Relatório

Aos dias 23 do mês de março de 2021, às 9 horas e 30 minutos, me dirigi juntamente com meus homens ao estabelecimento do tipo shopping center ██████████ Shopping, no bairro de ████████ desta capital, para os procedimentos de costume.

Como é do conhecimento de todos, o governo do estado d█ ███████████ decretou em junho de 2020 a reabertura dos shopping centers do estado. À época, a decisão foi recebida com críticas, que se transformaram em louvores à argúcia do governador assim que o plano foi revelado.

Nosso papel é ir duas vezes por semana aos estabelecimentos para levar mantimentos aos confinados, monitorar os doentes, retirar e incinerar os mortos. Em fevereiro deste ano, o comando da Polícia Militar mudou minha escala. Solicitei aos superiores que revissem a decisão, já que havia conflito pessoal.

Como é do conhecimento de todos (agora), meu pai, o coronel reformado do Exército Brasileiro ██████ ██ ████████, é um dos confinados no ██████████ Shopping desde julho do ano passado. Em momento algum desde então eu tentei usar meu cargo ou qualquer influência que pudesse ter para resgatar meu pai, como o fizeram muitos colegas com parentes, amigos e cônjuges. Se o coronel quis furar a quarentena e caiu na armadilha do Estado, eu, como cidadão e policial militar, devo aceitar seu destino. Não significa, no entanto, que não me preocupe com o bem estar dele. Por isso solicitei repetidas vezes que o referido estabelecimento comercial fosse excluído de minha escala, mas sem sucesso.

Sendo assim, no dia supracitado, eu e meus homens fomos ao estabelecimento para os procedimentos de rotina. Tocamos a sirene de aviso antes de abrir a porta lateral, esperamos 30 segundos conforme determinado pelo protocolo, verificamos nossos trajes de proteção, nossas armas, e entramos.

Tudo estava dentro da normalidade. Os confinados encostados nas paredes de costas para nós. Saímos pelas áreas pré-determinadas para contagem, e recebemos as informações dos líderes indicados para cada piso do shopping. Na semana anterior, eles eram 547. Agora eram 522: 24 haviam morrido, e uma confinada dera à luz um casal de gêmeos. Os recém-nascidos passavam bem. O líder do piso nos entregou uma lista de necessidades [anexa]: fraldas, fórmula, vacinas. Um dos homens pegou a lista e prometeu fazer o possível. Passei para ver os gêmeos. A menina com 53 cm de comprimento, 3,760 Kg de peso. O menino, 51,5 cm, 3,510 Kg. A mãe os estava amamentando normalmente. O pai: desconhecido. Essa gente vive de qualquer maneira.

Estava eu saindo do quiosque de açaí que a recém-mãe tinha escolhido como seu berçário quando ouvi um grito: “R█████!”. R█████ era meu apelido de infância. Olhei na direção do grito e vi um velho que custei a identificar. Usava cuecas samba-canção ainda com o dispositivo antifurto da C&A pregado ao cós, e uma jaqueta muito maior do que ele, fechada até o pescoço. Meu pai perdera muito peso. Os joelhos pareciam bolas de bilhar. Os ossos da face quase furavam a pele seca. Ele sorria enquanto vinha na minha direção, de braços abertos.

Os confinados não podem se aproximar da equipe de apoio. Todos eles sabem disso desde o começo. Os que tentaram, conheceram o protocolo de segurança: um tiro para cima, de aviso, o segundo tiro para abater. Era meu pai, mas a segurança de todos estava em jogo.

— Coronel! — usei a patente para apelar aos brios do velho. — Afaste-se.

Ele continuou na minha direção, o sorriso mais largo ainda, os braços mais abertos. Dei o tiro para o ar, ele nem piscou. Continuou vindo na minha direção. Dei a ordem ao soldado mais próximo para se preparar para alvejar o coronel. Ele hesitou. Sabia que era meu pai. Eu mesmo atirei.

O que veio depois já é conhecido dos senhores: diante de meus olhos, meu pai explodiu. Perdi seis dos meus homens nesse dia. Outros confinados morreram. A mãe dos gêmeos morreu junto com o filho que estava amamentando. A menina sobreviveu.

Bolas de tênis, muitas cabeças de palito de fósforo, pregos, e dias de trabalho paciente: isso foi tudo de que ele precisou para construir seu explosivo de impacto [foto anexa]. Material que havia de sobra no shopping. Com isso e os anos de experiência nas Forças Armadas, meu pai morreu e levou junto com ele doze pessoas, ferindo outras 23.

Depois de chamar reforços para auxiliar na limpeza e remoção de mortos e feridos (confinados para a incineração, soldados para o IML), perfilamos os confinados para contagem e interrogatório [vídeo anexo]. Todos negaram participação ou conhecimento do ato terrorista do coronel. Mas quando saímos para o estacionamento, nossas três viaturas estavam com os pneus furados [foto anexa]. As câmeras de segurança do shopping, descobrimos então, estavam inutilizadas [foto anexa].

Como é do conhecimento de todos, o conflito recrudesceu no último mês. Outros atentados ceifaram vidas de soldados e oficiais. Bombas de bolas de tênis e de produtos de limpeza, armadilhas com objetos perfuro-contundentes, projéteis improvisados com bolinhas de gude e parafusos. No Shopping ██████ Parque, em ██████████, o sargento L██████ morreu junto com dois soldados, esmagados por um piano de cauda lançado da praça de alimentação até o primeiro piso. No ██████ Center, quatro soldados foram sacrificados ao se arriscarem numa escada rolante que os confinados sabotaram. Adolescentes com lança-chamas feitos de spray de cabelo conseguiram ferir gravemente cinco homens, antes de serem abatidos.

Dado o exposto, minha recomendação é que deixemos os confinados à própria sorte. Se não podem viver em sociedade, que sejam dela definitivamente excluídos. O investimento do Estado deve ser direcionado para o reforço da segurança dessas construções, para que ninguém delas escape.

É o relatório.

Tenente R█████████ ██████ ██ ████████
██º Batalhão da Policia Militar do Estado d█ ████████████
25/03/2021

ADENDO: As cinzas de meu pai, o coronel reformado ██████ ██ ████████, foram misturadas às cinzas de todos os outros confinados mortos, e lançadas ao vento. Repilo todos os rumores de que eu as teria levado para casa, ou dado a elas outra destinação. Não aceito e nem pratico tratamento diferenciado motivado por parentela, amizade ou afinidade. Todos os que afirmarem o contrário terão de prová-lo em juízo.

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