— Tava onde?
— Por aí.
— Por aí onde, menino? Os bichos tão morrendo de fome.
— Que drama, mãe! Eles comeram de manhã…
— Eu já te falei que precisa ter horário pra tudo: pra dar comida, pra limpar o curral, pra trocar a palha do estábulo… E você passeando. “Por aí.” Por aí onde? Já te falei que é perigoso. A gente não sabe o que tem pra lá.
— Se todo mundo pensar assim, a gente nunca vai saber o que tem nesse planeta.
— A gente não precisa andar por aí pra saber. Tem um monte de sonda lá pra dentro, tem satélite em órbita, justamente pra isso. Os cientistas lá na base exploram o planeta e mandam informações pra gente. O nosso papel é colonizar.
— Você e o pai se contentam com pouco, né?
— Com pouco? Com POUCO? Menino, você sabe o que isso aqui significa? Quanto sacrifício, quanto dinheiro? Duzentos anos atrás ninguém nem pensava em colocar uma pessoa no espaço. Faz só 150 anos que a gente começou a explorar o nosso sistema solar.
— Nossa, 150 anos, praticamente ontem…
— Eu ODEIO quando você é debochado. 150 anos é muito pouco no contexto histórico. Uma espécie sair da limitação do seu planeta para o satélite mais próximo, depois para os planetas do seu sistema solar, depois conseguir colonizar um planeta tão longe de casa, em outro sistema solar… Você acha pouco?
— Ah, sei lá.
— “Ah, sei lá”… Você nunca sabe de nada. Só fica por aí se arriscando à toa. Vou falar de novo: nossa área é essa aqui, entre a montanha e o mar. Não temos autorização pra subir em montanha, pra passar da montanha pra lá, nem de entrar no mar e sair navegando por aí. É perigoso. O governo bate nessa tecla sempre: é perigoso. Tá entendido?
— Mas mãe…
— Tá entendido?
— Tá…
— Agora vai alimentar os bichos. Aproveita e vê como tá a fêmea prenha lá no estábulo. É capaz de já ter parido, e você não estava aqui pra ajudar.
— Mãe, tá longe ainda. Eu tô acompanhando o tempo, falta uma semana ainda… Uma semana lá de casa, que aqui é… Peraí… 47 dias? Não. 46. Faltam 46 dias pra ela parir.
— Tá vendo como você é? Você é estudioso, atencioso com os bichos, sabe cuidar deles, faz a ordenha, leva os machos para cobrir as fêmeas no tempo certo… Só precisa sossegar o facho.
— Tá bom, mãe.
— Te amo.
— Também te amo… Mas você não quer saber do que eu achei hoje?
— Não.
— Certeza? Cê vai ficar doida.
— Ai, ai… Vai, fala.
— Eu subi naquela montanha ali. Aquela pra direita, não a outra.
— Quê?! Até lá em cima?
— Mãe, relaxa. Quer saber a história ou não? Então… Subi lá. Tem um resto de caminho no meio da mata, acredita? Acho que o pessoal que veio aqui construir antes da colonização começou a fazer e depois desistiu. Então fui seguindo esse caminho, subindo, subindo… Cheguei lá em cima e tinha uma estátua lá!
— Estátua? Tipo estatueta?
— Não! Estátua grande, do tamanho de um prédio! Tombada de lado, coberta de plantas, já meio enterrada.
— Estátua de quê, menino?
— Aí é que tá, mãe! Eu acho que é uma estátua de bicho.
— De que bicho?
— Dos nossos, mãe! Do gado!
— Menino, quem é que ia fazer estátua de gado, ainda mais do tamanho de um prédio?
— Mãe… Essa estátua é antiga. Não foi a gente que fez. É de um bicho macho, com a cara peluda. Só que ele tá de roupa. E de braços abertos assim. Acho que a estátua ficava em pé no alto da montanha, devia ser impressionante.
— Mas quem fez uma estátua dessa, menino? Uma estátua de bicho vestido, do tamanho de um prédio? É piada?
— Mãe… Eu acho que isso é de antes da gente chegar, antes das sondas, dos satélites. E se foram os bichos que fizeram?
— Ah, pronto… Lá vem você com esse papo de novo.
— Mãe, eles são inteligentes! Cê não vê como eles olham pra gente? Às vezes eu chego no estábulo à noite, acendo a luz, e parece que eles estavam cochichando alguma coisa, sabe? Conspirando, sei lá.
— Seu pai não devia ter deixado você ficar com aquele de bicho de estimação. Bicho tem que ficar lá fora, não dentro de casa, dormindo na cama da gente. Olha no que dá: tá mexendo com a sua cabeça. Eles são bichos. É gado. Dão leite e carne pra gente. Mais nada. Você precisa entender isso.
— Mãe, mas a estátua…
— Eu não quero mais ouvir esse papo. Não era nem pra você ter ido até a montanha, muito menos ter subido. Não quero saber. E seu pai já falou: se você não seguir as regras aqui, vai voltar pra casa. É isso que você quer?
— Não…
— Então sossega e vai cuidar dos bichos. E traz aquele filhote que já tá gordinho, que hoje seu pai pediu pra comer uma carne macia.