— Tava onde?

— Por aí.

— Por aí onde, menino? Os bichos tão morrendo de fome.

— Que drama, mãe! Eles comeram de manhã…

— Eu já te falei que precisa ter horário pra tudo: pra dar comida, pra limpar o curral, pra trocar a palha do estábulo… E você passeando. “Por aí.” Por aí onde? Já te falei que é perigoso. A gente não sabe o que tem pra lá.

— Se todo mundo pensar assim, a gente nunca vai saber o que tem nesse planeta.

— A gente não precisa andar por aí pra saber. Tem um monte de sonda lá pra dentro, tem satélite em órbita, justamente pra isso. Os cientistas lá na base exploram o planeta e mandam informações pra gente. O nosso papel é colonizar.

— Você e o pai se contentam com pouco, né?

— Com pouco? Com POUCO? Menino, você sabe o que isso aqui significa? Quanto sacrifício, quanto dinheiro? Duzentos anos atrás ninguém nem pensava em colocar uma pessoa no espaço. Faz só 150 anos que a gente começou a explorar o nosso sistema solar.

— Nossa, 150 anos, praticamente ontem…

— Eu ODEIO quando você é debochado. 150 anos é muito pouco no contexto histórico. Uma espécie sair da limitação do seu planeta para o satélite mais próximo, depois para os planetas do seu sistema solar, depois conseguir colonizar um planeta tão longe de casa, em outro sistema solar… Você acha pouco?

— Ah, sei lá.

— “Ah, sei lá”… Você nunca sabe de nada. Só fica por aí se arriscando à toa. Vou falar de novo: nossa área é essa aqui, entre a montanha e o mar. Não temos autorização pra subir em montanha, pra passar da montanha pra lá, nem de entrar no mar e sair navegando por aí. É perigoso. O governo bate nessa tecla sempre: é perigoso. Tá entendido?

— Mas mãe…

— Tá entendido?

— Tá…

— Agora vai alimentar os bichos. Aproveita e vê como tá a fêmea prenha lá no estábulo. É capaz de já ter parido, e você não estava aqui pra ajudar.

— Mãe, tá longe ainda. Eu tô acompanhando o tempo, falta uma semana ainda… Uma semana lá de casa, que aqui é… Peraí… 47 dias? Não. 46. Faltam 46 dias pra ela parir.

— Tá vendo como você é? Você é estudioso, atencioso com os bichos, sabe cuidar deles, faz a ordenha, leva os machos para cobrir as fêmeas no tempo certo… Só precisa sossegar o facho.

— Tá bom, mãe.

— Te amo.

— Também te amo… Mas você não quer saber do que eu achei hoje?

— Não.

— Certeza? Cê vai ficar doida.

— Ai, ai… Vai, fala.

— Eu subi naquela montanha ali. Aquela pra direita, não a outra.

— Quê?! Até lá em cima?

— Mãe, relaxa. Quer saber a história ou não? Então… Subi lá. Tem um resto de caminho no meio da mata, acredita? Acho que o pessoal que veio aqui construir antes da colonização começou a fazer e depois desistiu. Então fui seguindo esse caminho, subindo, subindo… Cheguei lá em cima e tinha uma estátua lá!

— Estátua? Tipo estatueta?

— Não! Estátua grande, do tamanho de um prédio! Tombada de lado, coberta de plantas, já meio enterrada.

— Estátua de quê, menino?

— Aí é que tá, mãe! Eu acho que é uma estátua de bicho.

— De que bicho?

— Dos nossos, mãe! Do gado!

— Menino, quem é que ia fazer estátua de gado, ainda mais do tamanho de um prédio?

— Mãe… Essa estátua é antiga. Não foi a gente que fez. É de um bicho macho, com a cara peluda. Só que ele tá de roupa. E de braços abertos assim. Acho que a estátua ficava em pé no alto da montanha, devia ser impressionante.

— Mas quem fez uma estátua dessa, menino? Uma estátua de bicho vestido, do tamanho de um prédio? É piada?

— Mãe… Eu acho que isso é de antes da gente chegar, antes das sondas, dos satélites. E se foram os bichos que fizeram?

— Ah, pronto… Lá vem você com esse papo de novo.

