Sessenta anos atrás essa canção mudou a música brasileira para sempre.

Ela começa em ré menor, parecendo ser mais uma daquelas músicas de dor-de-cotovelo da época: “Vai, minha tristeza, e diz a ela que sem ela não pode ser…” Mas lá pela metade vem a mudança, o tom muda para maior e a música fica otimista: “Mas se ela voltar, se ela voltar, que coisa linda! Que coisa louca!”. E no final ela fica assertiva: “Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim”. A revolução começa aí, na música de Tom Jobim e na letra de Vinicius de Moraes. Mas a verdadeira reviravolta está no baiano que gravou a música tocando violão e cantando como nunca antes se tinha visto.

No selo do compacto que tinha “Bim Bom” do outro lado, de 1958, “Chega de Saudade” era identificada como chorinho. Podia até ser quando Tom Jobim a compôs. Mas depois de passar pelo violão e pela voz de João Gilberto, “Chega de Saudade” nunca mais foi a mesma, a música nunca mais foi a mesma, o Brasil nunca mais foi o mesmo.

Em 1959, quando a música saiu no LP “Chega de Saudade”, Caetano Veloso e Gilberto Gil tinham 17 anos. Gal Costa, 14. Chico Buarque tinha 15. Edu Lobo, 16. Roberto Carlos, 18. Todos esses e muitos outros contam da mudança que aconteceu na vida deles, ainda adolescentes, quando ouviram “Chega de Saudade”. Essa influência sobre artistas tão diferentes fica clara no começo da carreira. Ouça o primeiro disco de Caetano e Gal, os primeiros do Chico, os primeiros compactos do Roberto, e você vai notar que é uma molecada imitando João Gilberto.

Os grandes compositores e intérpretes do Brasil nasceram de João. E não só isso: ele deu uma nova vida à música brasileira antiga. Todos os grandes compositores dos anos 30 e 40 estão presentes na discografia de João. É como se toda a informação musical do Brasil se condensasse num só ponto, João, que então explode para todos os lados, dando origem a um novo universo musical aqui e no mundo.

João Gilberto é o Big Bang.

João não foi só “uma pessoa conhecida”, como disse o imbecil-mor quando da morte dele, em julho. João Gilberto é a visão de um Brasil ideal, capaz de beleza, de perfeição, de poesia.

Eu conheci João em 1991, aos 16 anos. Fiquei obcecado por ele. Decidi aprender a tocar violão só para ver se um dia conseguia tocar “Chega de Saudade”. Consegui.

Quatro anos depois de começar as aulas de piano, eu ainda não estava pronto para tocar “minha” música. Sei o quanto ela é complicada. Mas aí João fez essa besteira de morrer, e eu precisava homenageá-lo. Então escolhi “Chega de Saudade” para tocar na audição de fim de ano.

Foi a primeira vez nesses quatro anos que a professora Cristina Simalha ficou com dó de mim. Ela foi escrevendo o arranjo e entregando pra mim aos poucos, quase que pedindo desculpas.

(Era muito, muito difícil. Eu sentava na frente do piano, olhava para a partitura e desistia. Quando tentava tocar, não saía nada. Eu me irritava, saía, ia dormir. Contei isso, e a Cris: “Será que você não está com depressão?” Fui investigar e, de fato, estava com depressão. Comecei a me cuidar. Depois disso, a música foi saindo. Vejam vocês: a paixão por João Gilberto e a sensibilidade da minha professora fizeram eu me tratar. Isso fez — e tem feito — toda a diferença.)

Bom, ontem foi dia de tocar a música em público. Ela estava saindo muito melhor do que isso em casa, mas ponho na conta do nervosismo. Errei muito, mas não ligo. Fiz o que aprendi com João: o melhor que eu podia.

Obrigado, Cris. Obrigado, João.

No começo deste ano, o Twitter suspendeu minha conta, @marcurelio. A conta tinha mais de 30 mil seguidores. Era importante para o meu trabalho: gente que queria me contratar podia entrar lá e ver o conteúdo que eu postava e decidir se eu servia para o trabalho. O número de seguidores também pesava, eu imagino: o cara entrava lá e pensava “é chato, é sem graça, mas pelo menos é influente”, e me contratava. Servia também como exercício de brevidade na escrita. Para quem vive de escrever, isso é ouro.

E aí o Twitter suspendeu essa conta. Sem aviso, sem motivo. Pedi informações e disseram que eu estava propagando discurso ameaçador ou violento. Bom, vocês me conhecem. Eu sou ranzinza, sou chato, mas violento não sou.

O negócio é que o Twitter suspendeu, e a suspensão é permanente. Criei outra conta, @chicoteiajesus (em homenagem ao meu velho blog), e vida que segue. Entrei com uma ação contra o Twitter no Juizado Especial Cível, pedindo o restabelecimento da conta e os motivos para a suspensão. Na audiência de conciliação, os advogados da empresa disseram que não podiam fazer nada, porque nem para eles o Twitter falava o motivo. Veio o julgamento, ganhei a causa, o Twitter recorreu, e agora é esperar.

(“Ah, mas é uma empresa privada, ela faz o que quiser”. Diga isso quando você tiver um problema com as Casas Bahia.)

No domingo, o Twitter suspendeu minha nova conta. Parece que tem uma regra que proíbe quem foi banido de voltar com outra conta. Recorri de novo e recebi essa resposta aí. A empresa me acusa de ter várias contas “com o propósito de propagação do ódio”.

Propagação do ódio é meu ovo

Uma acusação séria dessas, bicho. Zero prova.

É meio que uma bênção disfarçada também, porque eu estava viciado no Twitter. Enquanto o caso não se desenrola na justiça, vou combatendo minhas crises de abstinência com a metadona do Facebook.

Peço a vocês que compartilhem este post. Vou ficar feliz se tiver mais gente com raiva do Twitter por aí.

Crescer na periferia de São Paulo nos anos 80 era muito bom para quem gostava de brincar na rua. Empinar pipa, jogar bola, descer a rua num carrinho de rolimã…

Eu odiava essa merda toda.

Parte por temperamento, parte por ter sido condicionado a isso. Mas as razões eu deixo pro consultório da psicanalista. O fato é que brincar na rua não me interessava, então minha infância foi um tédio… até eu aprender a ler.

Ler era muito bom quando você era uma criança da periferia de São Paulo nos anos 80. Internet não existia, nossa casa não tinha videocassete nem discos para tocar na vitrola, nossa única opção de entretenimento era a TV. Quando eu descobri os livros e as histórias em quadrinhos, um mundo novo e muito mais interessante se abriu para mim. Dos 5 até mais ou menos os 14 anos, minha vida era com o nariz enfiado num livro. Eu lia os gibis do meu tio, ia na casa da vizinha ler os livros do filho dela, lia o jornal e a Bíblia em casa. Lia, lia, lia. Era um nerd, mas era feliz demais. Não me arrependo.

