— Vai logo, pai! O que você tanto escreve?
— Calaboca, Judá. Estou escrevendo uma carta pro meu irmão pra ver se a raiva passa e eu não esgano vocês, seus imbecis.
— Porra, pai, a gente precisa ir logo pro Egito. A comida já tá acabando. Além do mais, se o senhor não lembra, Simeão continua por lá, e vai saber o que aquela biba egípcia está fazendo com ele a essas horas. Vai ver até obrigou o coitado a se casar com ela. Então vê se termina logo essa merda de carta.
— Tenho que escrever devagar, o Esaú não sabe ler rápido. E não lhe devo satisfações. Se vocês soubessem ficar de bico fechado, o viadinho não saberia da existência de Benjamim e tudo teria corrido bem.
— Ué, como a gente ia saber? “Ah, vocês têm um irmão? Então eu vou prender um de vocês e só vou soltar quando o caçula vier aqui”. Porra, não dava pra adivinhar.
— Tá bom, tá bom. Já que não tem outro jeito, levem o Benjamim. Mas muito cuidado, seus porras. Se acontecer com ele o que aconteceu com José, eu juro que acabo com a raça de vocês.
— Beleza. Estamos indo então.
— Estão indo o cacete! Pensam que é assim? A bicha deve estar muito puta com vocês, achando que são ladrões e espiões. Querem chegar lá de mãos abanando? De jeito nenhum! Tomem, separei uns presentes pra vocês levarem. Nada de mais: Uns perfumes, um estojo de maquiagem, lencinhos, bichinhos de pelúcia, bombons e essa echarpe de seda. Foi assim que eu enrolei Esaú quando ele queria me matar, com presentes. Aprendam a usar a cabeça. E além dos presentes, vocês vão levar o dinheiro em dobro, para compensar o que estava dentro dos sacos de mantimentos.
— Até agora não entendemos isso, pai. Pagamos tudo lá, e quando abrimos os sacos…
— Não me venham com essa conversa pra camelo dormir, que eu não tô com paciência hoje! Se vocês tivessem se lembrado mesmo de pagar, o dinheiro estaria lá no Egito. Ora, onde já se viu? Vão querer que eu chame o Padre Quevedo para esfregar na cara de vocês que isso tudo é una gránde mentira, que dinero que volta para o saco non ecsiste, que vocês son charlatans?
— Tá bom, pai, já entendemos.
— Então é isso. Cuidem bem do meu filhinho, que é o único que vale alguma coisa.
Depois de tantas palavras de carinho e amor paterno, os filhos de Jacó pegaram a estrada de volta para o Egito, lá chegando sem maiores percalços.
Ao ver Benjamim com eles, José chamou o despenseiro.
— Menino, prepare uma festança pra esse pessoal que está vindo aí. Muita comida, muita bebida, quero receber bem esses moços.
O empregado nem estranhou. Achou que o patrão estava planejando uma festinha íntima para os rapazes hebreus, e tratou logo de cumprir as ordens. Depois de tudo pronto, foi chamar os caras e os levou à casa de José. Os irmãos começaram a ficar preocupados. Bah, preocupados é pouco: bateu um baita cagaço danado neles.
— Fodeu, cambada. Isso aí é armadilha, por causa do dinheiro que voltou pros sacos.
— É, e ele vai pegar a gente de escravo.
— Ou pior.
— Como assim, pior? O que pode ser pior que isso?
— Ele pode nos obrigar a prestar favores sexuais a ele pelo resto da vida.
— Puta que pariu, é verdade. Como eu já disse, fodeu, cambada.
Conversa vai, conversa vem, cada um imaginando um destino pior que os esperava, resolveram enfim ir falar com o despenseiro.
— Ôpa.
— E aí?
— Tá lembrado da gente?
— Lembro sim. Cês vieram comprar mantimentos aqui uns tempos atrás e o patrão desconfiou de vocês, achou que eram espiões e tal.
— É isso aí. E olha só que coisa estranha: Daquela outra vez, quando chegamos em casa e abrimos nossos sacos, o dinheiro que a gente tinha pago estava todo lá dentro.
— Eita, peraí. Que negócio esquisito, pra que vocês abriram os sacos? Não doeu não?
— Os sacos de mantimentos, rapaz.
— Ah, esses. E então?
— E então é isso, não sabemos como aconteceu. Mas trouxemos o dinheiro todo de volta, pra vocês não pensarem que a gente é ladrão nem nada assim.
O despenseiro poderia aproveitar a deixa para sacanear os pobres hebreus. Mas ele mesmo tinha colocado o dinheiro de volta nos sacos por ordem de José, e não era nenhum Zezinho pra ficar infernizando a vida dos outros.
— Hum… Estranho isso aí, porque eu mesmo recebi o dinheiro. Deve ter sido algum milagre, sei lá. Bom, deixa isso pra lá. Ôpa, olha quem tá vindo lá! É o irmão de vocês. Viu como meu patrão cumpre o que promete?
De fato, depois de rever o irmão mais novo, José cumpria com a palavra e libertava Simeão. O reencontro dos irmãos foi emocionante.
— Oi.
— E aí.
— Belê.
— Sussu.
— Só.
Após essa cena comovente e enaltecedora dos mais nobres sentimentos fraternais, o despenseiro levou os onze irmãos para lavarem os pés e providenciou forragem para os jumentos (falo das montarias dos caras, longe de mim insinuar características asininas nos filhos de Jacó). Quando José chegou, na hora do almoço, os onze irmãos ofereceram a ele os presentes. A cada embrulho que abria, nossa querida gazela soltava “uis” e “upas” e “uias” de surpresa e felicidade. Abertos os presentes, perguntou a eles:
— E o papai de vocês, de quem falaram da outra vez, está vivo ainda? Está bem?
— Ah, tá bem demais, Seu José. Cabeça dura, mas um coração mole que só vendo.
— É, eu sei.
— Hein?
— Hein?
— Como foi que o senhor disse?
— Não disse nada. Humpf. E esse menino aí é o caçulinha, certo?
— Isso mesmo, Seu José. Cumprimenta o moço, Benjamim.
— Oi.
— Ai, que lindinho! Deus te abençoe, criança linda.
A visão do irmão e a lembrança do pai foram demais para José, que deu um jeito de sair dali rapidinho para chorar. Chorou, espernou, descabelou-se, quase desfaleceu de pranto. Recomposto, ordenou aos servos que servissem a mesa. Já aliviados, os irmãos comeram como porcos. Fazia tempo que não viam tanta comida.