— Mãe, eles são inteligentes! Cê não vê como eles olham pra gente? Às vezes eu chego no estábulo à noite, acendo a luz, e parece que eles estavam cochichando alguma coisa, sabe? Conspirando, sei lá.

— Seu pai não devia ter deixado você ficar com aquele de bicho de estimação. Bicho tem que ficar lá fora, não dentro de casa, dormindo na cama da gente. Olha no que dá: tá mexendo com a sua cabeça. Eles são bichos. É gado. Dão leite e carne pra gente. Mais nada. Você precisa entender isso.

— Mãe, mas a estátua…

— Eu não quero mais ouvir esse papo. Não era nem pra você ter ido até a montanha, muito menos ter subido. Não quero saber. E seu pai já falou: se você não seguir as regras aqui, vai voltar pra casa. É isso que você quer?

— Não…

— Então sossega e vai cuidar dos bichos. E traz aquele filhote que já tá gordinho, que hoje seu pai pediu pra comer uma carne macia.

O emoji “Man in Business Suit Levitating”

Foi ali, bem ali naquele balcão de bar, no fim de uma noite ruim, que Gustavo soube que estava apaixonado. Ela continuava com a história (“O nome dele é Walt Jabsco. Se você falar o nome, ele vai embora. Walt Jabsco. Não esquece.”), e ele fascinado mais pelo timbre da voz, pelo corte de cabelo assimétrico com uma mecha que caía sobre a testa e pendulava quando ela gesticulava, pelo nariz grande e um pouco torto para a esquerda, pelos olhos castanhos que brilhavam de álcool e entusiasmo pela lenda urbana do homem que flutuava.

— Você não tá nem escutando né, né?

— Claro que sim — disse Gustavo, só querendo que os lábios carnudos sem batom não parassem de se mover. — Esse cara… como é o nome?

— Walt Jabsco.

— Esse Walt aí, um cara branco, alto, de terno e gravata e chapéu fedora…

— Fedora não: pork pie. Igual o do Buster Keaton, mas de feltro.

— Esse cara de chapéu de Buster Keaton… Faz o quê? Visita as pessoas? Tipo uma Testemunha de Jeová? “Bom dia, você teria um minuto para a palavra de Walt?”.

— Você não leva a sério!

— Levo, claro que levo, Karina! Seriíssimo. Mas é que já bebi um pouco demais, estou com dificuldade de gravar os detalhes. Conta de novo.

— Esse cara. De chapéu pork pie. Terno completo. Óculos escuros. Meia branca, sapato preto. — ela enumerava cada item da descrição levantando um dedo da mão esquerda, e Gustavo se apaixonava mais — Walt Jabsco. Ok? Ele toma a forma que quiser.

— Tipo Super Gêmeos? “Forma de um balde de gelo!”

— Não, tipo… Forma de gente. Geralmente ele se apresenta como enfermeira, ou médico. Porque é assim que ele se alimenta, percebe? Escolhe um hospital e sai fazendo a ronda pelos quartos. Quando escolhe um paciente, ele fecha a porta e se transforma de volta em Walt Jabsco. Terno e gravata. Chapéu pork pie. Sapato preto, meia branca.

— Tipo Michael Jackson, mas em vez de fazer a inclinação antigravidade e Moonwalk, ele levita.

— Isso. E aí quando ele levita, pode esquecer. Se ele está levitando, é que não precisa mais se esconder de você. Chegou sua hora.

— O quê? A pessoa morre?

— Morre. Ele prefere pessoas não muito doentes, mas que também não levantem suspeitas. Todo mundo tem uma história assim, já reparou? “Minha mãe ficou dois meses no hospital, estava se recuperando, de repente teve uma piora de madrugada e morreu”. “Meu tio já estava bem, o médico falou que teria alta no dia seguinte. Infarto fulminante. Do nada.” Chamam isso de “a melhora da morte”. É como uma lâmpada daquelas antigas, incandescentes, que brilhavam mais forte logo antes de queimar. Mas não é isso. É…

— … Walt Disney.

— Jabsco.

— E por que ele pega esse pessoal e não quem já está mesmo nas últimas? Seria até um ato de misericórdia.

