TFP, o Plínio Correia de Oliveira, adorava jantar no Ca’d’oro. Era frequentador assíduo. A imagem do hotel ficou associada na minha cabeça a esse reacionário anti-comunista fanático. Mas depois de ler o teu texto emocionante, o Ca’d’oro acaba de ir do inferno para o céu sem escalas na minha cabeça.
Quanto a carpaccio, me contaram como fato que Giancarlo Bolla foi o primeiro no continente a comercializar o prato. Talvez o fato tenha ocorrido dentro do Ca’d’Oro onde Bolla era Maitre, mas ele é conhecido como a primeira ponte oficial do carpaccio a nossas terras. Os Guzzoni trouxeram a escola gastronômica a qual pertence o carpaccio, mas não serviam ou ao menos não vendiam. Imagino que comessem entre amigos ou em casa, mas entendi que não há esse mérito específico em âmbito comercial.
Carpaccio foi um pintor italiano que tinha em suas telas a constante presença do vermelho forte. A lenda diz que ao ver o prato, uma mulher falou, “nossa, parece um quadro do Carpaccio”. Só pra acrescentar; mesmo se fosse vermelho, salmão não seria carpaccio. O termo ‘carpaccio de salmão’ não existe, e não li isso mencionado nesse blog, mas é uma confusão comum e estabelecida no circuito paulistano.
Quanto aos méritos oficiais do Ca’d’Oro, a história que mais curti é a suposta: “Primeira caipirinha servida/vendida em restaurante, na história do planeta.”
Diz a lenda que Fabrizio Guzzoni atravessou a Barão de Itapetininga em seu primeiro ano no Brasil(1953), e sentou num boteco. Talvez já tivesse ouvido falar, mas de alguma forma serviram-lhe uma caipirinha pela primeira vez.
“Ótima bebida, vou servir no Ca’d’Oro.”
Seus parceiros brasileiros disseram, “Guzzoni, o Sr. tá louco. Isso é bebida de boteco, seria um ultraje servir essa coisa em seu belo restaurante.”
Fabrizio disse, “Não tô nem aí, gostei muito e vou servir por isso. É muito boa essa tal de caipirinha, e venderei pois achei muito boa essa tal de caiprinha. Próximo assunto?”
Outros méritos são os evidentes na gastronomia paulistana, e são material pra muito texto.
brother, leio seu blog há um tempo e nunca havia comentado, mas não podia ficar sem comentar esse post e o outro da visita ao hotel com a sua familia.
Lindo texto que até eu que moro em Minas e nada sei da história do hotel Ca’d’Oro fiquei emocionado.
Lembrar é sempre bom ainda mais quando envolve história de luta, trabalho, honestidade e humildade.
Parabéns irmão, muito bom mesmo.
E depois nenguinho gasta uma grana pra fazer filme nacional sobre travesti aleijado que dá o cu a troco de pão…
Porra… Daria um filme melhor que Grande Hotel a história do seu Lindauro no Ca’D’Ouro!
Vou fazer
Perguntei novamente à pessoa que há anos contestou o introdutor do carpaccio no país, e ouvi que o que contei é a versão de Giancarlo Bolla. O fato confirma a versão do comentário de Daniel; o Ca’d’Oro foi o primeiro a vender carpaccio. Ao menos acertei a história da caipirinha, mas acho que a versão que comentei anteriormente foi um relato diplomático, que não quis tomar partido das diferentes versões do mérito.
O projeto no novo Cadoro pode ser visto em http://querocadoro.blogspot.com/
Tenho um professor que mora no prédio logo a frente, na Caio Prado. Aquele prédio comprido, sabe? “Ed. Rio São Lourenço”, se não me engano. Dá pra ver direitinho o processo de demolição. Não tem como não olhar pros quartos já sem teto e não sentir uma nostalgia de algo que nunca vivi. Um documentário cairia muito bem.
É super engraçado,essas novas gerações tem muitas histórias para contar,pois o mais incrível o meu pai trabalhou quase 40 anos também no hotel Ca’do’ro como maitre executivo Luiz graciano doto ,,,tenho muitas histórias que ouvi também,,vai uma hilária aí. Meu pai disse um dia que estava servindo no bar um hóspede mexicano e ele pediu um prato muito conhecido as famosas codornas ao final eles levaram a lavanda era um recipiente com água morna e uma rodela de limão para limpar os dedos após a refeição ,ao invés do mexicano limpar os dedos ele bebeu kkkk fora outras histórias