Beatlemania tardia

Lembro-me de ter visto um especial dos Beatles em 1984, e de ter ficado besta ao saber que Paul McCartney fizera parte da banda. Eu era um fã recente de McCartney por conta do vídeo de Say, Say, Say, em que ele contracenava com Michael Jackson.

veja_johnlennon.gifAté então, eu pensava que bandas de rock tinham obrigatoriamente o formato de um líder mais um bando de músicos, e para mim o líder dos Beatles tinha sido John Lennon. Lennon era uma imagem na capa de uma Veja de 1980 que meu tio guardava com carinho. Eu já havia lido a matéria sobre a morte dele, e ficava chocado sempre que pensava no absurdo da coisa toda, assassinado por um fã. Só anos mais tarde, ao saber que Marvin Gaye fora morto pelo próprio pai, eu voltaria a experimentar uma sensação parecida.
Pois bem, John Lennon causara em mim uma forte impressão, e eu era um fã incondicional de Michael Jackson (e quem não era, naquele começo dos anos 80?). Sendo assim, Paul McCartney ganhava imensa importância por ter sido parceiro de ambos. Além disso, eu aprendia que uma banda podia ter mais de um protagonista.
Essa constatação, porém, não bastou para que a febre da beatlemania me afligisse. Na época eu me dedicava a ouvir o que tocava no rádio — Michael Jackson, Ritchie (meu segundo maior ídolo de então), Blitz, Ultraje a Rigor, Paralamas — ou o que meu tio ouvia em seu toca-discos, principalmente Pink Floyd e Raul Seixas.
Anos depois, acho que já na segunda metade da década, começou uma onda de nostalgia dos anos 60. Teve novela sobre a época, programas temáticos, músicas em tom saudosista. Para coroar tudo, Twist and Shout ficou semanas no primeiro lugar de todas as paradas de sucessos, mais de vinte anos após sua gravação. Nem isso me incutiu a curiosidade de ouvir Beatles, mesmo porque eu não tinha toca-discos em casa, nem toca-fitas, nem dinheiro para comprar discos ou fitas. Twist and Shout viria a ser desbancada por Can’t Take my Eyes Off You, e isso encerraria a onda nostálgica.

No começo dos anos 90 eu odiava Pearl Jam e considerava Nirvana apenas mais uma bandinha. Continuava fiel a Raul Seixas e Legião Urbana. Eu era um adolescente cristão e admirava tudo quanto era messias que me aparecia pela frente. Graças aos céus, descobri João Gilberto na época (principalmente por conta de um especial da Globo com ele e Tom Jobim), e meus conceitos mudaram. Comecei a ouvir música de outra forma e aprendi a tocar violão.

Nas rodas de violão eu não fazia grande sucesso, já que não sabia tocar Evenflow nem Plush. Compensava tocando a horrenda More Than Words ou coisas como Nothing Else Matters. Beatles? Nem de longe. O pai de uma amiga minha era fã, e desfiava as virtudes vocais do quarteto. Eu ignorava. Para mim, a banda era — como foi até há pouco tempo — música incidental, trilha sonora de elevadores e restaurantes.
Passei a década de 90 inteira ouvindo MPB e quase mais nada. Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, Ney Matogrosso, esse povo todo me enchia a cabeça. Ouvia algum deles até cansar, e então voltava a João Gilberto. E assim foi até o ano 2000, quando resolvi prestar atenção no que estava acontecendo e percebi que, afinal, nem tudo que era novo era ruim. Oasis, Blur, Chico Science e Nação Zumbi, Planet Hemp, Raimundos, Radiohead, Coldplay, Belle & Sebastian, Strokes. Depois que comecei o blog, em 2002, intensificou-se minha busca pelo que era novo, por influência das novas amizades, tudo gente dez ou doze anos mais nova do que eu. Eu começava um caminho que, inevitavelmente, me levaria aos Beatles.

