Revelação

Hoje eu tive uma revelação. Saí do trabalho meio cedo, não podia pegar o carro por causa do rodízio e resolvi passar no Pão de Açúcar. Pensei que um passeio no bondinho seria um bom final de expediente, até perceber que estava em São Paulo. Então fui ao supermercado de mesmo nome.
(Esqueçam que eu escrevi isso.)
Estava chegando ao supermercado e vi um véio na porta — “véio” e “velho” são duas coisas muito diferentes, notem. Bom, primeiro eu ouvi o véio. Ele estava gritando alguma coisa lá em veiês. Olhei na porta do supermercado e lá estava o véio, nervoso, gesticulando que só italiano de novela, berrando, três seguranças atrás dele. Ele ameaçava entrar de volta, os seguranças tentavam acalmá-lo. Ele pegou uma garrafa de guaraná e ameaçou jogar em alguém lá dentro. Uma garrafa de plástico, o idiota.
Era um véio com pinta de taxista: camisa branca aberta, calça de tergal, chaveiro no cinto, pulseira de ouro. “Respeita o idoso!”, ele gritava. “Perguntou a minha idade!”, gritava em seguida. “A minha idade! Que que é isso?!”. Parecia aquelas jam sessions em que o cara fica horas improvisando em cima de um tema, aí erra uma nota e finge que é um tema novo, improvisa mais dois meses em cima disso, depois volta pro tema antigo, depois inventa lá um terceiro, volta pro segundo. “Respeita o idoso! Perguntou a minha idade!”, ele repetia. E depois de um tempo: “se eu andasse armado, dava um tiro na cara dele!”. As acusações e ameaças eram dirigidas a um cara que estava no caixa preferencial para velhos, grávidas, aleijados, crioulos com anões no colo e coisa e tal. O cara fazia que ia partir pra cima do véio, a mulher do cara o continha, pedia pelamordedeus. “PERGUNTOU A MINHA IDADE! A MINHA IDADE!!!”
Aquilo estava ficando chato, então fui comprar um sanduíche. No balcão, duas senhoras tomavam café e tentavam descobrir o que se passava com o véio. E foi aí que tive a tal revelação do começo do post, que vocês achavam que eu já tinha esquecido.
O véio continuava falando da idade, que o outro tinha perguntado a idade dele, que tinha encostado nele e perguntado “qual a sua idade?”, nhenhenhém.
— O que será que aconteceu? — perguntou uma das senhoras do balcão; uma pergunta dirigida a ninguém em particular.
— O véio na verdade é uma véia — eu respondi. — É uma mulher. Por isso se ofendeu tanto.
O comentário fazia sentido dentro da minha cabeça, mas assim que saiu ao mundo virou uma coisa esquisita, toda torta. Silêncio das duas. “Perguntou a minha idade! Dou um tiro na cara dele!”, continuava o véio.
— Porque não é de bom tom perguntar a idade de uma senhora — tentei explicar.
As duas me olharam com aquela cara de do-que-que-esse-sujeito-tá-falando. Não conhece essa cara? Você não sabe o quanto é feliz.
As pessoas me olham o tempo todo com essa cara de do-que-que-esse-sujeito-tá-falando. Desde sempre. Acho que é porque eu falo as coisas que eu penso como se as pessoas estivessem dentro da minha cabeça (elas bem que cabem) e soubessem que diabo eu estou pensando o tempo todo. Elas não sabem, então me ignoram e seguem suas vidas. Ou então fazem a pergunta que eu mais ouço na vida: “que que isso tem a ver?”. Tento explicar minha linha de raciocínio, adianta nada. É desesperador.
A revelação me veio quando eu me coloquei por um momento no lugar daquelas duas senhoras. Olhei para mim mesmo assim, de fora, e fiquei chocado. Deve ser por isso, eu pensei, que as pessoas não vão muito com a minha cara quando me conhecem. Tenho vários amigos, bons amigos, mas eles custaram a gostar de mim. “Eu não te suportava quando a gente se conheceu” é outra frase que eu ouço muito. Não é pra menos: eu pareço arrogante, ando de cara fechada e, coisa horrorosa, falo coisas sem propósito. Tem gente que eu conheço há vinte anos e ainda não vai com a minha cara. Não sei se são meus inimigos ou se essa primeira impressão é difícil mesmo de superar.
Enquanto eu pagava o sanduíche (as orelhas queimando), as duas continuavam quietas. Duzentos anos depois, uma delas comentou:
— Gente, então é uma mulher?
— Não, porra!
Mentira, eu não falei “porra”. Mas o “não” foi bem seco mesmo. Tá, as pessoas não gostam de mim. Mas também não se esforçam muito pra eu gostar delas. Que se fodam.

45 comments

  1. Marco,
    Tenho uma dica para quando fizerem aquela cara para você: sorria. Como se o mundo fosse tão claro como uma gota de chuva – também conhecido como “EU sei, mas você… Ó, animal ignorante…”
    Se eles jã ficaram confusos com o fato de você ter falado, a curiosidade vai matar a todos um dia.
    Aprendi isso com uma amigo meu que é advogado. Artes “lá de baixo” é diz.
    (não duvido)
    Um grande abraço.

