Construção

As lágrimas pingam sobre a fórmica verde da mesa da cozinha. De cabeça baixa, ela é toda silêncio. Os vizinhos que vieram trazer a notícia entreolham-se, incomodados. Que fazer diante da solidez silente de tamanha tristeza?
Ela permance de cabeça baixa, quieta, repentinamente inconsciente da presença dos vizinhos. Seus pensamentos, no entanto, atropelam-se uns aos outros num patchwork de lembranças do marido recém-morto. Pra não enlouquecer, tenta conter o galope do cérebro, mantendo em foco a noite passada, a última noite com ele.
E que noite! Ele chegara disposto, carinhoso, tão diferente do seu jeito de sempre chegar. Fôra uma noite de suspiros, gemidos, suor, desespero, gozo. E pela manhã despedira-se dela com um beijo prolongado, de adeus, em vez do rápido beijo no ar de todos os dias. E fizera questão de acordar os filhos para despedir-se deles também. Parecia que estava adivinhando que não voltaria.

* * *

Saíra de casa no horário de sempre para pegar o trem. Ficou na plataforma esperando, como quem espera alguma coisa mais linda que o mundo, maior do que o mar. Sentia-se cheio de vida, entusiasmado. Queria cumprimentar as pessoas, queria cantar, dançar. Mas, tímido, apenas mantinha seu sorriso frouxo nos lábios e esperava o trem.
Uma hora depois, atravessava cabisbaixo a avenida em direção à obra em que trabalhava há meses. Subiu o andaime, um perigo, de forma automática, e começou logo a trabalhar. Hábil no serviço de tantos anos, ergueu quatro paredes na parte da manhã. A alegria que sentia resolveu manifestar-se em lágrimas, o que era estranho para ele. Quando estava alegre, ria. Quando estava triste, calava. Quando estava muito triste, procurava um lugar escondido para chorar um pouco. Nunca experimentara esse pranto estranho, de motivo difuso, as lágrimas misturando-se ao cimento que lhe salpicava o rosto.
Mas soou a sirene e ele sentou-se junto aos companheiros para o almoço. Feijão com arroz, sempre, preparado com carinho pela mulher todas as noites. Comeu como um nobre.
Pensando na mulher, sentiu que as lágrimas queriam sair-lhe novamente. Para evitá-las, levantou-se e começou uma inusitada dança. Os outros a princípio estranharam o colega, sempre tão quieto, desenvolto daquele jeito. Mas era mesmo muito engraçado, e todos riram muito, e ele mais que todos, com sua gargalhada alta. E continuava dançando, todo desengonçado. Num passo mais complicado, no entanto, tropeçou nas próprias pernas. Por um momento, pareceu um bêbado cambaleando. No instante seguinte, mergulhou no vazio, terminando seu curto vôo no asfalto lá embaixo.
* * *

— Porra, que trânsito é esse? Não costuma ser assim a essa hora.
— Parece que teve um acidente naquela obra grande lá. Um paraíba se espatifou na avenida.
— Puta que pariu… Esse desgraçado tinha que se matar justo na hora do almoço?

14 comments

  1. Claro que nordestino não é escória. Escória é quem não diferencia autor de personagem…
    No mais, muito legal a releitura de “Construção” com referência a “Valsinha”…

  2. Há dias tenho lido seu blog aqui, quietinha, mas hoje resolvi falar.
    A delicadeza da sua escolha, da situação, dos personagens, das músicas, só me deu mais saudade dos textos do Chicote Verbal.
    Volta…por favor…

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