De 2002 para cá, tive fases de ficar dias ouvindo uma música no repeat. Eleanor Rigby e I am The Walrus foram dois mp3 que quase se gastaram. E então, há algum tempo, uma matéria muito mal escrita sobre Sgt. Pepper’s… na Rolling Stone me despertou a curiosidade de ouvir o disco. O que me fez desencavar um velho CD de mp3 e ouvir Magical Mistery Tour e Revolver. O CD foi morar no carro e eu comecei a ouvir tudo, tudo.
De tanto ouvir Beatles, e com uma força da Fer, que pirateou quilos e quilos de material, viciei. Quero ouvir cada nuance, cada som de prato de bateria invertido, cada acorde. Li um texto dia desses que dizia que os Beatles pegaram o rock’n’roll do ponto onde Elvis Presley o havia deixado e o levou até o imponderável. Eu acho que é mais do que isso. Eu acho que, a partir de Rubber Soul, cada disco é uma dica do que se pode fazer com o som inventado pelos crioulos americanos. Toda banda que veio depois dos Beatles acaba seguindo uma dessas dicas.
Fiquei um tempão pensando em termos de probabilidade: qual a chance de dois gênios como John Lennon e Paul McCartney nascerem na mesma cidade, na mesma época, compartilharem os mesmos gostos, tornarem-se amigos e fundarem uma banda? Isso me deu nó nos miolos até que eu pensei numa alternativa mais simples: nenhum dos dois nasceu gênio, nem era gênio quando começou. A parceria entre eles, tão louvada no mundo todo, era sensacional, mas não foi o que os tornou semideuses. Lennon e McCartney só começaram a caminhar na direção da genialidade quando começaram a concorrer entre si. Foi como uma pressão evolutiva, com cada um querendo superar a última composição do outro. Fico imaginando a cara de Lennon ao ouvir Eleanor Rigby e a cara de McCartney ao ouvir I am The Walrus. “Feladaputa…”, devem ter pensado. A Day In The Life, composição de Lennon, acabou sofrendo enxerto de um trecho composto por McCartney. É como se Paul tivesse chegado ao seu limite: a música era perfeita demais, não havia como superá-la, o jeito era inventar um complemento e torná-la melhor ainda. A morte de John Lennon foi triste para muita gente, mas duvido que alguém tenha sofrido mais do que Paul McCartney. Sem seu concorrente, sem seu outro, ele ficou capenga. Compôs coisas lindas depois, mas nada que sobrepujasse suas criações dos tempos dos Beatles.

Aliás, nenhum deles foi o mesmo depois do fim da banda, nem mesmo Lennon. Os quatro juntos eram muito maiores do que a soma dos talentos individuais. Muito se especula sobre a separação. Fala-se na intromissão de Yoko Ono, no inconformismo de George Harrison, na ganância de Paul McCartney, no tédio de Ringo Starr. Eu também pensava assim, até descobrir que o último disco gravado foi Abbey Road, e não Let It Be, como acreditei até então. Após essa descoberta, percebi que a banda acabou por desgaste natural. E, arrisco dizer, acabou na hora certa, no auge. Seria triste e patético ver os Beatles hoje (com algum filho de John Lennon substituindo o pai, talvez Eric Clapton no lugar de George Harrison) fazendo uma turnê caça-níqueis mundo afora. Pararam na hora certa, cada um ganhou dinheiro para o resto da vida, e as dicas que deixaram inspiram muita gente até hoje. Que descansem em paz, os mortos e os vivos.

34 comments

  1. Cara, muito legal apesar de eu curtir muito mais as passagens bíblicas sacaneadas…hehehehe
    Mas assim ó: passei o link do blog pra um amigo meu que é beatlemaníaco e que hj mora me Londres pra, quem sabe, trocar umas idéias sobre esses caras que marcaram o rock n’roll pra sempre.
    Abraços e sucesso!

  2. Olá Marcurélio, finalmente vc saiu da tumba!…e saiu bem. Vc conseguiu sacar muito bem tudo sobre os Beatles, é isto aí, os caras foram até maiores que o Elvis e eram macacos de auditório do dito cujo. Mas, o fato é que só sabe da importância dos Beatles, quem, como eu viveu aquela época. O que escrevram até hoje a respeito deles não faz jus ao que nós vivemos naquele tempo. Mas fico feliz por ler o seu post. Muito bom. Abraço

  3. Só uma coisa, depois da primeira separação a banda ganhou muito com a influência do Harrison nas composições. Para mim o George foi o mais músico de todos os quatro, ele pode não ter a inventividade da dupla, mas era o melhor técnico com certeza. Mas como você disse o sucesso era dos 4 e nenhum deles conseguiu ser maior que a banda.
    []’s

  4. Ah. Um vez eu vi um pedaço de um filme que o Paul se encontrava com o John em NY após o fim da banda e o Lennon ficava sacaneando ele dizendo que ele era viciado em fama e etc…só não sei o nome do filme, será que alguém sabe?

