Paulo Polzonoff desce aos infernos

Observação: enganado pela foto de Zeca Pagodinho estampada na capa, traí minhas convicções e acabei comprando a revista Bravo! deste mês. Ontem, antes de dormir, resolvi folhear a dita cuja e quase tive um treco. Que linguagem era aquela, que gente era aquela, meu Deus? Fui dormir assustado e acordei com o texto abaixo quase pronto na cabeça. É pura ficção, claro (Polzonoff jamais iria para o Inferno; pegaria no máximo uma temporadazinha no Purgatório), mas os trechos sublinhados foram copiados da revista exatamente como estão. Juro.

Abriu os olhos e estava sentado numa cadeira. À sua frente uma mesa, atrás da mesa — sentado numa cadeira de espaldar bem alto — o sujeitinho esquisito. A fragrância cítrica de seu perfume empesteava a sala toda. As unhas bem cuidadas pareciam ter recebido algumas pinceladas de base recentemente. Era óbvio que gastara um bom tempo com o cabelo até atingir aquela aparência pretensamente despojada. Gravata espalhafatosa, óculos retangulares de aro grosso e vermelho. Os pés, calçados em mocassins marrons, repousavam cruzados sobre o tampo da mesa. “Metrossexual, no mínimo”, pensou. Ia perguntar alguma coisa (“O que estou fazendo aqui?”, de preferência), mas o sujeito adiantou-se, falando com voz melíflua:
— Senhor Paulo Polzonoff, é uma honra tê-lo aqui conosco — o homem parecia olhar sempre meio de soslaio, ou por cima dos óculos, nunca de frente.
— Eu diria o mesmo, se soubesse onde estou e quem são vocês.
— Ah, claro, que indelicadeza! O senhor está na redação da revista What The Hell!.
— What the hell?
— Exatamente.
— Não, não. Com isso eu quis dizer que nunca ouvi falar da sua revista.
— Claro que não, Sr. P.: nossa revista não é conhecida na Terra.
— Na terra? Que terra? Minha terra? Curitiba? Rio?
— Não: na Terra. O planeta.
— Que brincadeira é essa?
— Não há como dizer isso sem chocá-lo, portanto serei direto: o senhor está no Inferno.
— Repito e enfatizo a pergunta: QUE RAIO DE BRINCADEIRA É ESSA???
— Ai, ai… Sempre a mesma reação, sempre! Acho que não inspiro muita confiança, não é mesmo? É. Acho que vamos precisar de uma demonstração.
Apertou um botão e os dois foram imediatamente transportados para o alto de um pico rochoso. À sua volta, labaredas levantavam-se e vozes de agonia eram ouvidas. Demônios horrendos corriam e rastejavam no fundo da vala de fogo, ou voavam por sobre os picos fustigando os condenados. Um deles aproximou-se de Polzonoff e deu-lhe uma espetada de leve na bunda.
— É o equivalente da casa para o clássico beliscão. Acredita agora que não está sonhando, Senhor PP?
— Talvez se você parasse de me chamar assim…
— Oras, não me venha com essas bobagens. Você é meu funcionário agora.
— Funcionário?
— Quer falar sobre isso aqui mesmo, ou prefere voltar à minha sala?
— A sala. Por favor.
— Muito bem — estavam de volta ao escritório. — Como eu dizia, o senhor agora é repórter da revis…
— Espera. Espera. Como é que eu vim parar no inferno?
— Ah, sempre a mesma velha pergunta. Temos uma seção de Perguntas Mais Freqüentes em nosso website corporativo, a qual o senhor poderá consultar à vontade depois. Por enquanto, vamos tratar de negócios, se o senhor não se importar.
— C-claro…
— Muito bem. O senhor agora é repórter da revista What The Hell!
— Er… Só uma coisinha: por que você fala o nome da revista desse jeito?
— Por causa do ponto de exclamação, oras!
— Desconfiei… Olha, esse ponto de exclamação é absolutamente necessário?
— Mas é claro! Veja só: ao mesmo tempo em que é fálico, empresta um tom de afetação ao nome da revista. Desse modo, o título acaba recebendo esse tom lúdico, essa brincadeira com a dubiedade que, ademais, pauta todas as nossas…
— Sim, sim, entendi. Prossiga, por favor.
— Pois não: nossa revista é totalmente voltada à alta cultura, com um público de altíssimo nível intelectual. É toda impressa em papel couché de excelente qualidade, com uma diagramação arrojada. Nossa equipe é formada pela nata do jornalismo cultural. E agora o senhor é parte dessa equipe.
— Sei.
— Não parece muito entusiasmado, PP. Mas isso vai passar assim que conhecer melhor nossa publicação. Quer ver só? Leia um trecho desta matéria. Em voz alta, por favor.
— Hum… Ok. Mares Profundos, terceiro e mais ambicioso álbum de Virgínia Rodrigues, celebra não apenas… blablablá… Agora, esta filha de Ogum (…) imprimiu novas cores a este repertório clássico, revisitado por alguns artistas ao longo dos anos, mas nunca de maneira tão surpreendente.. Peraí. Isso não é sério, é?
— Isso é MUITO sério, Senhor Polzonoff. Para começar, o senhor vai ler algumas edições da revista, para ir se familiarizando à linguagem utilizada.