Uma parte importante dessa história foi a biblioteca da escola onde eu estudava, a EMPG Amadeu Amaral. Foi lá que conheci a obra de João Carlos Marinho. O Gênio do Crime, Caneco de Prata, Sangue Fresco… Li e reli tudo que ele escreveu. Voltei a ler depois de adulto, e é melhor ainda. O jeito dele escrever faz o ato parecer fácil. É como João Gilberto ou Fred Astaire. Ele foi um dos responsáveis por eu decidir que, além de ler, queria escrever também.

Deus foi bom pra mim, e ontem eu conheci João Carlos pessoalmente. Saí do estande da Bienal comovido, tive que parar um pouco para respirar fundo.

Quem cresceu na periferia de São Paulo nos anos 80 nem imagina que um dia vai conhecer seus ídolos. Estou muito feliz.

João Carlos Marinho e eu

(II Reis 17:24-41)
— Posso mostrar os slides, Senhor?
Sentado à cabeceira de uma mesa de reuniões comprida, Javé parece entediado e triste. Um anjo, em pé lá na frente, tenta atualizá-Lo sobre a situação do reino de Israel.
— É slide do que mesmo?
— Dos deuses que os assírios levaram para Israel.
— Precisa mesmo?
— Era bom, pra contextualizar.
— Tá bom, vai.
— Aqui estão:

Os deuses que os colonos assírios levaram para Israel, em ilustrações do monge beneditino francês Antoine Augustin Calmet (1672-1757)

— Puta que pariu… Mas é um sítio! Tem galinha, galo, cachorro, burro, cavalo, pavão… Esse Ashima aí é o quê?
— Eu… Eu não sei bem, Senhor. Um bode, talvez?
— Pode ser. Tá vendo porque eu não quero que as pessoas façam ídolos? Porque elas não têm imaginação! Elas pensam em seres celestiais, com poderes, e o que imaginam? Um monte de bicho de fazenda. Apaporra. E o que esses bichos fazem, ou deveriam fazer?
— O mais complicado é esse Sukkoth-Benoth…
— O nome da galinha é Tendas das Filhas???
— Pois é. Traduziram assim. Aí tem gente que diz que é porque o culto dos caras tem umas tendas onde colocam umas moças para… para…
— Enchem as tenda de puta.
— Isso. Mas a galinha com os pintinhos é um símbolo da constelação das plêiades. Eu acho que alguma coisa se perdeu no hebraico. Como se trata de uma divindade da Babilônia, e ligada à fertilidade, eu chutaria que é Zarpanit, a deusa-mãe, mulher do…
— Mulher do Marduk, o deus grandão deles lá. Metido a besta, casado com aquela vagabunda… — Javé nota o espanto do anjo — Não que essa galera exista, claro. O único Deus que existe sou eu. É que… é que eu leio sobre essas coisas aí, pra dar risada.
— Entendido, Senhor. Continuando… Nergal, esse galo aí, é o deus da cidade de Cuta, na região do Eufrates. É o deus babilônio do… deixa ver… do sol e da guerra. E da peste. E do fogo. E do deserto. E do submundo.
— Caralho. Esse aí acumulou mais do que eu. Deixa o Sindideus saber disso.
— Sindideus?
— Toca o barco. E o bode? Ashima, né?
— É. Deusa do destino de Hama, na Síria.
— Como deusa? É um cara!
— Senhor, a questão de gênero…
— Ai, meu saco. Anjo gosta desse negócio de trans, né? Tudo bem. É uma deusa. Ui, deusa! Ui, Senhora do Destino! E depois, o cachorrinho?
— Esse é Nibhaz e o burro que vem em seguida é Tartak. Os dois são deuses dos aveus, de Gaza. Anamelech é a deusa-lua e Adramelech é o deus-sol, marido dela. Os dois são adorados pelos sefarvitas, que oferecem seus filhos em sacrifício ao casal.
— Que palhaçada. E estão fazendo isso em Israel? Na Terra Prometida? Prometida por mim. Dada por mim. Protegida POR MIM. E AÍ VEM UM MONTE DE CORNO LÁ DA CASA DO CARALHO E COMEÇA A ADORAR O ZOOLÓGICO INTEIRO NA MINHA TERRA. É isso, meu anjo?
— É, Senhor. Infelizmente é isso.
— Cachorro, galinha, burro, pavão, égua… Tem um jogo do bicho inteiro ali. Tem leão?
— Xeu ver aqui, um minuto… Leão, leão, leão… Não, Senhor. Leão não tem.
— Pois vai ter…

*   *   *

A estratégia de Sargão, imperador da Assíria, era boa: levar os israelitas para o exílio e trazer gente de outros lugares para ocupar Israel. Longe da terra, o desejo de rebelar-se diminui, a pessoa se conforma, toca a vida. A religião de Israel naquela época não era bem monoteísta: estava mais para henoteísta, em que se serve a um só deus, sem negar a existência de outros. Naquele tempo e naquela região, todos os povos eram henoteístas, e acreditavam que seu deus tinha mais poder sobre aquele território. Os israelitas acreditavam que Javé era poderoso em Israel e Judá, mas não negavam que Marduk, por exemplo, podia ser mais poderoso na Babilônia. Então, além de longe de sua terra, os israelitas estavam longe de seu Deus. Javé continuava ali em Israel, o que seria um problema para os colonos.

*   *   *

Os colonos recém-chegados estão, como dizem os poetas e os sábios, com o cu na mão. Já é bem difícil sair da sua terra para um lugar desconhecido. Fica mais difícil se houver outras pessoas na mesma situação, e que são de outras culturas, falam outras línguas. Hama (ou Hamate) ficava na Síria. Babilônia (a cidade) e Cuta ficavam no atual Iraque. Os Aveus vinham de Gaza, que na época era a Filistia (soa como Palestina? Não é coincidência). Ninguém sabe direito onde ficava Sefarvaim, se no Iraque ou na Síria, mas o caso é: muita gente de vários lugares diferentes, o que deixava tudo mais complicado. E para complicar mais ainda, as pessoas começaram a aparecer mortas. De saudade de casa? Não. Mortas-matadas, com marcas de garras e dentes. Garras e dentes grandes.
— Foi um leão — conclui um colono ao ver mais uma vítima estraçalhada no chão.
— Um leão? Tá doido? Só existe leão na Áfr…
O leão, uma espécie que na época existia na África, sim, mas também da Grécia até a Índia, aparece e come os dois debatedores.
Sim, os leões tinham invadido Israel e estavam matando os colonos. A notícia chegou a Sargão II. O imperador, um henoteísta, logo desconfiou da causa dessa invasão felina e chamou um dos servos do palácio.
— No meio desses israelitas aí que nós trouxemos, tem algum sacerdote da religião deles?
— Ih, majestade… Difícil, hein? Aquilo ali tava uma zona quando a gente chegou. Virou Brasil, todo mundo seguia duas, três religiões. De qual religião o senhor está falando?
— A original mesmo, raiz. Aquela miséria de um deus só, que não aparece nunca…
— Aaaah, sei qualé. Tem um cara aqui, sim.

