Despreparo

Os leitores mais antigos, dos bons tempos do Emotionrélio, devem se lembrar dos meus dentes tortos. A arcada superior vinha certinha até o meio; daí pra direita era como se os dentes não gostassem um do outro: tão separados que me dispensaram o uso de fio dental por toda a vida. Isso começou a mudar, porém, em janeiro de 2004, quando o Dr. Japonês Maluco entrou em minha vida e me botou trilhos na dentadura. Desde então, os incisivos se reconciliaram, deixando um vão imenso no lugar onde deveria haver um canino.
Pois, vejam, quando eu era moleque esse canino superior direito foi o último dos meus dentes de leite. Demorou tanto pra cair que o outro, cansado da espera, resolveu que ficaria ali dentro da gengiva para sempre. E por lá ficaria, não fosse o fato de o aparelho tê-lo reposicionado de uma forma tal que levou o Dr. Japonês Maluco a me propor uma pequena cirurgia, coisa muito simples, para puxar o danado para o lugar que lhe estava reservado há tantos anos.
Ah, as pequenas e simples cirurgias! Fui ao consultório ontem, e lá conheci o Dr. Japonês Bobo, cirurgião-dentista cabeludo e sorridente encarregado de expor o dente rebelde, cravar-lhe um botãozinho de ferro e conectá-lo ao aparelho, que então o puxaria para o lugar certo. Coisa besta. Bobagem. Claro.
— Preparado?
— Acho que sim. Olha, sou hipertenso. Isso pode atrapalhar?
— Ah, pode sangrar um pouquinho mais, bobagem. O Dr. Japonês Maluco te explicou o que vamos fazer?
— Mais ou menos.
— Ah… Hum. Cê sabe se tem alguma radiografia desse dente aí?
— Acho que ele tem.
— Hum. Bom, muito bom. Vou ali ver, já volto.
Peraí. O sujeito encarregado de fazer a cirurgia sequer tinha visto as radiografias? Mau sinal. Mas eu já estava lá, não ia saltar da cadeira e sair correndo sem olhar para trás, embora a idéia me passasse pela cabeça. Tentei relaxar e esperar pelo melhor.
O cirurgião voltou depois de alguns minutos, devidamente munido de radiografias e Japonês Maluco.
— Está trans-cisplatino, tá vendo?
— Tô.
— Na direção do suriname, certo?
— Certo.
— Então você abre, encontra o subsaariano, cola um botão na mitocôndria, e pronto.
— Ah, tá. Simples.
— Simples.
— Muito simples.
— Pois é.
— Xacomigo.
Os termos utilizados não foram bem esses, mas outros igualmente obscuros para minha ignorância ortodôntica. O cabeludo abriu uma bolsa e tirou lá de dentro uma caixinha com fios e um negócio que parecia um vibrador. Suei frio. Aparentemente ele pretendia utilizar uma técnica heterodoxa para puxar o dente pelo lugar mais difícil. Mas ele logo me tranqüilizou:
— Isto é um bisturi elétrico. Eu ponho essa ponta nele, conecto naquela caixinha, ligo na tomada, piso no pedal e pronto.
— E não dói?
— Nah, dói nada! Só a anestesia no céu da boca que vai doer um pouco.
— No céu da boca?
— É. Mas depois é tranqüilo, cê só vai sentir um cheiro de churrasco, bobagem.
O sujeito pretendia queimar minha boca, e parecia achar tudo muito divertido. Aplicou-me a anestesia, que afinal nem doeu tanto, e começou a cortar a parte de trás da gengiva com o tal bisturi. Fumaceira danada, cheiro de carne queimada, e ele achando tudo bonito.
— O bom do bisturi elétrico é que não sangra quase nada.
Comentário infeliz: terminou de dizer a frase e arregalou os olhos. Manja japonês de olho arregalado, aquela cara de mangá? Pois é. Ele botou uma gaze na gengiva, apertou. Tirou a gaze, deu uma olhadinha e logo desviou o olhar. Um cirurgião com medo de sangue. Ótimo.
Nisso entrou uma terceira personagem, a Dra. Ruiva.
— Fazendo churrasquinho aí? — todos eles pareciam muito felizes e empolgados com o bisturi elétrico.
— É. Acho que cortei uma arteriazinha, alguma coisa assim.
— Como assim?
— Tá sangrando, ó.
— Vixe. Vou chamar o Japa Maluco.
Ficaram, então, os três à minha volta, se revezando para apertar a gaze. Pelo rabo do olho eu via aquele chumaço rubro dentro da minha boca, e não achava nada engraçado. O Maluco resolveu ter um surto de sanidade:
— Marco, nós vamos dar um ponto aí. Está sangrando muito, melhor não arriscar. Tudo bem?
— HHHHMMMF.
— Ok, então.
O japonês costurou o buraco, limpou tudo e depois veio olhar.
— Ué. Por que você cortou aqui?
— Pra achar o dente.
— Mas não tem dente nenhum aqui. É mais pra cima, ó?
— Não, não. É aí mesmo. Trans-planaltino.
— Não, é trans-cisplatino. Olha aqui a radiografia. O que acha, Dra. Ruiva?
— Essa não é a raiz do lateral?
— Não, não. Ele tá na direção do suriname.
— Ah! Achei que fosse a guiana.
— É, são parecidos.
— Hum.
— Xeu cortar aqui então.
O Japonês Maluco pegou o bisturi e começou a passar na minha gengiva.
— Ué, esse negócio não tá funcionando.
— Ué.
— Ué.
— Pois é.
— Ei, cê tá pisando no pedal?
— Que pedal?
— Esse pedal.
— Ah! Esse pedal?
— Esse.
— Ah, agora sim!
— Achou o dente?
— Que dente?
— O canino.
— Ah. Acho que é ele aqui. Não é?
— Acho que esse é o lateral. O que acha, Dra. Ruiva?
— Acho que é o osso.
— Não, não. O osso é aqui, ó. Põe o dedo.
— Ah, é.
— O dente tá mais pra cá. Lisinho, tá vendo?
— Tô, tô.
— Então. Tá pronto.
— Mas e essa pelinha aí?
— Hum. Cê acha melhor cortar?
— Corta.
— Tá. Xeu ver… Ah, o pedal. Pronto. Cortei.
— Beleza.
E eu lá, deitadão. Depois de hora e meia, os doutores declararam a cirurgia um sucesso. Agora estou com um buraco quase no céu da boca, com um botãozinho de ferro grudado no dente exposto. Dizem que preciso voltar lá na semana que vem, para botar o tal fio nesse botão e começar a puxar o dente para onde deveria estar.
Ainda não sei se vou.