— Como é que é?
— Oras! Como qualquer outra empresa, adotamos aqui nossos padrões. Pelo que li de seus textos escritos ainda na Terra, o senhor jamais teria a capacidade de utilizar, por exemplo, esse “revisitado” da matéria que leu agora mesmo, termo que deu todo um brilho para o texto.
— É, não teria mesmo… Olha, espero que você, o senhor, Vossa Magnificência Capetícia não se importe se eu recusar o convite.
— Espera? O senhor espera??? Que parte da tabuleta na entrada do Inferno o senhor não entendeu.
— Bom, acontece que eu não passei pela entrada. Abri os olhos e estava aqui.
— Não se faça de desentendido! Sei muito bem que o senhor leu A Divina Comédia, e que sabe o que está escrito na tabuleta.
“Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate.”
— Sim, sim! “Deixai aqui toda a esperança, vós que entrais”. O senhor não espera nada, portanto: apenas ouve e obedece. Isto aqui é o Inferno, não uma colônia de férias.
— …
— E vamos ao trabalho! Sua primeira matéria será sobre uma exposição de artes plásticas, com obras inspiradas no carnaval carioca. Sugiro que o senhor use como gancho a reviravolta que ocorreu na vida do grande Hélio Oiticica ao visitar o Morro da Mangueira na década de 60.
— E que reviravolta foi essa?
— O senhor não sabe? A imersão em uma comunidade sustentada pelo improviso subverteu seu ponto de equilíbrio! Bólides e parangolés deixaram de ser apenas proposições lúdicas para servir como instrumentos de incentivo a experimentações coletivas!
— Ah, sim. Essa reviravolta.
— Sim! E, aproveitando seu grande interesse pela vanguarda das artes plásticas, vou pedir ao senhor que faça uma matéria sobre a obra de Lenora de Barros.
— Lenora de Barros, né?
— A própria. Como o senhor deve saber, as bolinhas de pingue-pongue são presença constante na obra dessa artista.
— Ouvi falar de certas moças tailandesas que também têm bolinhas de pingue-pongue no centro de sua obra. Bem no centro, aliás.
— Senhor Polzonoff, devo adverti-lo de que não admitimos qualquer forma de humor por aqui. Se quer fazer piadinhas, vá para o céu.
— Tenho essa alternativa?
— Claro que não, foi só um modo de falar. Mas eu dizia: ela gosta de usar bolinhas de pingue-pongue porque, nas palavras da própria Lenora, A bolinha sugere jogo e, ao mesmo tempo, leveza.. Percebe?
— Não.
— Que lástima, o senhor ainda não está pronto. Pensava em enviá-lo para cobrir a mais nova peça de José Celso Martinez Corrêa, mas o senhor ainda não está pronto.
— Oh, mas que pena…
— Pois é! Veja se só o título já não é instigante, veja!
Os Sertões — O Homem: Da Revolta ao Trans-Homem. Puxa! Travessão, dois pontos, hífen. Instiga mesmo!
— Perdão, mas o senhor está sendo irônico?
— Longe de mim!
— Hum. Pois então: a peça, como o senhor deve ter notado, é uma releitura da obra de Euclides da Cunha. Mas não só isso: nessa transposição, há um significativo reinventar factual e ideológico. Não é à toa que a peça dura desafiantes seis horas e que a platéia é convidada a participar de cenas algumas vezes estranhas à própria narrativa, como a do “beija”, que de uma alusão histórica à reverência da matula de fiéis às imagens de santos acaba se tornando em uma colação de bocas entre atores e espectadores mais desenvoltos.
— Ugh.
— Perdão?
— Hã? Ah, nada. Acho que foi um soluço.
— Sei… Bom, mas não importa, o senhor ainda não está preparado para uma matéria dessa envergadura. Em vez disso, vou apresentá-lo ao seu entrevistado diário.
— Er… Entrevistado diário?
— Ah, sim! Ia me esquecendo: aqui no Inferno, cada um dos condenados tem uma tarefa a ser repetida pelo menos uma vez por dia. A sua é entrevistar esse rapaz.
— Sei. Por quanto tempo?
— Por quanto tempo? Mas que pergunta idiota! Por toda a Eternidade, é óbvio! Vamos, seu entrevistado o espera ali na outra sala.
O editor abriu a porta e guiou Paulo Polzonoff pelo meio da redação. Ele reconheceu dois ou três grandes jornalistas do passado, homens que eram lendas na Terra, mas que ali tinham vergonha de seu trabalho vil. Não teve tempo de pensar muito nisso, porém, porque a cena que viu ao entrar numa sala lateral foi um choque: acocorado sobre a única mesa do recinto, um gordinho com cara de escroto (em ambos os sentidos) esforçava-se para escrever segurando a caneta da maneira mais heterodoxa. A notar a presença dos dois, começou a berrar:
— VOCÊ VEIO ME ENTREVISTAR, NÃO É? POIS PODE BOTAR AÍ QUE EU ESCREVO COM O CULHÃO, TÁ ME OUVINDO? COM O CULHÃO!
— Editor, vocês pagam adicional por insalubridade?
— De jeito nenhum.
— Desconfiei…
Paulo Polzonoff suspirou, sentou-se numa cadeira e começou a primeira entrevista de uma série infinita com sua Nêmesis.

