— Na edição de ontem do Mesopotâmia Urgente, falamos do homem que está enriquecendo no Egito graças às cheias do Nilo. Hoje veremos como muitas outras pessoas aproveitaram a idéia e… Esperem, acaba de chegar uma notícia às minhas mãos. Parece que houve uma chacina em Canaã. Aconteceu na cidade de Siquém, onde está nosso correspondente para trazer maiores detalhes.
— Não foi bem uma chacina, seria melhor qualificar o que aconteceu como genocídio. A cidade está destruída e deserta. Apenas um homem foi encontrado no meio dos escombros. Estava bêbado e falando coisas incoerentes. Depois de tomar uma ducha fria e um café forte, acabou confessando à polícia que participou do saque da cidade, ajudando os filhos de seu patrão, um nômade rico chamado Jacó, que morava aqui já havia alguns anos, em um terreno cedido pelo apresentador e empresário Senor Abravanel. Estamos com ele aqui. Para resguardá-lo, sua identidade será mantida em segredo. Você pode nos contar o que aconteceu?
— Peraí, esse negócio de identidade em segredo. Vocês não vão colocar aqueles quadradinhos na minha cara e me deixar com voz de pato?
— Sinto muito, estamos ao vivo e não dá pra fazer isso. Mas posso te garantir que essa máscara de Tiazinha e o prendedor de roupa no nariz são suficientes. Por favor, conte sua história.
— Então, rapaz… Meu patrão, Seu Jacó, tem uma filha muito bonita, chamada Diná. Os irmãos dela são muito ciumentos, não deixavam a menina sair de jeito nenhum. Mas você sabe como são as moças nessa idade, aquele fogo na periquita, então um dia, deve fazer uma semana, ela saiu escondida pra ir conhecer a cidade.
— A família do seu patrão não morava na cidade?
— Não, a gente morava em tendas. Mania da família do Seu Jacó, acho que eles gostam de acampar, sei lá. Pois então, a menina foi conhecer a cidade e o príncipe de lá, Siquém, acho que ficou apaixonado pela menina e levou ela pra casa.
— Siquém? O cara tem o mesmo nome da cidade?
— É, não sei se o pai dele botou esse nome na cidade por causa do filho ou se foi o contrário.
— O pai dele era o manda-chuva por aqui, então.
— Isso mesmo. Hamor era o nome dele. Um senhor muito distinto. E Siquém também era um rapaz muito decente. Mas você não conheceu a Diná, a menina era linda demais. Todo mundo tinha vontade, mas Siquém foi e fez. A menina chegou virgem à cidade, e duas horas depois já não era mais. A história se espalhou, Seu Jacó acabou sabendo e contou pros filhos o que tinha acontecido. Ah, os meninos ficaram muito putos com a história toda e a gente logo percebeu que isso não ia acabar bem. E não adiantou nada Hamor ir falar com o patrão.
— Ah, então ele chegou a ir falar com a família da moça?
— Ôpa, foi sim. Ele e o filho. Foram lá para pedir a menina em casamento. Muito honrado da parte deles, eu achei. Hamor falou pro meu patrão que Siquém estava apaixonado pela filha dele, que não falava noutra coisa e queria casar com ela. Propôs que passassem a conviver, e ele daria a mão das filhas aos filhos do patrão, e nós poderíamos viver na terra deles. Mas o mais bonito foi o menino falando, o Siquém. Tava quase chorando. Disse que Diná era a razão da vida dele e que eles podiam pedir o que quisessem e ele daria, pedindo em troca apenas que deixassem ele ser feliz com a menina. Foi bonito, muito bonito mesmo.
— Mas então, por que tudo não se resolveu?
— Ah, você não conhece os meninos… Inventaram que não podiam deixar a irmã se casar com um homem incircunciso, que seria uma vergonha e coisa e tal. Disseram que só aceitariam a proposta deles se eles e todos os homens da cidade fossem circincidados.
— Circuncidados? Que é isso?
— Ah, um costume da família desde os tempos do velho Abraão, avô do chefe. Eles cortam a pele do… Do… Como é que eu vou dizer?
— Do pinto?!?
— É, isso aí. Todo menino que nasce eles cortam a pele do pinto, e todo empregado que vem trabalhar aqui com eles tem que fazer a mesma coisa.
— Negócio esquisito…
— Também acho, mas eles dizem que foi ordem de um deus aí deles. Eu acho é que esse deus falou o negócio só de sacanagem e o velho acatou. O que importa é que o costume pegou, e os meninos se saíram com essa para cima dos caras de Siquém. Hamor e o filho acharam que não tinha nada demais, foram até a porta da cidade deles e chamaram todos os homens para comunicar a circuncisão geral. Não sei se eles gostaram muito da idéia, eu não gostaria, mas cê sabe como é, ordens do rei, que é que cê vai fazer? Além do mais, fiquei sabendo que Hamor explicou tudo direitinho para eles, que se cortassem a pele do pinto o príncipe da cidade ia se casar com a filha do ricaço, e todo mundo saía ganhando. Bom, só sei que todo mundo foi circuncidado naquele dia.
— Peraí, conseguiram passar a navalha no pinto de todos os homens da cidade num só dia?
— Ah, a cidade era pequena… Para você ter uma idéia, nosso acampamento tinha bem mais habitantes que a cidade, contando os servos todos. A única diferença é que eles viviam num lugar fixo, em casas de pedra, e a gente nessas merdas de tendas cheias de goteira, tendo que cagar no mato, sem água encanada, sem luz elétrica.
— Certo. Mas ainda não entendi: Como é que cortar o pinto levou a tamanha tragédia? Infecção hopistalar?
— Não, você ainda não entendeu o que os filhos do patrão estavam planejando. Tudo isso aconteceu há três dias. Na noite de ontem, aproveitando que todos os homens da cidade estavam meio prejudicados por causa da operação, Simeão e Levi, os mais velhos, convocaram a gente pra invadir a cidade. Chegamos à noite e entramos sem problemas. A ordem era para matar todos os homens, e a gente não era doido de desobedecer. Dava dó de ver aqueles marmanjos tentando correr. Acabou que matamos todos eles.
— Hamor e Siquém também?
— Também, coitados. Esses os meninos fizeram questão de matar pessoalmente, e pelo menos sou feliz por não ter presenciado a cena.
— E por que você ficou por aqui?
— Então… Depois que todos já tinham morrido, os outros irmãos vieram para saquear a cidade. Levaram as mulheres e crianças para o acampamento, roubaram os animais e tudo o que havia nas casas. Terminado todo o serviço, eu e mais uns três colegas encontramos vários odres de vinho numa casa e começamos a beber. Não me lembro de mais nada. Hoje de manhã os colegas tinham sumido e tinha polícia pra todo lado. Foi isso.
— Você sabia que Jacó e seus filhos assassinos fugiram durante a madrugada?
— Não tava sabendo não. É assim a vida, a gente trabalha tantos anos pro cara e quando precisa…
— É, rapaz, infelizmente você se deu mal. Obrigado pela entrevista. Guardas, podem levar. Pois é, meus amigos. Uma tragédia nunca vista aconteceu por aqui e os culpados estão desaparecidos. Vamos esperar que ao menos dessa vez a justiça seja feita. E que alguém explique direito esse negócio de cortar o pinto, que eu nunca vi coisa tão estapafúrdia na minha vida.