70 comments

  1. Meu caro, acho que agora que já cortou, colocou o tal botão e tudo mais, vá. Provavelmente vc vai ficar uns cinco dias sem conseguir comer e achando que seus dentes vão despencar todos de uma vez após colocar o fio, mas quem usa aparelho sabe que é só a impressão. Tudo pela estética 😉
    E acho que a Ana vai gostar de te ver com o sorriso completo 😀

  2. E p/ que tudo isso? Além de feio, você vai ficar deformado… É sério, cara,e ninguém compra livros dum escritor que baba pelo canto da boca.

  3. Olha! Agora que eu consegui parar de rir vou te dizer o q acho. Imagino que seja melhor vc ir lá colocar o tal do fio, pq deve ficar meio estranho esse negócio lá em cima na gengiva… Mas escreve depois contando com foi, pq eu tava mesmo precisando dar umas gargalhadas (desculpe, eu sei q rir do sofrimento dos outros é feio, mas não pude me controlar)
    Um grande bj e boa sorte.

  4. Ô cara, cê quase me matou de rir. E o pior é que tá no horário do expediente!
    Minha experiência com dentistas se resume a duas obturações um tanto quanto simples. E o meu lema é: trate bem dos dentes pra nunca ter que encontrar um dentista. Portanto, corra deles!!

  5. Como diria um amigo:
    “Cada um com sua vida ruim…”
    Você não tirou nenhuma fotinho ou fez diagramas? Engula uma câmera e mostre o dentinho pra gente…

  6. Foi mal , sei o que vc esta passando coloquei aparelho na ultima quarta, não tanto por causa da estetica mas por que desloquei o maxilar, não sei o que eh pior,se sentir dor toma tandrilax resolve mesmo.
    Estimo melhoras.