— Porque é disso que ele se alimenta, entende? Da… vitalidade da gente, eu acho. Pouca vitalidade, poucos nutrientes. O cara que está no hospital já se recuperando é comida de hospital: sem gosto, pouco calórica, mas nutritiva. O paciente desenganado, em coma, é um chuchu desidratado: não tem sustança. — Ela faz mesmo cara de quem mordeu um pedaço de chuchu seco, e o coração de Gustavo perde o compasso.

— Mas aí esse… esse SER aí passa a vida só na base da comida de hospital?

— Não lembro direito. É só uma lenda urbana, Gustavo. Eu só sei que tá muito barulho aqui e eu quero ir embora…

— Tá bom. Eu chamo um Uber pra você…

— Eu moro a duas quadras daqui. Você me acompanha até lá?

— Depende. Você vai me convidar para subir?

— Talvez… Mas não se empolga, tá? Tô bêbada e exausta. Vamos conversar mais um pouco e dormir. De acordo?

— Cem por cento.

Conversaram, sim, mais um pouco. E dormiram. Mas não só. Gustavo estava apaixonado e dormiu sorrindo. Acordou com o sol entrando pela janela. Virou-se para o lado. Estava só na cama.

— Karina?

— Aqui na cozinha! Você come ovos no café da manhã?

Preparando o café da manhã! Gustavo já imaginava os filhos que teriam. Levantou-se, vestiu as calças, foi até a cozinha.

— Eu normalmente acordo sem fome, mas hoje eu poderia comer um boi.

— Eu também. Falando em fome, lembrei o resto da história do Walt. Ele é tipo o Renfield… Cê leu Drácula? Ele é que nem o Renfield, que só come rato, mosca, aranha. Assim é o Walt com pacientes de hospital. Só que isso não basta, né? De vez em quando bate a fome de verdade, e ele precisa de uma refeição completa. Você já fez dieta? Sabe quando você tá há duas semanas só na saladinha de alface e peito de frango grelhado? De repente você PRECISA de um doce, ou de uma lasanha, ou de churrasco. E aí não tem quem te segure, e é por isso que dieta não funciona. Bom, é assim com o Jabsco. No dia que bate a fome, ele precisa encontrar uma refeição decente, daquelas para se esbaldar.

— A não ser que a pessoa fale o nome dele.

— Exato. Aí ele vai embora. A NÃO SER que ele já esteja levitando. Tarde demais. A família lamenta o morto. “Tão novo, morrer desse jeito…” E o Walt, depois de uma refeição dessa, fica igual uma sucuri que comeu um bezerro: passa uns dias só descansando, fazendo a digestão. Depois de um tempo bate uma fomezinha, ele escolhe um hospital e começa tudo de novo. Até o dia de furar a dieta.

— Esse papo tá me deixando com mais fome. Vou botar a mesa na sala enquanto você termina aí.

Gustavo pegou pratos, xícaras, talheres para levar até a sala. No caminho, deu um beijo na bochecha de Karina. Linda, linda.

— Minha barriga tá roncando, credo! — ele falou enquanto punha a mesa — tô parecendo o Michael Jackson assombrado depois de um mês de comida de hospital.

— Também tô morrendo de fome! — gritou Karina da cozinha. — Vem aqui ver se tá bom.

— Tô indo.

Gustavo foi até a porta e parou.

Um homem estava parado no meio da cozinha.

De terno e gravata. Um chapéu de aba curta e copa achatada, com uma fita em volta. Como o do Buster Keaton, só que de feltro preto. Sapatos pretos, meias brancas, óculos escuros.

— Muita fome…

A voz de Karina saiu da boca do homem. O homem. Como era o nome dele? Wagner? Walter? Um sobrenome eslavo ou coisa assim. Com G, ou J. Ou seria D? O nome dele. Gustavo precisava lembrar o nome dele.

— Wallter… Não, Walt! Walt… — à cabeça dele só vinha “Disney”.

Walt Jabsco sorriu e colou os braços aos lados do corpo. Pareceu crescer diante de Gustavo. Dois centímetros, cinco, dez. Não, não crescer.

Walt Jabsco estava levitando. E sorrindo.

