Quem te viu, quem te vê

Fui ao Tom Brasil Nações Unidas ver o show de Chico Buarque, e me lembrei da inauguração na casa. Na ocasião, os proprietários buscavam a certificação máxima de qualidade de som: a bênção de João Gilberto. Conseguiram. João fez o show todo sem reclamar um só instante, mantendo o bom humor por mais de duas horas. Além do som, a casa de espetáculos tinha boa distribuição de lugares, e era bem mais espaçosa que o Tom Brasil original, na Vila Olímpia.
Quem te viu, quem te vê… Por 115 reais, fiquei sentado num lugar apertado, em comunhão desconfortável com as pessoas das mesas vizinhas, todo mundo espremido num canto da platéia. Lá na frente, gente que desembolsara 200 reais passava pelo mesmo tormento. O Tom Brasil conseguiu democratizar o desconforto.
O som continua bom, no entanto. Ainda bem: um som de qualidade permite desfrutar o talento do finado Chico Buarque. Já explico.
Nas canções antigas, notamos Chico Buarque criativo, brincando com as palavras, entrelaçando-as na melodia, criando harmonias surpreendentes, juntando letra e música como ninguém.
Quem te viu, quem te vê… Esse sujeito morreu. As músicas do disco novo são todas parecidas uma com as outras. Divido a culpa entre o próprio Chico, que talvez pudesse ter esperado mais para lançar o disco, e Luis Cláudio Ramos, o arranjador, que parece estar no meio de uma crise de falta de criatividade. Ode aos Ratos, única que se sobressai em Carioca, é na verdade uma composição em parceria com Edu Lobo — cujo talento parece inesgotável — para o balé Cambaio.
Querem ver só? Que necessidade Chico Buarque tinha de compor algo assim:

Outros Sonhos
Sonhei que o fogo gelou
Sonhei que a neve fervia
Sonhei que ela corava
Quando me via
Sonhei que ao meio-dia
Havia intenso luar
E o povo se embevecia
Se empetecava João
Se emperiquitava Maria
Doentes do coração
Dançavam na enfermaria
E a beleza não fenecia

Belo e sereno era o som
Que lá no morro se ouvia
Eu sei que o sonho era bom
Porque ela sorria
Até quando chovia
Guris inertes no chão
Falavam de astronomia
E me jurava o diabo
Que Deus existia
De mão em mão o ladrão
Relógios distribuía
E a policía já não batia

De noite raiava o sol
Que todo mundo aplaudia
Maconha só se comprava
Na tabacaria
Drogas na drogaria
Um passarinho espanhol
Cantava esta melodia
E com sotaque esta letra
De sua autoria
Sonhei que o fogo gelou
Sonhei que a neve fervia
E por sonhar o impossível, ai
Sonhei que tu me querias

Soñé que el fuego heló
Soñé que la nieve ardía
Y por soñar lo imposible, ay, ay
Soñé que tú me querías

Se já havia dito o mesmo, de forma muito mais bela e eficaz oito anos atrás, no disco As Cidades

Sonhos Sonhos São
Negras nuvens
Mordes meu ombro em plena turbulência
Aeromoça nervosa pede calma
Aliso teus seios e toco
Exaltado coração
Então despes a luva para eu ler-te a mão
E não tem linhas tua palma

Sei que é sonho
Incomodado estou, num corpo estranho
Com governantes da América Latina
Notando meu olhar ardente
Em longínqua direção
Julgam todos que avisto alguma salvação
Mas não, é a ti que vejo na colina

Qual esquina dobrei às cegas
E caí no Cairo, ou Lima, ou Calcutá
Que língua é essa em que despejo pragas
E a muralha ecoa

Em Lisboa
Faz algazarra a malta em meu castelo
Pálidos economistas pedem calma
Conduzo tua lisa mão
Por uma escada espiral
E no alto da torre exibo-te o varal
Onde balança ao léu minh’alma

Em Macau, Maputo, Meca, Bogotá
Que sonho é esse de que não se sai
E em que se vai trocando as pernas
E se cai e se levanta noutro sonho

Sei que é sonho
Não porque da varanda atiro pérolas
E a legião de famintos se engalfinha
Não porque voa nosso jato
Roçando catedrais
Mas porque na verdade não me queres mais
Aliás, nunca na vida foste minha

Nem sei como encerrar este post, então termino com uma foto tirada por Ana Cartola:

Nhó!


Ela continua a ser minha namorada, mesmo depois da foto. Isso, meus caros, é amor!

14 comments

  1. Como seu fã, pela primeira vez vou discordar de você.
    Esse novo disco apresenta um Chico Buarque mais maduro, mais musical. Não posso deixar de concordar que, depois de 40 anos de sucessos infindáveis, é difícil você conseguir versar sobre os mesmos temas, com a mesma energia. Mas ele consegue não se repetir. Ele não repete frases de outras músicas, seja na melodia ou na poesia. Ode aos Ratos ficou fantastica nessa mistura de embolado com hip hop ou rap, sei lá.
    Mas tem músicas como Dura na Queda, Sempre, Leve, Ela faz cinema que são bastante distintas entre si.
    Gostei do disco novo e estou aguardando minha ida ao show, que se dará tão logo eu consiga ingresso!
    Abraços

  2. É O AMÔÔÔRRRRR!
    Que mexe qüa minha cabeça e me deixa assiiiiiiimmmmmmmm
    Que faz eu pensar em você e esquecer de miiiiiiimmmmmm
    Chuinf…
    Você é a causa da minha memória inexistir, tá vendo?
    Antes eu era normal.
    Er… tá, deixa pra lá.

  3. Amor…
    Realmente, só amando mesmo.
    Não larga que pra achar outra com esse refinado bom gosto fica difícil!
    Sobre o Chico: quando será a missa de 7° dia?

  4. marco, graças a deus mais alguém além de mim acha que o chico foi-se. eu, que sou super fã dele, achei esse último disco medíocre, uma chatice. que bom que não me dispus a enfrentar aquela fila total 3o mundo pra ver o chico decadente 😀 beijos!

  5. Meu caro,
    Isto não é amor, é cegueira mesmo!!!!!!
    No mais, não conheço este disco do Chico, tomei grande antipatia por ele (defendendo ditador, defendendo corrupção, fingindo que não é com ele, enquanto fica em Paris), mas achei lindo o final da letra (que dá sentido à letra).
    Saudações

  6. Show de MPB sempre tem esse problema, não? O artista faz o show para ele e não para o público. Acho que, se você faz shows com menos freqüência do que o cometa Halley passa, cobrar uma fortuna para cantar um monte de músicas que quase ninguém conhece é no mínimmo sacanagem.

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