36 comments

  1. Cara, cologquei um link seu no meu blog e a galera tá adorando…principalmente sua releitura das escrituras……o texto de hoje também está muito bom…Esses dias li na bravo uma entrevista com o Antônio Abujamra onde misturavam partes de sua trajetória e vida pessoal com seus personagens…simplesmente bizarro…hehehe…uma coisa totalmente esquizóide…

  2. Às vezes fico pensando numa maneira cruel de dar um choque de realidade nesses intelectuais presunçosos….
    Açoite público…. Largar os caras só de cueca numa zona de cidade do interior… Sei lá… Alguma coisa que “chacoaiasse a goiabêra”.

  3. Marco,
    infelizmente eu uso o revisitado, sim. mas prometo que nunca mais vou usar. nunca mais. nunca mais.
    eu fico aqui pensando por que é que vc foi escrever este troço. o que é o Marco Aurélio tava pensando quando teve a idéia? com quem conversava? o que bebia? o que (ou quem) comia?
    agora deixe-me ir que eu tenho de entrevistar vc-sabe-quem.
    []

  4. Ah, só quem passou por uma redação de Jornal ou revista prá saber a acuidade do quadro que o Marco descreveu. Graças que qdo fui repórter e editor (já se vão alguns anos…) trabalhava em Economia e Mundo (internacional). Pelo menos escapei de termos como “puro rock brazuca”, “seminal”, “mais pura expressão da décamblé tupiniquim” e por aí a fora.
    Lamentável….
    Marco, Parabéns (assim, com “P” maiúsculo)

  5. Sensacional. Agora, uma dúvida. Não existiria também no inferno uma editora dedicada às revistas populares, tipo Contigo? Não estaria alguém escalado para entrevistar o Leandro pelo resto da eternidade?

  6. Sensacional. Agora, uma dúvida. Não existiria também no inferno uma editora dedicada às revistas populares, tipo Contigo? Não estaria alguém escalado para entrevistar o Leandro pelo resto da eternidade?

  7. Estou acompanhando seus textos há algum tempo e tudo o que posso é parabenizá-lo pelo estilo e atitude.Muito bom mesmo!!! Ah…já indiquei seu blog para vários amigos aqui em Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
    abraços, Aline.

  8. Marcuré ocê é o maior feladaputa da internet mundial. Ocê é um Becker revisitado, um poeta maldito punheteiro. A maior novidade blasé deste mundo pós-cão e pré-carnavalesco a lá joazinho trinta. Parabéns e que da proxima vez escolha outra pessoa pra ir pro inferno pois o polzonoff é gente boa demais. hahuahuahuhauhua

  9. Marcuré ocê é o maior feladaputa da internet mundial. Ocê é um Becker revisitado, um poeta maldito punheteiro. A maior novidade blasé deste mundo pós-cão e pré-carnavalesco a lá joazinho trinta. Parabéns e que da proxima vez escolha outra pessoa pra ir pro inferno pois o polzonoff é gente boa demais. hahuahuahuhauhua

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