*   *   *

— HAHAHAHAHAHAHAHAAHA. CONTA OUTRA, PADRECO!
— É sério, caralho! Cês querem aprender a religião ou não?
— Claro que sim, sacerdote. Mas pega leve, pô. Pão caindo do céu?
— Quero ver na hora que eu contar do profeta que foi pro céu de carro.
— HEIN?
— Uma coisa de cada vez. Alguma dúvida até agora?
— Eu tenho! Aqui no Levítico diz que não pode usar roupa feita de dois tecidos diferentes, certo? Por quê?
— Como assim, “por quê”? Porque não pode, ué. Porque Deus mandou.
— Tá, mas porque esse deus aí… esse Javé que cês fala… se preocupa com isso?
— Eu… eu não sei.
— Porque veja, o Tartak, meu deus, nunca pediria nada idiota assim. E olha que ele é um burro…
— Cara, cê quer virar comida de leão? Não, né? Então tá aí o motivo da lei: misturar dois tecidos atrai leão. Satisfeito?
— …
— Então vamos adiante. Leis sobre a lepra
O trabalho do sacerdote foi difícil, mas ele conseguiu ensinar a religião israelita aos novos moradores da terra, e Javé mandou os leões de volta para casa. Só que o furdunço já estava feito. Ninguém larga sua religião tão fácil, então Samaria virou a capital do sincretismo. Os cultos a várias divindades se misturaram, Javé entrou nessa salada, e o povo adorava e sacrificava a todos esses deuses.
O autor do livro dos Reis condena com muita ênfase esse estado de coisas, é claro. Aqui há outro trecho longo recapitulando os pecados que levaram ao fim do reino de Israel, e agora também os pecados dos novos habitantes, que seriam conhecidos como samaritanos.

Essa treta entre Judá e Samaria continuaria forte mais de setecentos anos depois, nos tempos de Cristo. Conhece o Bom Samaritano? Um cara machucado na estrada, vários judeus passam por ele — poderosos, ricos, religiosos — e o ignoram. Quem o socorre, leva para casa e paga pelo tratamento todo é justamente um samaritano. Jesus inventou essa história porque tinha mandado amar o próximo e os discípulos, como sempre se fazendo de bestas, perguntaram “mas quem é o próximo?”. Jesus contou a parábola e no fim perguntou: “Quem é o próximo nessa história?”. Os discípulos nem conseguem falar em samaritano: dizem “aquele que ajudou o cara”. Era treta forte.
Em São Paulo tem um hospital católico chamado Hospital Samaritano. Fica no meio de Higienópolis, o bairro judeu. Puta sacanagem.

(II Reis 17:1-23)

Território da 25ª Dinastia do Egito, a Dinastia Etíope, ou Império Cuxe


Oséias, rei de Israel, entra no palácio real egípcio. Foi uma longa viagem. Ele talvez pensaria no caminho contrário feito por seus antepassados guiados por Moisés, mas tirando alguns sacerdotes e profetas meio amalucados, ninguém mais fala dessas lendas antigas nas Dez Tribos do Norte. Bom, Dez Tribos é forma de dizer: graças à incompetência do rei anterior, Peca, a Assíria já havia anexado boa parte do território. Israel era agora pouco mais do que a capital, Samaria, e as terras em volta. Oséias liderou uma revolta contra o rei enfraquecido, foi vitorioso e assumiu o trono. Corre o boato por Israel e pelas terras vizinhas de que ele teria sido colocado ali pelo próprio Tiglate Pileser, soberano assírio. Ele não confirma nem nega. Só quer livrar o próprio rabo. Então está ali, batendo as sandálias num degrau para tirar o grosso da poeira, sem pensar em Moisés, em Mar Vermelho, apenas na sede que tem e na missão que o traz aqui. Ele vê um homem passando. Negro retinto, alto, a cabeça raspada.
— Ô, rapaz!
O homem o ignora.
— Xiu! Negão! Ô, negão!
Nada. Oséias se lembra de uma velha piada egípcia.
— Ôôô… MÚMIA DE FITA ISOLANTE!
O homem se vira lentamente e dá de cara com aquele homem sujo de poeira, descabelado, os lábios rachados. Um mendigo? Um louco?
— Como disse?
— O escutador de samba tá quebrado?
— Hein?!
— TÁ SURDO, NEGÃO? Vim aqui falar com o rei… como é mesmo o nome dele?
— Sô.
— É o quê?
— O nome do rei, Sô.
— “O nome do rei, sô…” Cê é mineiro?
— O rei se chama Sô.
— Sô? Só Sô?
— Eu sou só Sô.
— Agora cê já tá falando língua de africano. Não sou da sua tribo não, filho. Cadê o rei… Sô? É de quê esse “Sô”? “Solange”?
— Pergunte a ele.
— Eu perguntaria se conseguisse saber onde encontro o corno.
— “O corno” sou eu.
Pela primeira vez Oséias nota de verdade o homem. As roupas dele são reluzentes. Muito ouro, pedras preciosas. É a primeira vez também que Oséias se dá conta da própria aparência. Talvez o negro tivesse o direito de tratá-lo mal, mas não o contrário. É evidente que é o rei que está na frente dele. Oséias cai de joelhos.
— VOSSA CRIOULÊNCIA! Perdoe este seu servo. Não sabia que o rei era afro-egípcio.
Oséias não sabia (nem eu, até ontem) que a 25ª dinastia egípcia foi formada por reis etíopes. Algumas traduções da Bíblia falam em Etiópia, outras de Cuxe (que era o nome de um dos filhos de Cam, filho de Noé, que seria o antepassado de todos os negros), outras ainda de Núbia. Não se trata da Etiópia atual, mas um pedaço de terra que corresponde mais ou menos ao atual Sudão. A terra de Cuxe tinha sido parte do império egípcio, mas conquistou a independência em 1.100 a.C. e foi se tornando um reino cada vez mais poderoso. A capital era a cidade de Napata, perto de onde fica hoje a cidade sudanesa de Karima. Em 732 a.C, enquanto os assírios estavam ocupados com a Síria e Israel, os etíopes conquistaram partes do Delta do Nilo. 1
Mas voltando à cena, está lá Oséias de cara no chão, tentando consertar e pensando “puta que pariu, eu que caguei na entrada”. Sô não tem tempo para salamaleques:
— Levanta daí, maluco. Quem é você? O que você quer?
— Sou Oséias, rei de Israel.
— Rei? Você é o rei de Israel? Eu sabia que Israel ia mal das pernas, mas nem tanto. Se o rei tá nesse estado, imagino o povo…
— Foi uma longa viagem, Vossa Negritude. Mas não vem ao caso. Estou aqui para pedir sua ajuda contra os Assírios.
— Ah, eles estão cercando Samaria, né? Tô ligado, mano. Cês são sangue ruim mesmo. O maior império do mundo cercando ali, e vocês firme. Foda.
— Pois é, mas não sei quanto tempo isso ainda dura. O poder deles é infinito, e nós somos só um pequeno reino.
— Peraí. Seu nome é Oséias, não é? Não era você que quebrava os dentes se o Tiglate Pileser levasse um chute no saco? Cê não era boneco do Pul? Que houve?
— Porra, esses boatos… O negócio foi o seguinte…

