Depois de um breve porém intenso ataque de narcisismo, vamos voltar à bíblia, seus ímpios.
Tantos anos depois de sua estréia, as Pegadinhas de Jeová ainda lideravam a audiência no horário. Mas deus estava cansado, as Pegadinhas tomavam quase todo o seu tempo e, sejamos francos, ele já não era mais nenhum jovenzinho impetuoso. Então ele resolveu que já era tempo de tirar umas férias, de parar de interferir na vida das pessoas e descansar um pouco. Convocou uma coletiva e anunciou à imprensa que o último episódio do programa iria ao ar na semana seguinte. Foi um rebuliço, os repórteres não acreditavam no que estavam ouvindo. Maior ainda foi a reação do público, choviam cartas na emissora pedindo a continuidade do programa, e pela primeira vez na história o servidor de e-mail do céu saiu do ar (tá certo que rodava Microsoft Exchange e ia acabar acontecendo mais cedo ou mais tarde). Mas deus mostrou-se irredutível, e na semana seguinte, como prometido, foi ao ar o último episódio das Pegadinhas de Jeová, que passo a narrar agora. Vou ver se consigo deixar a história um pouco mais leve e engraçada, mas é quase impossível, como vocês verão. A crueldade de deus não tem limites.
Estava Abraão dentro da tenda um dia, só ali coçando o saco, e deus veio falar com ele.
— Ô, Abraão, como é que vai?
— Tudo na santa paz de deus. Digo, do senhor. Bom, você entendeu.
— Beleza… Notícias de Agar e Ismael?
— Não, nunca mais deram sinal de vida, não entendo porquê. Fui tão legal com eles…
— Ah, Abraão, a ingratidão é foda. Se eu for te contar todas as vezes em que foram ingratos comigo, a gente não sai daqui hoje.
— Bom, eu não pretendo sair mesmo. Tô na minha casa, esqueceu?
— Não pretende sair, é? Pois é, mas acho que você vai precisar… Como está Isaque?
— Ah, seu deus, esse menino é a alegria da minha vida. É inteligente, é carinhoso, tá crescendo que é uma beleza. Eu e a velha passamos o dia rindo feito bobos das coisas que ele apronta, esse nome foi mais apropriado do que o senhor pensava. E fala cada coisa, cê tem que ver. Ah, nem gosto de falar muito, olha aí, já tô me emocionando. Foi o melhor presente que o senhor podia me dar, nada do que eu fizer será suficiente para agradecer.
— É, né? Pois é… Então… Bom, vou direto ao ponto: Você vai pegar o Isaque agora e vai com ele até a terra de Moriá.
— Pô, deus, outra mudança? Bom, tava demorando…
— Não, não, nada de mudança. Só você e ele. Vocês vão lá pra Moriá e vão subir até uma montanha que eu mostrarei. Em cima da montanha você vai pegar este filho que você tanto ama e queimar como sacrifício a mim.
É muita crueldade, né não? O cara espera até os 100 anos de idade para ter um filho, e quando tem, vem deus e pede pra sacrificar o menino. Isso sem contar que anos antes Abraão já tivera que expulsar de casa seu outro filho, Ismael. É, meu povo, esse é o senso de humor de deus…
Mas Abraão era muito obediente (ou trouxa) e na madrugada seguinte arreou um jumento, rachou lenha, chamou dois servos, pegou Isaque e partiu para Moriá. No terceiro dia de viagem, avistou a montanha e seu velho coração se apertou. Falou para os empregados ficarem por ali, porque ele e o menino iriam à montanha para adorar a deus e logo voltariam. Colocou a lenha no ombro de Isaque, pegou o fogo e uma faca e foram os dois juntos na direção da montanha. Parem para imaginar isso: Isaque andando numa boa, encarando tudo como um passeio, e Abraão consciente de que voltaria sem o filho, alegria de sua velhice. Mas no meio do caminho Isaque, que era inteligente, reparou que havia alguma coisa errada.
— Pai!
— Fala, filho.
— Tô vendo a faca e o fogo, e estou carregando a lenha comigo. Mas cadê o carneiro pra gente sacrificar?
Ah, cambada! Eu no lugar de Abraão responderia: “Isaque, deus quer que eu sacrifique você, mas eu não vou fazer isso. Vamos voltar pra casa, se ele achar ruim, que venha acertas as contas comigo. Já suportei muita coisa desse sujeito, chega, quem ele pensa que é?”. Mas Abraão era obediente, e só respondeu:
— Deus vai dar um jeito, Isaque, e vai providenciar o carneiro pra gente.
E continuaram caminhando. Ao chegarem ao lugar que deus havia indicado, Abraão fez um altar de pedras e arrumou a lenha em cima dele. Depois amarrou Isaque sobre o altar e pegou a faca para matar o menino. Nesse instante, um anjo gritou do céu:
— Abraão!
O velho levou um puta susto.
— Tô aqui.
— Não machuque o menino, não faça nada com ele. Agora sabemos que você é temente a deus. Olha ali praquela caverna, tá vendo a câmera? Você acaba de participar das Pegadinhas de Jeová!
