Coração leviano

Meu coração tem braços, pernas e rosto. Sim, ele tem. As pernas são curtas e grossas demais, os braços são longos demais, o rosto é feio e os dentes são tortos. Muito parecido comigo, meu coração.
Dormiu durante anos, então foi um susto imenso quando, há quase oito meses, ele foi acordado por uma voz e resolveu sair para ver de quem era: escalou pelo esôfago, dependurou-se na glote, usou a língua como trampolim e saltou. Muita disposição para quem dormia ainda há pouco. Quando pensei que ele ia esborrachar-se no chão — o que seria merecido, dado o atrevimento — ele abriu um par de asas. Feias, murchinhas, encardidas, mas ainda assim! Asas! Deu duas voltas pelo bar e veio pousar em meu ombro. Olhou para a dona da voz e resolveu nunca mais voltar aqui pra dentro, encantado por sei lá que tom de azul nos olhos e sei lá que tom de fina ironia na voz.
Agora ele vive assim, orbitando minha cabeça por onde eu vou. Às vezes ele sai, anda um pouquinho até ali, depois volta. Agora mesmo está tomando café lá na copa enquanto escrevo. Sinto-me meio constrangido com esse coração desavergonhado, sem pudor nenhum de mostrar-se a todo mundo. Eu olho para as outras pessoas, e todas elas têm corações disciplinados e obedientes, muito bem trancados dentro de suas caixas torácicas. Por que justo o meu tinha que ser assim rebelde?
Vez em quando ele pousa aqui no meu ombro, para ler algo que ela tenha escrito, ou então — mais raro — para ouvir sua voz. Às vezes o que ela escreve ou diz o deixa num estado de júbilo insano, e ele sai dando piruetas, fazendo acrobacias no ar, exibindo-se para espanto dos outros e para minha total vergonha. Em outras ocasiões, o que ela diz — ou, mais freqüentemente, o que ela deixa de dizer — o deixa cabisbaixo. Então ele vai para um canto, encolhe as asas e fica lá retorcendo as mãozinhas e resmungando.
Nessas horas, eu bem sei, ele pensa em voltar aqui pra dentro e retomar seu sono confortável. Mas seu orgulho é muito grande, e ele jamais aceitaria tal derrota.
Vai ficando por aí, portanto. As pessoas apontam para mim, cochicham, riem. Aos poucos eu me acostumo.

22 comments

  1. Cara ….. eu simplesmente AMEI o seu blog. Esse post é ótimo. O título é GENIAL. Com certeza voltarei, e voltarei mais vezes pra ver o q será desse seu coração malcriado.

  2. Caramba, Marco. Quem te vê falar tantas besteiras numa mesa de bar, não imagina que vc é um cara tão sensível assim…
    Espero que o ano novo que tá batendo nas nossas portas traga boas novas para vc e para a menina dos olhos azuis.
    Só que aí, se prepara, pois se o seu coração já está te deixando envergonhado qdo anda à toa na frente de todos, quando a menina disser o que hoje omite… ai ai ai…. acho que ele passará a andar feliz e saltitante tds os dias, não dando a mínima para quem estiver olhando.
    Beijos e feliz ano novo!

  3. Jah ouviu “Hey, you´ve got to hide your love away”, dos beatles? Acho que vc vai gostar. Fala de um cara que esta como você. 🙂 Pior que isso é seu coração estar nos USA e só voltar daqui a 4 meses…

  4. Meu coração também é assim, traquinas; a dor provocada pelas estripulias do danado estava
    ultrapassando o limite do suportável.
    Foi por isso, para me preservar, que resolvi fazê-lo adormecer, já que não posso matá-lo de uma vez por todas.
    Foi e está sendo um processo doloroso, realizado à duras penas, como não poderia deixar de ser,
    mas eu já não podia mais me dar ao luxo de sonhar (fantasiar acho que é o termo mais apropriado
    no meu caso) sem nenhuma sustentação real, sem algo tangível, a que eu pudesse me agarrar e ter
    como meu. Culpa da maldita internet que criou a pessoa-ideal-mas-que-vive-a-quilômetros-de-distância
    só pra fuder de verde e amarelo com a vida de românticos inveterados, tipo eu costumava e gostava de ser.
    No entanto, talvez a tal pessoa seja ideal justamente por não estar atingível, humanizada, com os defeitos expostos,
    como acontece com quem convivemos diariamente. Além do mais, todos sabemos que desejar uma coisa é
    sempre mais gostoso do que tê-la ao alcance das mãos. Ou pelo menos era assim. Ou deveria ser assim. Sinto que acreditar
    nisso pode me ajudar na recuperação, sei lá. Na verdade eu não sei mais de nada. Nunca soube.
    Não sei nem se essa minha nova postura, suprimindo o meu amor, faz de mim um cara corajoso, forte ou um
    apenas um grandessíssimo covarde, mas desejo pra você e pro seu coração a sorte que eu mesmo não tive.

  5. Amar
    (Claro Enigma)
    Que pode uma criatura senão,
    entre criaturas, amar?
    amar e esquecer,
    amar e malamar,
    amar, desamar, amar?
    Sempre, e até de olhos vidrados, amar?
    Que pode, pergunto, o ser amoroso,
    sozinho, em rotação universal, senão
    rodar também, e amar?
    amar o que o mar trás a praia
    o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
    é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
    Amar solenemente as palmas do deserto,
    o que é entrega ou adoração expectante,
    e amar o inóspito, o cru,
    um vaso sem flor, um chão de ferro,
    e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
    Este o nosso destino: amar sem conta,
    distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
    doação ilimitada a uma eterna ingratidão,
    e na concha vazia do amor a procura medrosa,
    paciente, de mais e mais amor.
    Amar a nossa falta de amor, e na secura nossa
    amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
    Carlos Drummond de Andrade

  6. Outro novo ano surge e você pode fazer tudo diferente ou tudo exatamente igual. Eu acredito que convém não se repetir. Mas só você pode escolher o caminho. Feliz 2004? Não. A contagem dos anos, no fundo, não importa. O que realmente faz sentido, e isso não eu posso negar, é que há no ar uma energia diferente no dia 31 de dezembro. Uma vibração forte e positiva numa teia de sonhos e desejos. Afinal, quase tudo o que se faz, ou se tem, é resultado de uma escolha. E que façamos boas escolhas daqui pra frente!

  7. Um cara que escreve isso não pode ser o mesmo cara que escreve todo o resto. Devem ser Marco e Aurélio – dois caras. Ou então o problema é mais grave: dupla personalidade.
    Post legal, este!

  8. Marcurélinho, que é isso?
    Nossa… apaixonei. tô xonada.
    Mas bah guri, tu tens que dar uma controlada nesse monstrinho aí.
    Vai passear, tomar um ar. Ou então pela ela no tranco da um tapaço, joga no chão e “alivia” teu coração. Bagual.

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