*   *   *

Oséias, o último rei de Israel


O rei anterior, Peca, tinha sido um desastre. Sob seu comando, Israel perdera boa parte de seu território. Então Oséias comandou uma revolta, matou o rei e tomou seu lugar. Isso foi em 732 a.C., quando Acaz já era rei de Judá havia doze anos. Oséias subiu ao trono e tratou logo de ficar pianinho com o Império Assírio. Pagava impostos, mandava presentes, enviava mensagens de bom dia no WhatsApp. Era tanta bajulação que logo o povo desconfiou que ali havia coisa. E com razão: documentos assírios da época dizem que Oséias tinha sido escolhido por Pul. Então tudo ia bem, daquele jeito.
Só que Pul morreu em 726 a.C. e Oséias achou que era uma boa oportunidade para revoltar-se. O cara quando é chegado numa conspiração, ninguém segura. E não foi só ele: muitas nações sob domínio assírio aproveitaram a transição para tentar a sorte — inclusive a Babilônia, cada vez mais poderosa. Só que o filho de Pul (chamado pelos revoltosos de filho da pulta), Salmaneser, não estava para brincadeira. Foi com seu exército até Samaria, cercou a cidade. Quando encontrou com Oséias, ele se fez de besta.
— Eeeeeu? Revooooolta? Magina, meu rei! Tô aqui de boínhas. Quê? O imposto não chegou? É esse Bradesco que é uma merda, majestade. O senhor tem conta em outro banco? Aceita Paypal? A gente dá um jeito nisso. Posso te fazer um cheque? Só não quero que a gente fique mal. Somos parceiros há tanto tempo! Seu pai foi um grande amigo, eu amo a Assíria, passo férias lá… Como prova de minha lealdade, lhe entrego esse presente.
— Hum. Que é isso?
— É uma garrafa com areia colorida formando uma paisagem. Linda, né? Obra de arte de muito valor…
— Isso aqui é uma quinquilharia.
— Bom, com o que a gente paga de imposto não sobra muito pra comprar presente…
— COMO É?
— É simples, mas é de coração. Aceite, por favor.
— Olha aqui, Ozônio…
— Oséias.
— OLHA AQUI, OZÔNIO…
— Eu mesmo, seu criado…
— Tem muito povo importante se revoltando império afora. Perto da Babilônia, Israel é um apêndice supurado, um siso cariado. Eu vou deixar passar, porque tenho coisas mais importantes e urgentes para resolver. Mas fique avisado: se eu desconfiar que você está tramando alguma coisa pelas minhas costas, eu vou EXTRAIR Israel do mapa. Entendido?
— Tramando? Pelas suas costas? Majestade! Sou seu servo fiel, estou aqui para apoiá-lo no que precisar. Pode contar comigo.
Salmaneser não ficou para suportar a lambeção de Oséias. Tinha mesmo problemas mais urgentes para resolver. E, assim que ele virou as costas, Oséias se empirulitou para o Egito. Ia pedir a ajuda de Sô.

*   *   *

— Bom, então você mentiu para o rei da Assíria.
— Digamos que omiti algumas informações estratégicas…
— Mentiu. E fez muito bem. Pode contar com minha ajuda, Oséias. Mas apenas financeira. Eu não vou me meter em conflito direto com esse Salmaneser aí, não. Não sei ainda qual é a dele, e aqui no Egito tá tudo tranqüilo. Não vou arrumar sarna pra me coçar. Tá bom pra você?
— Tá ótimo, meu rei de ébano… De quanto estamos falando mesmo?

*   *   *

O rei Sô fazendo a egípcia


De volta a Samaria com o bolso cheio de dinheiro, Oséias está confiante. Não vai mais pagar imposto nenhum à Assíria. Salmaneser que se lasque. O negócio agora é equipar o exército, reforçar as muralhas e…
 
— Rei Oséias?
— Quem é?
— Exército do Império Assírio. O senhor está preso por traição.
— Traição? Eeeeeu? Eu jamais trairia meu grande soberan…
— Calaboca.
— Pois não.
A notícia sobre a visita de Oséias ao Egito tinha corrido rápido, e Salmaneser logo tomou providências. Oséias foi levado para a prisão e Samaria foi cercada. Se Oséias tinha esperança numa intervenção do rei do Egito, podia esperar sentado. Vários outros povos tinham pedido ajuda ao Egito naquela época. Interessava ao Egito conter os avanços do Império Assírio, mas só nos bastidores, com agitação e financiamento. Quando o bicho pegava mesmo, não vinha do Nilo ajuda nenhuma. Ou seja: o faraó fazia a egípicia.
A intenção era resolver logo o problema, mas uma combinação de teimosia com dinheiro egípcio fez o cerco durar três anos. O que foi um problema para Salmaneser: desgastado por levar tanto tempo para subjugar um reino minúsculo e enfraquecido, ele foi assassinado. O usurpardor, Sargão II, mandou parar de frescura, cerco, guerra psicológica e não sei mais o quê: a ordem era invadir na força bruta, matar quem resistisse e deportar quem sobrasse.
Uma vez decidida, a ação foi rápida. Vinte e sete mil israelitas foram deportados para partes distintas do Império Assírio. Ficou em Samaria apenas a ralé, sem ânimo nem condições de resistir ao domínio estrangeiro.

*   *   *

As 12 tribos de Israel em 1.200 a.C. Judá e Simeão formam o Reino do Sul, Judá. As outras dez eram o Reino de Israel. Na época da conquista Assíria, Israel já era bem menor.


