Deixamos o servo de Abraão na beira do poço esperando que as moças da cidade viessem buscar água. Pois ele mal acabou de estabelecer o critério pelo qual escolheria a noiva de Isaque quando viu Rebeca aproximando-se, carregando um cântaro no ombro. Rebeca, lembrem-se, era neta de Naor, irmão de Abraão. O servo ficou de queixo caído: a moça era linda. Esperou que ela tirasse a água do poço e, quando já estava indo embora, correu até ela.
— Moça! Ô, moça! Tô com uma sede danada, será que a senhorita não podia me dar um golinho d’água?
Rebeca deixou que ele bebesse e se ofereceu para tirar água também para os camelos. Despejou o conteúdo do cântaro no bebedouro dos animais e voltou várias vezes ao poço até que os camelos estivessem saciados (e sede de camelo não é brincadeira, vocês sabem). Enquanto ela ia e voltava com o cântaro, o servo ficou só na miúda, observando a moça. Quando os camelos terminaram de beber, ele pegou uma argola para nariz pesando 6 gramas de ouro puro (vejam que já existia piercing naquela época) e duas pulseiras de mais de cem gramas cada uma, também de ouro, e deu os presentes a Rebeca. Em seguida perguntou:
— Você é daqui? Quem é o seu pai? Será que tem lugar na casa dele para os meus homens e eu passarmos à noite?
Hum… Embora isso não tenha sido dito antes, o servo não foi sozinho. Acho que nem era necessário dizer: Partir para uma viagem longa, passando pelo meio do deserto sozinho seria suicídio. Ou então esse negócio de “meus homens” significa outra coisa, e o servo era coleguinha de Lot. Vai saber…
Mas Rebeca, muito educada, respondeu:
— Meu pai é o Betuel, filho de Naor. Lá na nossa casa tem lugar para dormir e bastante palha para os camelos também.
Ao saber disso, o homem se ajoelhou e adorou a deus, agradecendo por tê-lo guiado até dar de cara com alguém da parentela de Abraão. Olhando lá de cima, deus ficou meio envergonhado: não tinha interferido em nada, e parecia que os homens podiam se virar muito bem sem ele. Pela primeira vez na História, deus duvidou da própria existência.
Rebeca correu para a casa dos pais para contar o que havia acontecido. Notem que ninguém ainda falou em Isaque, então dá pra imaginar que a moça tava de olho era no servo. Pensando bem, aquele negócio de “Pode beber, e vou pegar água para os camelos também” e “Sem problema, vocês podem dormir lá em casa”, sei não… Acho que o tal servo perdeu uma excelente oportunidade de se passar por rico e faturar a donzela. Coitado…
Rebeca tinha um irmão chamado Labão.
— Lobão?
Não, Labão.
— Ah, Lobão!
NÃO, porra, Labão! Prestem atenção nesse cara. Até agora os personagens da bíblia eram ou bonzinhos ou malvados. Creio que Labão é o primeiro a ter um caráter dúbio, o que o torna mais convincente como personagem. Labão viu a irmã com uma argola de ouro no nariz e duas pulseiras enormes, ouviu a história toda, fez uns cálculos rápidos de cabeça e foi depressinha ao encontro do servo de Abraão, que ficara esperando em pé ao lado do poço.
— Meu senhor, como vai? O que o traz até essas quebradas, um homem tão distinto, tão elegante? E por que está aqui ainda? Simbora, já preparei a casa para recebê-los.
O empregado foi com ele até a casa. Lá chegando, Labão descarregou os camelos e lhes deu palha e capim. Depois trouxe água para que os homens lavassem os pés e mandou trazer a comida. Puro interesse, claro.
O servo, no entanto, disse que só comeria depois de contar o que o levara até ali. Doido de curiosidade, Labão pediu que ele se sentasse
— Sou todo ouvidos, senhor.
O servo contou toda aquela história que já sabemos, do juramento para Abraão, do critério que inventara para escolher a moça, do encontro com Rebeca.
— E foi isso. Agora é com vocês.
Nem era preciso dizer. Abraão era aquele tio rico do qual raramente tinham notícias. Era a oportunidade para saírem da pindaíba.
— Meu senhor — disse Labão, todo bajulador — quem somos nós para decidir alguma coisa, se tudo isso veio de deus? Pode levar a Rebeca para que ela se case com o filho do seu patrão, como deus determinou.
Então o servo tirou da bagagem vários objetos de prata e de ouro e vestidos e os deu de presente a Rebeca. Deu também presentes caros para Labão e sua mãe. Vejam que o velho Betuel não apitava nada nessa casa: não tomou parte na decisão de dar a filha em casamento e também não ganhou nenhum presentinho…
Os homens comeram, beberam e passaram a noite na casa de Betuel. No dia seguinte, quando se preparavam para a viagem de volta, Labão veio falar com eles:
— Cês vão levar minha irmã embora? Mas já? Queisso! Acho melhor ela ficar por aqui mais uns dez dias e depois ela vai. Sabe como é mulher, demora pra arrumar as coisas, não pode ser assim, de uma hora pra outra.
Claro que o velhaco do Labão estava querendo mais presentes. Se Rebeca ficasse mais dez dias, os homens também ficariam, porque a viagem era longa e não valia a pena ir para Canaã e voltar depois. Além disso, o servo tinha feito um juramento a Abraão, não queria chegar dizendo “Olha, achei uma noiva para Isaque, lindíssima, virgem e neta do seu irmão, do jeitinho que o senhor queria. Mas deixei ela por lá mesmo”. Já imaginaram a reação do velho? Por isso o servo bateu o pé e disse que estava indo e pronto.
— Tudo bem, tudo bem. — disse Labão — Vamos chamar Rebeca, ela que decida. Rebeeeeeecaaaaaaaa! Ô, Rebeca. Cê quer ir com eles?
Pensando na vida de fartura que levaria dali pra frente, ela não pensou duas vezes:
— Ôpa! Tamozaí!
Rebeca chamou a mulher que havia sido sua babá para ir com ela, montaram nos camelos e começaram a viagem.
Isaque vinha andando cabisbaixo, no caminho de volta do poço de Laai-Roi (que significa Aquele que vive e me vê). Ele saíra à tardinha para meditar. Ainda estava muito triste com a morte da mãe. Não tinha irmãos que o ajudassem a superar essa dor, e não era de muita conversa com o velho, todos sabemos por quê. Aos quarenta anos de idade, permanecia solteiro, e sem perspectiva de encontrar alguém. Perdido nesses tristes pensamentos, olhou para o horizonte e viu uns camelos se aproximando. Rebeca também olhou e viu aquele homem tão bonito e tão triste, e perguntou ao servo de Abraão quem era aquele.
— É Isaque, filho do meu patrão.
Rebeca pôs o véu no rosto e foram ao encontro de Isaque. O servo contou a ele tudo o que ocorrera desde sua partida, mas Isaque mal ouviu sua história: Estava hipnotizado pela beleza de Rebeca.
Naquele tempo e lugar o casamento não era essa coisa chata de hoje, com uma pilha de papéis para assinar, roupas desconfortáveis para vestir e festas intermináveis para ficar até o fim sem tirar da cara o sorriso de noivos felizes: Isaque apenas pegou Rebeca pela mão e a levou para tenda que havia sido de Sara (e se Sara tinha uma tenda só dela, é mais um indício forte de que ela e Abraão haviam se separado). Isaque foi consolado, enfim, da perda da mãe. Os dois viveram felizes, mas não posso dizer que tenha sido para sempre. Rebeca também aprontou as dela, como veremos mais tarde.