  5. Bom… eu também tenho um Beatle preferido (além de ler seu blog há muitos anos) e por uma estranha coicidência, I am the walrus foi a música que me despertou para a música dos beatles.
    Outra coisa: sua opinião sobre a forma de influenciar da banda também é idêntica à minha. Eu sempre disse que numa perspectiva “Harold Bloom” das coisas os Beatles estão para o rock assim como o Shakespeare para a literatura…

  6. Na minha opinião, o primeiro álbum solo do Paul bota no chinelo qualquer álbum solo do John Lennon. Acho que o Paul, ao ver o fim da banda, começou a guardar composições pra ele e deus no que deu.
    E os discos do Ringo são todos sensacionais. Ele sim sabe ser feliz.

  7. Pois Black Bird meche comigo, toda vez q eu ouço a música eu reverencio os 3 gênios e um sortudo… rs
    Sempre fui músico, e beatles esta para a música moderna como sheak para a literatura, como alguém disse ai por cima!

  8. beatlemania? antes tarde do que nunca!
    um parênteses sobre o elvis: ele foi e ainda é um produto da mídia norte-americana, a qual jamais daria crédito de rei do rock à artistas negros como o chuck berry ou little richards, muito mais importantes para o rock, diga-se de passagem! ah, e não esqueça do george! ele é tão bom quanto a dupla e dizem as más línguas que, vez em quando, era boicotado pelos mesmos… não duvido! alguns de seus discos solo são, sem sombra de dúvida, melhores que os dos outros três integrantes! escute All Things Must Pass e verás…
    desculpe pelo comentário gigantesco! leio teu blog a alguns anos e nunca comentei nada… descarreguei numa vez só!

  9. Parabéns, atrasado. 😛
    Depois diz o que acha do álbum branco também. É o meu preferido por causa de Dear Prudence, While My Guitar Gently Weeps, Happiness Is A Warm Gun, Martha My Dear, Blackbird, Why Don’t We Do It In The Road?, I Will, Julia, Im So Tired mas vou continuar com o outro disco: Yer Blues, Mother Nature’s Son, Everybody’s Got Something To Hide Except Me And My Monkey, Sexy Sadie, Helter Skelter, Long, Long, Long, Revolution 1, Savoy Truffle, Cry Baby Cry.

  10. Excelente texto, Marco. Seja bem-vindo à Beatlemania. O melhor vício do mundo, e não faz mal nenhum!
    Aproveito pra te convidar a fazer parte da nossa comunidade do Orkut.
    Beatles School
    Tem muita coisa legal. Uma galera que saca muito de Beatles, e todos são bem educados.

  11. Cuidado, Beatlemania é doença. Eu que o diga: estou “beatlelada” há mais de uma década.
    E estou mais velha também. É estranho dizer “há mais de uma década”. E pensar que em 1995 a minha vida mal era uma década. Hoje são duas delas. Em breve, quase três. Que medo.

  12. tente ouvir o White Album, são 3 discos solo em 1, 3 por que Ringo não compôs nada, até aquela época.
    Qualquer um percebe a diferença entre Ob-la-di Ob-la-da e Revolution #9.
    Aliás, Revolution #9 só não é a mais revolucionária da época por que ja existia o Velvet Underground.

  13. Leandro:
    1. Se eu disse que já ouvi tudo dos Beatles, é tudo mesmo. De onde você tirou que eu não ouvi o álbum branco, caralho?
    2. Revolution #9 é uma porcaria pretensiosa, uma vergonha para a cultura e civilização ocidentais, que deveria ser enterrada e esquecida para todo o sempre.

  14. Marcurélio, esqueci de dizer que…o album no qual os Beatles começaram a mudar seu som e apontar novas tendências foi “Revolver”. Na verdade o divisor de águas seria “Sargent Pepers”; a propósito, eu tenho gravado em video a série que foi produzida pela BBC, “30 anos do Sargent Pepers”. Vc deveria assistir, porque ali se tem um panorama do que foi na realidade a Contracultura, movimento que mudou praticamente o mundo, no panorama, cultural,político e social. Aì se pode entender melhor o que foram os Beatles realmente. Pode-se entender quem foi John Lennon e porque Richard Noxon e seu governo o perseguiram e na minha opinião acabaram eliminando-o.