E assim, pouco mais de duzentos anos depois da revolta de Jeroboão que dividiu o reino em dois, chegava ao fim o reino de Israel. De lá para cá, muitas lendas surgiram sobre o destino das Dez Tribos perdidas de Israel. Em 2005, Israel reconheceu um pequeno grupo do nordeste da Índia, chamado Bnei Menashe, que se identificava com a tribo de Manassés.  Os 7200 integrantes da Bnei Menashe receberam vistos de entrada em Israel.
Existem lendas entre os pshtuns, grupo étnico do Afeganistão, de que eles seriam os remanescentes da tribo de Efraim. Cientistas começaram um estudo genético em 2010 para estabelecer esse vínculo. Não houve resultados conclusivos.
A comunidade tradicional judaica de  Bene Israel (“filhos de Israel”), na Índia, também alega ser descendente de uma das dez tribos. Nunca foi reconhecida por Israel.
A comunidade Beta Israel (“casa de Israel”), da Etiópia, acredita ser descendente da tribo de Dan Stulbach. Em 1977, o governo israelense decidiu que a Lei do Retorno se aplicava aos judeus de Beta Israel.
Os Judeus Igbo, da Nigéria, dizem ser descendentes de várias tribos: Efraim, Naftáli, Manassés, Levi (a tribo dos sacerdotes!), Zebulom e Gade. Até aí, eu também posso dizer que sou neto do Chuck Berry. Só que eu não posso provar. Eles também não, então não receberam nenhum reconhecimento.

Integrantes da tribo Bnei Menashe, da Índia, reconhecida por Israel como remanescente da tribo perdida de Manassés


Além desses grupos, há teorias malucas: as Dez Tribos perdidas de Israel teriam originado os índios americanos, os ingleses e até os japoneses. O mais provável, porém, é que eles tenham sido assimilados. Como diz Isaac Asimov, o incrível não é que as Dez Tribos tenham desaparecido, mas sim que as duas tribos que formavam o reino de Judá, tão pequeninas, tenham resistido à assimilação e chegado até os dias de hoje.

*   *   *

Toda essa história está nos primeiros seis versículos do capítulo 17 do segundo livro dos Reis. Os versículos de 7 a 23 são uma recapitulação: contam que Israel adorou outros deuses, desobedeceu a lei de Javé, e por isso foi destruído. Acredita-se que os livros de Josué, Juízes, I Samuel, II Samuel, I Reis e II Reis tenham sido escritos na volta do exílio de Judá, 47 anos  depois da conquista babilônia em 586 a.C. Trechos como esse, então, serviam de alerta: ou vocês seguem a religião direitinho, ou o bicho vai pegar de um jeito pior da próxima vez, como aconteceu com o reino de Israel.
— Reino de Israel? Que é isso?
— Exatamente — diz Javé, que ficou o capítulo inteiro sumido.
 

(II Reis 16)
— Doe ouro! Ouro para salvar o reino! Judá precisa de você! Doe ouro! Doe prata! Ouro e prata para salvar o reino!
Uma kombi velha percorre as ladeiras de Jerusalém. O povo sai das casas com anéis, brincos, pulseiras, e joga pela porta lateral aberta da perua. No vidro traseiro, um adesivo “Dirigido por mim, Guiado por Javé” em que “Javé” foi riscado e trocado por “Moloque”. A religião oficial de Judá, a religião do Deus que se revelou a Abraão e depois inventou a religião junto com Moisés, a religião de um Deus só e várias regras de higiene já não é mais tão popular. Graças ao rei Acaz.
Acaz está no palácio, andando em círculos ao redor de uma pilha de ouro e prata: vasos, pratos, castiçais, objetos de decoração e de culto tirados do palácio e do Templo.
— Tem que dar certo. Ele tem que aceitar. Se ele não aceitar, aí… Mas ele vai aceitar.

*   *   *

— Filho da PUTA!

Olhando na tela quebrada do tablet a imagem em tempo real de Acaz no palácio, Javé não se agüenta. Ele joga o tablet, uma tranqueira que roda Android 2.3, contra a parede do Universo. O aparelho se desfaz numa explosão nuclear. Um anjo traz outro.
— Não quero mais ver essa merda!
Deus bate no tablet, que cai no chão e trinca a tela. O anjo suspira. Lembra do tempo em que usavam iPads de última geração. Mas não valia a pena. Deus quebra um tablet por dia, e estava saindo caro. Além do mais, não pegava bem gente do céu usando tecnologia importada do inferno. Então o departamento de compras passou a apelar para o segundo pior fornecedor: a China.
— Esse MERDA tá tirando onda com a minha cara! Porra! Minha vida é só desgosto, não é possível. Eu escolhi esse povo, tirei da escravidão, entreguei uma terra boa para eles, mandei matar todo mundo que morava lá, que era para não irem atrás de outros deuses. E o que aconteceu? Hein? ME FALA!
— Israel… Israel voltou às religiões antigas.
— Isso! Moloque! Baal! A série B das divindades, um bando de entidade de segunda. E eu aqui, o verdadeiro Deus, criador da porra do Universo, deixado de lado! Mas Judá, não. Judá sempre foi legal. O reino se dividiu e Israel foi só ladeira a baixo, por isso que a batata deles tá quase queimando de tão assada. Mas Judá era uma belezinha. Davi, depois o Salomão, filho do Davi. Aí veio o tal do Jeroboão lá, o reino se dividiu, mas em Judá continuou a dinastia. Veio o Roboão, filho do Salomão, depois o… o… aquele filho lá do Roboão.
— Abias
— Foda-se, quem se importa? O negócio é que em Israel sempre foi aquela zona. Revolução, golpe, contragolpe, #NãoVaiTerGolpe, bate panela, “cadê as panela?”, outro golpista, uma putaria. Em Judá é sempre um descendente de Davi, bonitinho, organizadinho. Claro que de vez em quando aparece um ou outro rei feladaputa, mas eu logo dava um jeito. Agora me vem esse Acaz e… Filho da PUTA, eu não acredito que ele vai sair dessa! Resistir a uma invasão de Israel, vá lá. Israel é grande mas não é dois. Mas da Síria? A Síria é FODA. A Síria tem o pão sírio… Hmmm, vontadinha. Tem aí?
— Está em falta, Senhor.
— Puta que pariu, porque é que no céu nunca tem pão, hein? Bom, eu tava falando da Síria. Tem o pão sírio. Tem… tem o hospital Sírio-Libanês… tem aquela frutinha lá, o Damasco. Ô, anjo… Curte damasco seco?
— Eu… eu gosto, Senhor.
— Então cê aprecia dá-mais-cu seco, é? Hein? HAhaahahaha! Entendeu essa? Dá-mais-cu seco! Hahahhhahaha!
— …
— Próxima geração de anjo eu vou lembrar de fazer com senso de humor… Tem o damasco, tem o Sírio-Libanês, tem o… tem o Círio de Nazaré.
— Senhor, na verdade o Círio de Naz…
— NÃO ME CORRIJA! Tá pensando que tá no Twitter, desgraça???
— …
— Eu não acredito que o corno do Acaz vai sair dessa. Mas que grande, que imenso e incomensurável filho de uma grande e gorda prostituta tuberculosa perneta.

