Meu pai nunca deixou a barba crescer. Ele fazia a barba todo dia? Não sei. Um daqueles detalhes que a gente não nota. Pequeno demais, cotidiano demais.
Acho que ele fazia a barba todo dia. Devia ficar um dia sem fazer no final de semana. Sábado, provavelmente, já que domingo era dia de igreja: melhor terno, melhor sapato, cheiro de colônia pós-barba. No final do dia, a barba dele já estava áspera. “Pinicando”, eu dizia. Ele chegava do trabalho, eu ia abraçá-lo e sentia o cheiro bom dele e a barba pinicando.
(Eu confio em qualquer homem que tiver o cheiro que meu pai tinha quando chegava do trabalho. Nunca encontrei nenhum.)
Às vezes, quando a barba estava mais pinicante, ele corria atrás da gente pra passar a barba na nossa cara. Era divertido. Eu olhava e queria ter barba, queria ter o ritual de fazer a barba.
Eram esses os dois modos do rosto do meu pai: liso e pinicante.
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Na adolescência, perdi o costume de abraçar e beijar meu pai quando ele chegava do trabalho. Também perdi o costume de abraçar e beijar minha mãe quando eu chegava em casa. Sou bruto, demonstrações de afeto não são meu forte. Depois que minha irmã casou, ela nos abraçava e beijava quando vinha visitar. Meu irmão casou, mesma coisa.
Quando eu me casei, pude voltar a abraçar e beijar meus pais. Há quanto tempo não nos vemos, como vai, dê cá um abraço. Bobagem. Eu tinha dois anos de casado quando meu pai morreu. Nem deu pra aproveitar.
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Noite passada eu sonhei com meu pai. Estávamos frente a um palco, assistindo alguma coisa. Um show, um programa de TV, não sei. Ele estava bem jovem, a barba por fazer não tinha nenhum fio branco. Eu sabia que não era de verdade, meu pai está morto, mas mesmo assim conversava com ele. Era um avatar, um holograma, uma simulação; mas parecia real e isso me bastava.
— Pai — eu disse — existe vida após a morte?
E ele respondeu:
— Eu tenho certeza… que às vezes eu acho que sim, às vezes eu acho que não.
No sonho, não era só uma resposta sem sentido: era uma piada, e eu ria. Rindo, abracei meu pai.
Abracei meu pai e senti a barba dele no meu rosto. Áspera. Pinicando.
Comecei a chorar. Não o choro composto de um homem de minha idade. Não a lágrima descendo devagarinho, lagarta de vidro, a boca se torcendo pra baixo. Não: um “ãããããããããããã” prolongado, como choro de criança. Como o choro que chorei todos os dias (no banho, no carro indo pro trabalho) por muito tempo depois que ele morreu.
Chorei tão alto no sonho que acordei assustado e chorando — de verdade e de maneira aceitável. Peguei no sono chorando e pensando no meu pai, no abraço dele, na barba dele pinicando. Quando eu morrer vai ser igual quando eu casei? Vou poder abraçar e beijar meu pai de novo?
Eu tenho certeza que às vezes eu acho que sim, às vezes eu acho que não.
Tchê, que depoimento lindo. Eu, que nunca tive essa relação paternal que tu relatas, quase choro. De inveja, inclusive.
Meu pai, por ter sido militar, ainda faz a barba todos os dias. Por muitos fatores, me tornei um homem MUITO diferente dele, em ideologias, não-crenças, valores e até mesmo a barba, que não faço há anos.
Muitas vezes eu digo que não gosto muito do meu pai e até tenho um histórico de vida que me dá razões para dizer isso, mas teu depoimento me fez ter certeza que, apesar de tudo, se ele se for antes de mim, vou chorar e vou sentir saudade.
Meu pai é, frequentemente, tri escrotão, mas ninguém me abraça como ele.
Marco, você precisa escrever mais!
Tive um pai como o seu (o cheiro e a barba dele foram tão marcantes para mim que até achei que eu tinha escrito o seu texto).
Tinha dúvidas se foi um privilégio ou uma desgraça – porque perder pais como eram os nossos não é outra coisa, senão desgraça.
Mas foi privilégio, né?
Seu corno, me fez chorar pensando na mortalidade do meu pai…
Infelizmente não pude conviver com meu pai para ter essa conexão qd ele se foi, para mim era só uma pessoa importante, mas distante da minha vida.
Essa memória que você teve com o seu pai foi muito preciosa e tenho certeza que vai refletir nos seus filhos.
O Celso faz essa brincadeira da barba com o Lucas, que se mija de tanto rir, tomara que não acabe nunca.
Esse foi um dos melhores textos seus que já li. E olha que te acompanho faz tempo aqui no blog…heheh
Droga! Meus olhos estão suando sem parar e eu estou no trabalho. Preciso me recompor. Isso deve estar no top 5 das coisas mais lindas que já li na vida! Cara, você é muito talentoso! Parabéns!
Teu belo texto me fez lembrar um poema de José Luís Peixoto, aqui vai:
na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.
Que lindo :'(
Foda!
A morte tem algo que aproxima. Quando li suas linhas, pensei imediatamente nos sonhos que tenho com a minha irmã. Sempre tem situações completamente sem sentido, como xícaras voando. No entanto, sinto tudo tão real. O cheiro e a voz são as características mais forte desses sonhos e, não por acaso, o que tenho mais saudade. É. A morte tem mesmo algo que aproxima. Quando a pessoa passa a morar dentro da gente.
Obrigada por compartilhar.