  2. Tenho o mesmo problema, mas eu acbho que vem da espontaneadade da pessoa, apesar de inibir varias amizades no começo, essa espontaneade e verdade, me permitiu construir algumas amizades extremamente verdadeiras

  3. Puxa, eu já estava até acreditando que isso só acontecia comigo e que era um tipo de autismo leve…que chato, Marco Aurélio, você acabou com o brilho da minha individualidade.
    Vou esquecer que amei o Balde de Gelo e vou detestar você também!

  4. Puuuts sei como é!
    Conversar com minha irmã é um tormento para ambos. Ela não entende nada do que eu falo e eu odeio ter que ficar me explicando.
    Outras pessoas simplesmente me ignoram e todos seguimos felizes.

  5. Por essas e outras que participo da comunidade “O problema em ser irônico é que qdo não entendem, vc passa por idiota” no Orkut…. rsrsrsrsrsrsrsrs
    Sei bem o que é falar sem pensar… mas ainda assim é bom!

  6. Rapaz, que saudade do teu blog! Ainda bem que teu emprego no CQC não me tirou teus textos em definitivo (volta e meia o sinal da Band vai pro espaço, na NET).
    A situação do teu post também me é comum, e normalmente aperto o botão do “Foda-se” até o talo.
    Por que tem umas horas em que só o botão do “Foda-se” salva.
    Forte abraço!

  7. Encontrei um louco como eu, que fala o que tá na cabeça e o povo, incompetente, não consegue sequer descobrir o que eu tinha pensado.
    Abacaxi?

  8. HUAHUAHUAHUAHUA!!!
    Paraquedista chegando aqui pela primeira vez, comentando após ler o primeiro texto: acho que encontrei uma alma gêmea! 🙂
    Conto o milagre e conto o santo: cheguei aqui pelo blogroll do Crônicas Urbanas, da Mônica.
    Voltarei. 🙂

  9. Marcel e Arhur, LEIAM TODO O ARQUIVO DO BLOG.
    Esse é um dos melhores blogs de velhos “pré-twitter” do Brasil. Aliás, esse e o Catarro Verde são os melhores da história do universo.

  10. Porra???? Cade o Post??? Agente te paga pra que hein????
    ASHUaHUshuAH Zuera, mas ta dando uma saudade, que eu acho que eu vo le todos os post denovo.

  11. Meu, esse post me fez lembrar de um em que um cara te aborda (dirigindo) e pergunta: “como faz pra pegar a Angélica?”. E você: “ah, é só virar ali (sei lá o que você disse nesse momento, mas não vem ao caso), mas acho que o Huck não vai gostar”. Eu ri MUUUUUUUUITO, como agora nessa situação. Presença de espírito é tudo, e muitas vezes o povo fica nos olhando com cara de “???” mesmo.
    Ah, eu adoro a risada da sua mulher. Um dia vou rir assim, que é bem mais fácil pra digitar. 😛

  12. Eu não sei se eu entendi, mas acho que a pessoa ficou revoltada por questionarem a idade, por acharem que ela estava sendo desonesta de ficar na fila preferencial…

  13. Este é meu primeiro contato com este blog. Nunca fui muito com o nome do blog e nem das idéias já comentadas por aí, mas sendo tão famoso a curiosidade me fez ficar e observar.
    O que me faz escrever/comentar agora não é o fato de não ter gostado de ouvir você falando do seu nariz, mas principalmente o reconhecimento do seu talento de conseguir se expressar de forma a transportar os outros para dentro de seus pensamentos e ainda de se fazer fazer entender apresentando qual sua razão pessoal de maneira tão própria e desconfortante que dá vontade de contestar, assim como numa conversa entre amigos intimos e de opiniões divergentes.
    E em meio a essa relação hostil faz com que as pessoas voltem outro dia para continuar a conversa (pra mim ler também é conversar) e ver no que dá, até que percebam que gostam de alguma forma de você e suas idéias, mesmo que você… tenha esse jeitinho tão doce.

  14. Putz, não acreditei quando dei um Google por acaso e achei seu blog. Lia ele todos os dias há muuitos anos atrás e por algum motivo desencanei. Acho que me enchi um pouco de blogs e afins. Ótimo saber que você continua escrevendo e melhor ainda que continua com o Emotionrélio (o japinha original ainda tem o dele?), haha.
    Tudo de bom meu nobre, continue sempre assim.

  15. Acho que achei meu lugar no mundo, pq 99% dos comentaristas e o dono do blog passam pelas mesmas ridículas situações que eu… Que bom! Só que eu acho a minha situação um pouco pior pq aqui no Rio, a gente parece que é obrigado a ser simpático com todo mundo, tem que ser assim como direi “solar”, tem q refletir o “asssstral carioca”. Sei não, melhor eu arruma as malas e migrar pra São Paulo.

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