*   *   *

Moloque, em representação do século 18


Dá para entender a fúria de Javé. Primeiro porque tablet chingling rodando Android 2.3, provavelmente com aquela resolução 800×600, é uma puta sacanagem. E depois porque Acaz, rei de Judá, parecia fazer de tudo mesmo para provocar a ira divina. Ele chegou ao trono aos 20 anos de idade, com a morte do pai, Jotão, mais ou menos em 732 antes de Cristo. Acaz reinou por 16 anos. Papai Jotão (não confundir com Jotalhão) era um rei fiel à religião dos antepassados. Acaz, não: tratou logo de oficializar os cultos de fertilidade, clandestinos havia séculos. Ele oferecia sacrifícios e queimava incenso nos “lugares altos”, que eram locais ao ar livre para adoração de vários deuses (em alguns deles tinha espaço até para uma altarzinho dedicado a Javé — e a única coisa que poderia irritar o Deus dos judeus mais do que adorar outros deuses era considerá-Lo como um deles). A Bíblia diz também que ele sacrificava “embaixo de toda árvore frondosa”: alguns comentaristas dizem que isso era um eufemismo para orgias dedicadas aos deuses da fertilidade. Além da idolatria e da putaria, Acaz também chegou ao extremo de sacrificar o próprio filho, um costume muito querido entre os adoradores do deus Moloque.
Como castigo por sua ousadia, digamos assim, Deus mandou Rezim, rei da Síria (que na época se chamava Aram, onde se falava o aramaico, idioma que viria a ser falado na Palestina dos tempos de Cristo), e Remalias, rei de Israel, cercarem Jerusalém. A vitória era certa, mas Jerusalém resistiu. E no meio do cerco, Acaz teve uma idéia.
Anos antes, quando o rei da Assíria Tiglate-Pileser III (Pul para os íntimos) invadiu Israel, o então rei israelita Menaém deu a ele 34 toneladas de prata para aliviar pro lado dele e ir embora. Lembrando disso, Acaz resolveu raspar o tacho: recolheu todo o ouro e prata do Templo e do palácio, e mandou uma kombi reino afora para recolher até a última lasca de metal precioso.
— Tem que dar certo. — Acaz murmura pela milésima vez — Ele tem que aceit…
Entra um servo para dizer que a kombi está lotada. Acaz manda trazer tudo e juntar à pilha no centro do salão, e os servos o fazem. O rei se posta de costas para o tesouro e faz uma selfie.
— E agora, majestade?
— Agora é pegar a flanela e lustrar bem as bolas do Pul. Vou mandar a foto pelo Zap. Que que eu escrevo, você que é bom de bajular os outros?
— Obrigado, senhor. Eu começaria com “Digníssimo e muito piedoso Tiglete-Pileser III, soberano dos Assírios, Luz da Manhã, fogo sagrado que arde em nossos corações, Ó PUL, TU QUE ÉS TÃO PODEROSO E SUBLIME, QUE COM TUA SERENIDADE E JUSTIÇA LANÇA SOBRE OS POVOS A VERDADEIRA L…”
— CALMA. Calma. Eu não quero estourar o saco do cara. É mais uma alisada, sabe? Uma massaginha, um beijinho, aquela cosquinha no cu… Hummm… Já sei. “Miga, sua loka. Tô pas-sa-da com a Síria e Israel. Acredita que tão querendo me invadir, os arrombado? Cê sabe que cê é tipo um pai pra mim, né, miga? Te amo tanto… Tô aqui pra te servir, mas vai ser difícil se estourarem minha cara, né? Então conto aí com a nossa amizade. E como prova dessa amizade, tô te mandando uma lembrancinha. Tá aí na foto. Não sou eu, hein?” Cadê aquela carinha chorando de rir? Aqui. “Não sou eu. É essa pilha de ouro e prata aí. É todo o ouro e toda a prata do reino. Coisa pouca. Mais ouro do que isso, só se o Michael Phelps casasse com um bicheiro em comunhão total de bens. Muito mais do que aquelas 34 toneladas do outro lá, viu? Aguardo sua resposta.” Enviar, pronto. Seja o que os deuses quiserem.
— O que Deus quiser, majestade.
— Que seja. Escolhe um aí e reza. E já leva o presente lá pro Pul.
— Majestade… O reino vai ficar pobre.
— A alternativa é não ter mais reino. O que você prefere?
— …
— Arrombildo. Vai.

Mapa do Levante em 830 a.C. mostra Israel, Judá, o reino Arameu (Síria) e um pedacinho do Império Assírio lá em cima