  7. Vá sim… esqueça da cerveja porque não tem que cicatrizar nada, tem é que tracionar o dente pro lugar certo. Aliás os termos foram ótimos…tô rindo até agora. Vai ficar ainda mais gatão!…hauhauahuhaua… brincadeira viu Ana 🙁
    Bjos peóples!

  8. Que nheca! que dó de você, amigo!!! Olha, eu já tive três filhas, parto normal, mas nada foi tãããããããão fubecado como as cirurgias de gengiva que fiz. Taqueopariu!

  9. Que nheca! que dó de você, amigo!!! Olha, eu já tive três filhas, parto normal, mas nada foi tãããããããão fubecado como as cirurgias de gengiva que fiz. Taqueopariu!

  10. É por isso que eu uso dentadura. Tiro da boca, limpo os dentes, fico polindo por duas horas e encaixo de novo. Pronto, simples.
    Esse negócio de escovar, fazer obturação, canal, ponte, safena, quimioterapia… isso é tudo muito demodê.

  11. Marco, seu problema dentário é idêntico ao meu. Também tive de extrair dois dentes, e agora eles estão sendo puxados para trás. É uma fase horrível mesmo, güenta firme, cidadão!

  12. Olha, nunca vi alguém ser tão “sortudo” assim como vc Marco, e o melhor vc se espõe para que nos leitores possamos dar risadas, hahahaha, vc é o cara!!!

  13. seu próximo livro vai ser um “odontorror” e vai estar em todas as mesas-de-centro de todos os consultórios de dentistas, que divertir-se-ão, espiando por câmeras, enquanto seus pacientes lêem.
    cê vai ver..

  14. KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK
    KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK
    KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK
    ai jesus.. eu vou ser despedida.. fico lendo essas coisas no trabalho e meu chefe olhando pra minha cara, me vendo morrer de rir do nada.. ;~
    muito bom..

  15. como fazia tempo que não lia isso aqui, achei que merecia uma história melhor que uma aventura geográfico-dental protagonizada por Marco Aurélio e um bando de japoneses baitolas…
    mas é isso… mas o layout tá massa!

  16. mas que cacete Marco..tu não sabe que os blogueiros devem ir ao dentista num espaço intercalado? agora to eu aqui quase banguela esperando a minha vez e vc fica furando fila e sendo acusado de plagio..mas é um feladaputa mermo!

  17. Jesus!!!!
    Usei aparelhos nos dentes por um tempinho mas cansei e eu mesma tirei aquela jóça…..agora,anos depois,meus dentes estão mais tortos que nunca;terei que voltar a usar os ferrinhos (que agora serão transparentes,ou seja:porcelana).
    Nooooossa,um de meus sisos estava num nasce-não-nasce ha mais ou menos uns 12 anos,só no começo desse ano(ou foi fim do passado,não lembro) é que resolvi que ele não precisava ficar mais na minha boca,vai eu pro consultório…Bem,pra encurtar esse cometário,que alias ja tá longo,depois de 4 tentativas frustradas de ‘pegar’ a anestesia (e eu passando dias com a boca sei-cortada) minha dentista chamou outro,especialista em animais,que,enfim,tirou o danadinho…..
    Se doeu? Bem,as pós tentativas sim e,depois da cirurgia definitiva eu quase tive uma infecção no osso da mandibula.
    Como vc memso diria: ‘coisa pouca’…..
    Até mais 😉

  18. hahahahaha ;D
    Olha, se eu fosse você, também estaria na dúvida,
    mas já que agora é só passar o fio, vai sim ;D ehehehe… se fosse pra fazer outra micro-cirurgia, eu não iria também :O
    Eu sempre passo aqui, mas não costumava comentar,
    a partir de agora, sempre que der passo aqui pra falar alguma coisa, mesmo que besta e sem sentido ;D
    Inté.

  19. Caracass eu não voltava nunca mais lá rsrs!! Passei por uma situação parecida fiquei 2 horas na cadeira e o pior com aluna fazendo a cirurgia no dente, quem terminou foi o prof dela pq ela mesmo coitada não poderia ser nem manicure!

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