O mistério do diálogo

Dizem que escrever diálogos é um troço(ó) muito difícil. Eu acho fácil, mas isso não quer dizer nada: talvez meus diálogos sejam um troço(ô), e a arrogância me impeça de perceber isso. Talvez seja porque eu vá enfielirando as falas, enquanto a maioria das pessoas quebra a cabeça atrás de verbos dicendi originais a cada travessão. Os verbos dicendi, aliás, merecem um parêntese grandão.

(Aqui no Brasil, os jornalistas têm um problema sério com verbos dicendi. Leia uma notícia da gringolândia, qualquer notícia: eles usam o verbo “to say”, e só. Um ou outro arrisca um “declare”, mas é raro. Aqui é o cão: o sujeito diz, depois fala, depois declara, aí explica, então comemora, espanta-se, lembra, destaca, provoca, às vezes chega mesmo a regozijar-se. “‘Foi um resultado inesquecível’, mija-se todo fulano”. E no final, é claro, ele encerra, finaliza ou conclui, mesmo que não tenha concluído nada. O jornalista não sabe como terminar a matéria, então passa a responsabilidade para o entrevistado. “‘Eu gosto de sopa’, conclui, sorrindo, sicrano”. Reparem.)

Mas eu ia dizendo: se escrever é difícil, narrar um diálogo parece impossível. As pessoas se enrolam para contar uma conversa, mesmo a mais besta. Eu soluciono fazendo vozes diferentes — geralmente, a voz cheia de confiança, wit, aplomb e outras veadagens é minha, a voz de retardado é do interlocutor. Mas o povo por aí se perde. Prestem atenção quando ouvirem alguém contando um diálogo que teve ou testemunhou. “Aí eu peguei e falei assim”, “aí ela pegou e falou assimmmm…”, “aí eu virei pra ela e falei assim”, “aí, sabe o que ela fez? Pegou e virou pra mim e falou assim”. Meu Deus, o que esse povo tanto pega? Parece que essas conversas têm todo um protocolo: só fala quem pegar um negócio qualquer, um bastão, sei lá. “Aí eu peguei e falei assim, ei, cala a boca, o bastão está comigo, é minha vez!”. E o que tanto elas se viram? Deve ser cansativo conversar assim, se virando e pegando coisas a toda hora. Como conseguem se concentrar no diálogo?

“Eu, hein…”, finaliza Marco Aurélio.

34 comments

  1. Cara… então, você sabe como é chato traduzir textos do inglês pro português. E tem outra coisa também: em trabalhos científicos não se pode usar primeira pessoa por aqui. Na gringolândia, é só o que eles fazem!
    E sobre o “pegou” e “virou”: você leu meus pensamentos.

    1. Cara, estudando aqui no Canada eu lamento informar que você está errado. Aqui não se pode usar primeira pessoa em trabalho científico.

  2. Aí amigão, vc escreveu “enfielirando”. primeiro erro de digitação que concontro em seus textos, em cerca de um mês que visito seu blog.

  3. Sabe o que é triste? Quando eu estava na faculdade de jornalismo, os professores nos ensinavam e obrigavam a usar esse monte de sinônimos tão coloridos para mostrar que fulano disse X (para a foto, imagino).

  4. # Olhando pelo lado positivo… Não temos que colocar o sujeito no início de cada maldita oração. Em inglês, se você quer falar cinco frases a seu respeito, são cinco I no período. I, I, I, I, I, parece que a gente tá gemendo. 😀

  5. Há verbos piores do que os citados. Li um “alegra-se” fulano, mas pensava com meus botões que o cara só havia falado.
    E a voz do interlocutor é sempre a de retardado, principalmente se estiver falando do meu irmão ou de algum mala.

  6. rapaz, lá na universidade me ensinaram que é assim.
    não costumo ser transgressora e nem ser fora da lei.
    quem tenta ser diferente disso quer é aparecer, segundo minha professora de técnicas de reportagem e produção de texto.
    e tenho dito, de acordo comigo mesma.

  7. Também acho esse “peguei” bem chato, mas me incomoda mais o “tipo”. Queria saber como nascem essas muletas verbais tão desnecessárias. É difícil conversar com um adolescente que, tipo, tem que falar tipo a cada frase. Tipo, não dá para entender. Tipo, sacou?

  8. O pior não é o “pega-pega”… cada vez que muda o interlocutor, o travessão é substituído por “aí”. Dessa maneira o diálogo narrado fica “Aí eu fiz isso, aí ela disse que não ficou legal, aí eu peguei e disse foda-se…”

  9. hehe, texto mais legal do mundo.
    que ultimamente eu tenho a mania de ficar observando os ‘verbs dicendi’, que a gente em geral lê só os diálogos, e vai pulando a descrição… mas de uns tempos pra cá me deu um remorso, que o pobre escritor tem tanto trabalho pra pesquisar verbinhos e a gente nem pra prestar atenção, daí virei e peguei a mania. vá entender.

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