*   *   *

O arrombildo foi, Pul aceitou o presente, e fez muito mais do que Acaz sonhava. Invadiu a Síria, tomou Damasco (a cidade, não a fruta) e executou o reizim Rezim. Isso aconteceu em 732 a.C., e só em 1941 Damasco voltou às mãos dos sírios. Durante quase 2.700 anos, a cidade passou de mão em mão, igual tua irmã outras cidades que sofreram cercos e invasões. O povo de Damasco foi levado para o cativeiro na cidade de Quir, em Moabe, que estava sob domínio do Império Assírio. Quir é hoje a cidade de Karak, na Jordânia. Além de grande cidade, daria também um bom nome para um DJ.
A notícia era boa demais para ser verdade, Então Acaz montou num camelo (o governo estava sem dinheiro para gasolina, então não dava para ir de carro) e foi até Damasco para se encontrar com Pul. Nem consigo imaginar a sessão de bajulação, de lustra-bolas, de puxa-saquismo que se seguiu. Só sei que Acaz chegou lá e viu um altar grande, bonito, ficou muito impressionado com o altar. Tirou uma foto e mandou para Urias, o sacerdote em Jerusalém: “Bafo esse altar. Quero um i-gual.”
Vocês vejam a situação de Urias: ele era sacerdote da religião oficial. Estava desmoralizado, coitado. O rei só queria saber de queimar criança e fazer suruba no morro, enquanto o pobre do Urias ficava no templo (agora bem mais pobre sem os adornos de ouro e prata) sacrificando a Javé o que sobrava. Ia fazer o quê? Falar “não, constrói você”? Então Urias fez o altar.
Quanta Acaz voltou a Jerusalém, ficou doido com o altar novo.
— Olha que beleza! Nossa religião está ultrapassada, Urias!
— Isso eu já não sei, senhor…
— Pois eu sei! Fica aquele templo lá, cheio de ritual, lugar lá que ninguém pode pisar, aquele altar hor-ro-roso. Estamos em 732 antes de Cristo…
— Antes de quem?
— Quê?
— Cê falou “732 antes de Cristo”.
— Falei? Nem vi. Tô meio doidão ainda. Os cara lá em Damasco usa uns negócio… Mano, depois te conto. Mas enfim, o negócio é que estamos agora, neste ano de agora, que tudo é… moderno e… avançado… sei lá, e nossa religião é, tipo, do século passado. Sabe? Chega disso.
— É a religião dos nossos antepassados, senhor. Do Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó. Do Deus que nos tirou do Egito e nos trouxe para uma terra que mana leite e mel.
— Que terra que mana leite e mel, Urias? Se não for as cabras e as abelhas, não tem leite nem mel pra ninguém, não. E que Egito? Eu nunca pisei no Egito, nem meu pai. Você já foi lá no Egito, tirou selfie com pirâmide? Não, né? Abraão, Isaque, Jacu, tudo coisa antiga. Isso que eu tô falando. ISSO QUE EU TÔ FALANDO, TÁ LIGADO.
— O que é esse pó branco no seu nariz, senhor?
— Afe, tem giz na lousa! ABAFA! Aquele altar horroroso nosso, lá. Que porra é aquela? Um monte de boi de cobre, aquela pia grandona lá….
— O mar de bronze sustentado pelos bois de bronze?
— “Mar” já é demais, né? E tem aquela porta lá para a entrada do rei… Eu lá quero uma porta só pra mim? Nem entro naquela porra. O negócio é religião moderna, Urias! Ao ar livre, na natureza, todo mundo pelado se comendo!
— Mas essa é a religião antiga, majestade!
— Antigo é verde, verde é bambu, bola na rede, pau no seu cu. Tá vendo? Seu argumento é inválido. Faz o seguinte: traz o altar de cobre lá do templo e coloca do lado desse aqui. Tira a pia grandona de cima dos boi, coloca numa base de pedra, sei lá. E empareda a tal da entrada real. Quando o rei da Assíria vier aqui visitar, eu quero que ele veja como o negócio aqui é modernidade. Meu Jesus…
— Quem?
— Hum?
— Nada. E aí vai oferecer sacrifício nos dois altares?
— Não, só no novo.
— Ué. E o antigo?
— Ah, sei lá. Vou ver. Talvez eu use pra macumba, pra adivinhação, não sei. Anda, Urias.
Urias, já de saco cheio do pior emprego do mundo, fez tudo que o rei mandou. E assim o rei de Judá, responsável pela proteção da religião oficial, profanou o Templo de Salomão.
Acaz morreu aos 36 anos de idade, e seu filho Ezequias subiu ao trono.

*   *   *

Uma última curiosidade sobre essa história… O autor do segundo livro dos Reis conta que na mesma época do cerco a Jerusalém, Rezim, o rei da Síria, invadiu a cidade portuária de Eilat (ou Elat), ao sul, expulsou de lá os judeus e levou sírios para viverem lá. Os sírios ainda viviam em Eliat quando o texto foi escrito, talvez uns duzentos anos depois.
Eilat foi onde os hebreus chegaram após a travessia do Mar Vermelho, quando fugiam do Egito. Davi reconquistou a cidade quando ela estava sob o domínio de Edom, e Salomão construiu o porto. Agora ela saía do domínio de Judá, e só seria repovoada por judeus em 1955. Nesse intervalo, passou de mão em mão igual tua irmã.
Eliat é hoje um balneário badalado no extremo sul de Israel.
Nada disso é muito importante. A curiosidade verdadeira é: essa é a primeira vez na Bíblia em que se usa a palavra “judeus” para referir-se ao povo de Judá.

A Eilat moderna

Após uma tarde intensa de debates


Os bichos aqui de casa são religiosos. Deístas, no mínimo. Acreditam em Deu, é isso que me dizem.
(depois descobri que “Deu” é “Deus” em catalão, então fica aí a possibilidade de que eu tenha adotado um cachorro e um gato catalães, vejam que chique)
Rondeli, o cão, diz que Deu criou os cachorros os cachorros criaram as pessoas. Açaí, o gato, diz que Deu criou os gatos, que criaram os cachorros, que criaram as pessoas. Um acusa o outro de heresia. Rondeli diz que Açaí é protestante, reformista, não-sei-quê. Nem entro muito na discussão, não entendo direito.
O cachorro é muito disso aí, da doutrina, da letra. O gato é mais místico. Pensa mais em Deu do que na religião organizada. Deu, ele me explicou, é o que eles (os gatos) chama de “Um Gatão Bem Grandão”. Perguntei o que Deu faz. “Cuida dos gatos, ué.” E dos cachorros? “Também, porque são criaturas nossas.” E das pessoas? “Às vezes. Nos dias em que Deu está bem, a caixinha de areia dele está limpa e ele não vomitou nenhuma bola de pêlo.”
Rondeli só resmunga em desdém e vira para o outro lado.
É fascinante.