Os repórteres invadiram o cenário nesse momento, fazendo perguntas a Abraão. Deus entrou em cena para anunciar oficialmente o final do programa lendo uma carta que dizia:
Abraão, como você me obedeceu e não me negou Isaque, seu único filho, eu juro pelo meu próprio nome que farei os seus descendentes mais numerosos do que as estrelas do céu e os grãos de areia da praia. Toda a terra será abençoada através dos seus descendentes
Ainda confuso com tudo aquilo, Abraão olhou em volta e viu um carneirinho preso pelos chifres a um ramo de árvore. Pegou o pobre bichinho, que nada tinha a ver com a história, e o ofereceu como sacrifício em lugar de Isaque.
Atordoado pelos holofotes, Abraão esqueceu de fazer o que qualquer um faria: Mandar deus à merda. Mas parece mesmo que essa brincadeira de mau gosto estremeceu as relações entre os dois, porque depois desse capítulo (Gênesis 22), deus some de cena e só vai reaparecer lá na frente, pra falar com Jacó, filho de Isaque. Bom, talvez isso seja por causa das “merecidas” férias…
O capítulo termina dizendo que Abraão voltou para onde estavam seus empregados e foram todos juntos para Berseba, onde Abraão ficou morando. Só isso. A impressão que dá é que ele fez isso para sumir por um tempo, por vergonha de ter saído com intenção de sacrificar o próprio filho. E Isaque deve ter carregado essa mágoa por toda a vida. Pegadinha ou não, acho que Abraão devia ter processado deus por essa.
Oi, falo aqui de portugal e adoro a forma como humorizas a biblia, de todos os textos para mim este venceria, e tá bacana os textos do levitico também, alias estao todos bacanas! Podias editar em livro quando acabasses os livros todos da biblia, eu compraria. Muitos parabéns e saudações portuguesas!
Já que estou no ritmo deixa-me dizer-te como vim parar aqui. A tentar tirar lições sobre a vida deparei-me com a premissa de que sempre acabamos por destruir aquilo a que nos apegamos, se não for no instante seguinte será passado dez anos ou seja lá o tempo que for. No que diz respeito ao amor (o amor sincero pela vida) apercebi-me que essa lei se aplicava indistintamente, sem ter em consideração raça, idade, etnia, religião, etc. O amor une individualidades apesar delas continuarem distintas, mas quando nos apegamos tendemos a destruir a nossa própria individualidade e a do outro, porque ao nos querer-mos fundir não respeitamos o principio da singularidade. E tamto unidade como singularidade têm de existir para que seja feita justiça: a harmonia. Ora bem, andava a tentar interpretar a alegoria de abrãao que sacrifica o seu filho isaque e perceber se alguma coisa tinha a ver com o que eu andava a formular. E foi a escrever Abrão e isaque no motor de busca que apareci aqui.A principio essa história nos parece a todos nós horrível, o mesmo que eu pedir à minha mãe que mate o meu pai para me provar que me ama!!! Loucura, sadismo!? Mas visto de um ponto de vista alegórico, que é o que eu acredito que a lei da biblia seja, faz todo o sentido que assim seja. Não foi Deus que pediu a Abraão que matasse o seu filho Isaque, foi Abraão que o fez por sua própria lei e consciencia. Porque todos nós mais cedo ou mais tarde acabaremos sempre por matar aquilo a que nos apegamos, e entenda-se o matar de uma forma metafórica, o matar é separarmo-nos desse desapego, e por vezes isso ocorre de formas drásticas como o fim de um namoro, de um casamento, de uma amizade,etc, mas se compreendermos isto o fim poderá dar lugar a um recomeço, ao recomeço do amor e ao fim do desapego, mas se não conseguir-mos tolerar um amor sem apego aí o fim será certo, a morte – isto é – a separação: e que mais é a separação que não seja morte – aquilo que se separa de nós tem um impacto de morte para nós, como se subitamente deixasse de estar na existência das coisas que nos rodeiam.E prossigo dizendo(lol): Parece que Abrãao chegou à conclusão que estava apegado a esse filho e que o seu amor por ele excedia o amor que tinha por si mesmo, penso que ele depositou em Isaque a sua própria missão nesta vida uma vez que seria através de Isaque que a sua descendência se desenrrolaria e acabou por desvalorizar-se a si mesmo. O caminho em silêncio pelo deserto fe-lo aperceber-se de que isaque tinha a sua própria identidade, e que ele mesmo tinha o seu valor como identidade que era também, e daí retrocedeu, trazendo seu filho novamente, mas mais importante que isso trouxe a uma nova consciência consigo, que o amor por seu filho jamais poderia exceder o amor que tinha por si próprio. Deus parece-me mais uma lei inconsciente que todos nós temos dentro de nós e que confere harmonia às nossas diferentes relações com as coisas do mundo, aprender com a ironia da vida nos vai fazendo conscientes do sentido inabalável destas leis e que nós próprios somos os seus geradores. Deus não nos castiga nem nos põe à prova, nós próprios o fazemos, nós próprios damos lições a nós mesmos por mais irónico e absurdo que possa parecer. Mas nem tudo o que parece é e nem tudo o que é parece (lol). Isto sim é incrivel, somos incríveis. Este texto deve ser a maior seca de todo o teu blog mas mesmo assim arrisco na possibilidade de alguém um dia vir a ler isto. Cumprimentos ao teu admirável trabalho.
Gostei do seu texto e da sua explicaçao sobre a existencia de Deus, q no caso seria a nossa propria consciencia. Pq é assim q eu tbm penso sobre essa historia de Deus.
Oi Filipa, penso assim com vc, q Deus nada mais é q a nossa propria consciencia.