  15. Putz cara…. só visito o site de vez em quando e nunca comento.
    Mas esse post foi impressionante!!! Parece q fui eu que escrevi.
    Parabéns!

  16. Ah, tão bom quando vc escreve 🙂
    Eu sei que vc não gosta de ser pressionado, mas adoro quando tem post novo aqui…
    Leio o blog há anos e nunca comentei, mas como tu tem escrito bem pouco e às vzs tenho a impressão de que pode parar pra sempre, vim agradecer por ainda postar, mesmo que raramente. Beijos!

  17. Meu caro,
    A vantagem de conhecer velho os Beatles é ter o prazer de conhecer uma banda do nível dos Beatles recentemente!!!!!
    Outra banda capaz de gerar tais sentimentos (para quem ainda não conhece) é a boa e velha brazuca MUTANTES!!!!!
    Dois pontos:
    1 – George Harrison e Ringo Star são músicos espetaculares!!!!! Eles também contrinuiram muito!!!!
    2 – Forçando a barra, eu diria que TODOS os movimentos que ocorreram no rock pós-Beatles foram, de alguma forma, antecipados por alguma música do quarteto.
    Saudações.

  18. Marco, se interessar, tem um livro escrito pelo George Martin muito bom, chama-se “Paz, amor & Sgt. Pepper”, sobre a gravação do álbum. O cara é tão bom quanto, afinal, era capaz de traduzir a genialidade dos gajos para a música. E uns meses atrás, saiu um artigo na piaui onde o sujeito tinha um ponto de vista semelhante ao seu na relação “lennon x macca”. caso interessar possa, segue o link
    http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=319&anteriores=1&anterior=122006
    abraço!

  19. Qual o problema de uma banda velha, com um dos integrantes mortos, se juntar anos depois com o filho de um desses integrantes? hein? Hein? HEEEEEEEEEEINNNNNNNN???
    Pro seu governo, se Led Zeppelin viesse ao Brasil com o filho de John Bonham substituindo-o (como fizeram na Inglaterra), eu deixava de comer mas não perdia essa porra!!!

  20. Marco, esse post foi o melhor que li sobre Beatles até hoje.
    Curto a banda, mas não o suficiente para entender e degustar cada acorde, melodia, ‘som no prato’, etc.
    Fantástico
    Abraços

  21. Marcuréio, e eu pensando que tinha sido um fã tardio de beatles por ouví-los pela primeira vez aos 7 anos. No meu casamento entrei ao som de “With a Little Help From My Friends”. Eu queria Black Bird também, e outras mais, mas não dava tempo.
    Abraço

  22. Cara, super o seu texto! Envolvente!!!
    Sou fã desde criancinha (e já tenho 50), minha dedicação teve um hiato para formar casar, ter filhos, etc.
    Gosto de escrever tb e gostaria de compartilhar meus textos com a galera interessada.
    Abraço e parabéns!!!!

  23. Cara, fui um privilegiado. Tinha 14 anos quando ouvi em 1964 “i want to hold your hand” na rádio nacional lá em Santos. Naquele minuto, odiei esse tal de beatles porque senti que, naquele momento, desbancava o meu maior grupo do mundo: The Clevers (mais tarde, os Incríveis).
    Mas, não entendi porque 10 minutos depois já estava caçando esta música nas outras rádios. No dia seguinte implorei pro meu pai comprar o compacto (duplo). Foi um dia maravilhoso na minha vida e com certeza na d”Os incríveis” também.
    Cara, seu texto está extraordinário – parabéns mesmo !!!!
    francisco paulo

  24. parabéns pelo texto.
    só não aguento a mania q certas pessoas tem de colocar o george no mesmo nível de john e paul.
    george era fantástico também, mas pra dar uma de diferente, o cara tem q dizer q george era tão bom quanto. não era.
    e o trabalho solo de lennon tem as melhores músicas tb. pode não ter quantidade de músicas boas, mas as melhores são de lennon, sem dúvida.

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