Adultos sempre me irritaram. Me irritam hoje, me irritavam muito mais quando eu era criança, e infinitamente mais na pré-adolescência. Vinham sempre com os papos de como-você-cresceu, te-carreguei-no-colo, te-dei-banho, e eu pensava: “FODA-SE”. Queriam o quê? Que eu fosse anão e não crescesse nunca? Que eu tivesse tomado banho sozinho quando bebê? Que eu tivesse carregado eles no colo? A impressão que eu tinha era de que os adultos todos tinham esquecido de como era ser adolescente, pré-adolescente, criança. Devia ter um ponto na vida, eu pensava, em que caía um disjuntor dentro da cabeça e todas as memórias antes da vida adulta se apagavam. E aí eles ficavam chatos, conversavam coisas chatas entre eles, e coisas muito mais chatas comigo (quando conseguiam me ver, porque eu fazia questão de me esconder deles, os chaaaatos). Prometia a mim mesmo que quando eu crescesse isso não aconteceria. Que eu lembraria de como era ter 5, 8, 12, 16 anos, e falaria com as pessoas dessas idades sempre com isso em mente.
Hoje sou adulto — dizem. Trabalho, sou casado, pago contas, adotei bichos. Gosto de pensar que consegui cumprir minha promessa a mim mesmo. Quando falo com alguém mais jovem do que eu, tento me colocar no lugar da pessoa e não ser condescendente. Tento lembrar que talvez eu possa ensinar alguma coisa, mas que o mais provável é que eu aprenda.
Só que hoje, dia em que minha sobrinha Ana Júlia completa 12 anos, eu mal consigo conter o impulso do como-você-cresceu, te-carreguei-no-colo, te-acudi-quando-você-chorava-que-nem-uma-louca-no-berço-toda-ranhenta. É difícil porque eu lembro daquele bebê, daquela criança, e é difícil aceitar que a pessoa atual, com opiniões e gostos definidos, com um senso de humor lindo e um mau humor genético, com cabelo azul e personalidade de todas as cores, tenha um dia sido aquela criança. E aí dá um curt-circuito na cabeça. Peraí. Quem é você? Cadê o bebê que estava aqui?
Não é só isso: eu vejo minha sobrinha como um ponto numa linha do tempo que vem da minha avó, passa pela minha mãe e minha irmã, chega até ela. As mulheres que definiram quem eu sou, que moldaram minha personalidade, deixaram essa herança para Ana Júlia, que segue nessa função aí de melhorar o mundo.
E é tão lindo ver no que ela se tornou! Ana Júlia sempre foi generosa; dividia tudo com os outros. Hoje a generosidade se estende para questões mais complexas. Ela fica genuinamente indignada com o preconceito e com a injustiça. Não do jeito vazio e falso do militante, mas do jeito apaixonado e preciso que só a juventude tem quando encontra a generosidade.
Juju, eu não sei o que te dizer. Eu já tive 12 anos, mas nunca fui uma menina de 12 anos; isso faz toda a diferença. Eu também não sei o que é, numa fase da vida que já é difícil, ter a complicação extra de adaptar-se a outro idioma, outra sociedade, outra cultura, uma gente que não é a nossa. Deve ser muito difícil até conseguir expressar, falar sobre isso. Mas eu sei que você vai conseguir, já está conseguindo tirar de letra essa nova realidade. Porque assim como sua mãe, sua avó, sua bisavó, você é muito mais forte do que parece.
Nossa, como você cresceu!
Te carreguei no colo!
Não te dei banho porra nenhuma, porque eu sou preto mas não sou seu escravo.
Feliz aniversário, Juju. Te amo.

13133087_1009368595806989_2818833825650959679_nEu não sei como minha mãe fez.
A história dela não é fácil, não. Mas eu não vou contar aqui. Primeiro por que não estou aqui pra expor a véia. E segundo porque ela mesma não gosta de ficar falando. Sabe gente que vive falando do quanto sofreu, do quanto apanhou da vida? Minha mãe é o contrário disso aí. Dia desses, depois de muita insistência, ela me contou uma história da infância dela. Uma história que me fez entender melhor quem ela é, quem minha avó era, quem são meus tios. Perguntei por que nunca havia contado.

— Cada um tem sua história, Marco. Cada um sabe o que passou na vida. A gente não pode ficar jogando nossa história em cima dos outros.
Em 2013 eu tive outra surpresa dessas. Estávamos, eu e Ana Carlota, insistindo para que ela escolhesse um destino para viajar. Qualquer lugar! (que não fosse muito caro, porque também não estamos propriamente nadando em dinheiro). Ela só dizia que qualquer lugar estava bom, que não precisava nada disso, que “boa romaria faz quem em sua casa fica em paz” (um ditado que ela usa muito quando quer ser deixada quieta). Depois de muito enchermos o saco, ela cedeu:
— Sabe um sonho que eu sempre tive? Conhecer o Rio… Sempre vi nas novelas, parece tão lindo!
— Mãe… O Rio? O RIO??? Mas é aqui do lado! A gente vai quando quiser! Por que você nunca falou?
Ela só fez um gesto de “sei lá”. Fomos ao Rio, ela gostou muito. E eu, que já conhecia o Rio mas nunca tinha feito programa de turista, me diverti como nunca. Acho que a Ana também. Porque minha mãe é uma pessoa divertida, engraçada. Fala palavrão pra caralho, comenta maldades das pessoas que estão passando, fica comovida com bobagens. Minha mãe é o meu lado bom.
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Cada um tem sua história e escolhe o que fazer com ela. Você pode carregar sua história feito estandarte de procissão, pra todo mundo ver. “Olha como eu sofri”, “olha o que eu passei”, “eu não tenho culpa, minha vida foi muito dura”. Ou você pode usar sua história para aprender, ser uma pessoa melhor e ajudar os outros com sua experiência. Essa foi a escolha que minha mãe fez. Quem convive com ela tem muita sorte. Eu e meus irmãos temos mais ainda.
Te amo, mãe.
(tudo isso porque o aniversário da véia foi em abril, já dei presentes e hoje não vou dar porra nenhuma)

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Tá bom, vou expor um pouco a minha mãe.
Minha mãe tem uma coisa com Caetano Veloso. Caetano pode tudo. Homem que usa brinco? “Bicha.” Mas o Caetano usa brinco. “Caetano pode.” E saia? Caetano já saiu em público DE SAIA. “Caetano pode tudo.” Só adulto eu fui entender essa carta branca que o Caetano tem com ela. Ela me contou:
— Quando a gente veio pra São Paulo, baiano era tudo que havia de ruim. Tudo que não prestava era coisa de baiano, era baianada, era “tinha que ser baiano”. Se você era baiano, era como se você não existisse. Eu tinha vergonha de ser baiana. Aí apareceu o Caetano. Eu assistia ele na televisão, todo mundo prestando atenção naquele baiano ali. Teve aquela vez que vaiaram ele, eu fiquei tão brava! Era como se estivessem vaiando um irmão meu. Mas mesmo vaiando, ninguém ignorava Caetano. Todo mundo prestava atenção nele, todo mundo via ele. Que orgulho de ser baiana igual a ele!

Minha mãe adolescente era fã de Caetano. Quando ele gravou “Felicidade”, do Lupicínio Rodrigues, ela vivia cantando a música. Meu pai, que estava de olho nela, comprou um violão e aprendeu a tocar a música. Deu certo, e eu estou aqui graças a Caetano Veloso. Indiretamente. Por favor.
Uns anos atrás eu sonhei que estava num ponto de ônibus e no ponto do outro lado da avenida, recostado no banco, estava o Caetano com um violão, cantando “Trem das Cores”. Minha terapeuta na época, que já conhecia a história da minha mãe, falou que Caetano era para mim um símbolo de autoestima.
Então toma aí um pouco de Caetano, mãe. Essa música eu acho que ele fez depois que Dona Canô morreu. Tomara que você viva tanto quanto ela. Ô, véia que custou a morrer!

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Cês tão achando que eu sou um bom filho, né? Um bom filho da puta, se tanto. Dia desses eu tava insistindo pra minha mãe adotar um cachorro.
— Pra quê, Marco? Depois o bichinho morre e a gente fica sofrendo.
— Mãe, cachorro pequeno vive pelo menos 15 anos. Você tá com 65. Faz as contas. O cachorro que vai sofrer.