(da história do emoji, contada aqui)

I’ve got a mind that can steer me to your house
And a heart that can bring you red flowers
My intentions are good and earnest and true
But under my hood is internal combustion power
(Cake, Satan Is My Motor)

Eu, Marco Aurélio, 45 anos, sou uma pessoa trans

Foram anos, desde a adolescência (pelo menos!), me escondendo. O medo do que iam pensar, do que iam dizer, da reação da família, tudo isso me mantinha trancado num lugar onde não estou confortável, atrás de uma fachada que não me representa. Décadas sufocado, escondido, aterrorizado. Talvez você que está lendo esteja passando por isso. Deixa eu dizer uma coisa: não vale a pena. Você merece ser feliz do jeito que você é.

Se você nunca passou por isso, já parou para pensar se causou essa dor a outra pessoa? É hora de encarar seu próprio preconceito. É hora de rever suas convicções. E peço a você que leia este texto (se é que leu até agora) de mente aberta.

Por fora eu sou um homem pardo, gordo, calvo e de barba. Mas isso, minha aparência, não diz nada sobre minha real identidade. Porque por dentro eu sou outra coisa.

Por dentro eu sou um Jeep Willys 51.

Eu sou uma pessoa trans.

Transformer.

Ah, nem precisa dizer nada, já sinto seu julgamento daqui… Que feio, sua mente aberta durou menos de um minuto! Você não está preparado para abraçar o diferente. Que pena. Continue lendo, se quiser, mas já adianto que o que vem depois vai chocar ainda mais a sua sensibilidade burguesa.

Como eu disse, é algo que carrego comigo desde a adolescência, e só consegui carregar porque sou um veículo robusto, com tração nas quatro rodas, que encara qualquer terreno. E tenho uma história de batalhas, claro. Fosse eu um Corsa 1.0, sabe lá se teria suportado. Provavelmente teria fundido o motor antes da vida adulta.

Como sou forte, sobrevivi. Aos 25 anos, descobri a comunidade transformer na internet. Somos muitos! Se você nunca ouviu falar, é porque o Brasil é um país muito atrasado. Mas marcamos presença aqui, sim. Em São Paulo, onde moro, há um grupo pequeno, mas fiel, formado por pessoas que se identificam como carros de passeio, utilitários, motocicletas. Tem até um microônibus e um senhor simpático que se descobriu recentemente um Gordini 1965.

Em outros países, nossa comunidade é mais forte e organizada. Nos Estados Unidos há um rally anual só para pessoas transformers. Em Praga há faixas exclusivas para nós. Na Rússia, o Dr. Dimitri Ivanovitch Kolinov abraçou a comunidade e é hoje o maior especialista em cirurgias de transição de transformers no mundo.

Só no Brasil que é essa vergonha. Eu já tentei e recorri várias vezes ao Detran, e nada de aceitarem meu apelo por um número de chassis e um Renavam. Desconfio que há um tanto de etarismo aí também: como sou um modelo antigo, estaria isento de IPVA. Se eu fosse um Renegade 2019, certeza que as coisas seriam mais fáceis. Nem precisa tanto. Até se eu fosse um Celta mais novo. Se bem que há muito preconceito de classe também, até mesmo entre nós. Tem um Porsche Carrera do Rio de Janeiro que não fala com ninguém, se acha melhor que os outros. Pior é que é um fodido, de família falida. Aquele senhor que eu falei, o Gordini 65, sempre diz do Porsche (não na cara dele, claro): “Esse aí bebe etanol batizado e arrota gasolina azul.”

Eu não sei o que vão achar dessa minha revelação. Minha mulher, meus irmãos, minha mãe, meus amigos e colegas de trabalho: todos vão ficar chocados (mas nem todos surpresos). Tudo bem, é algo que tenho que enfrentar, e sem esquentar demais o motor com isso. Como disse Henry Ford (ele é tipo um deus na comunidade transformer), “A preocupação é o maior desperdício de energia que existe”.

A partir de agora, vou me ocupar da minha felicidade. Já tenho algum dinheiro guardado para minha transformação. A primeira etapa vai ser por aqui mesmo. Quero instalar um santo antônio, faróis de milha, talvez um reboque. Depois, se tudo der certo, vou viajar à Rússia para me consultar com o Dr. Kolinov. Lá poderei trocar meus membros desajeitados por rodas e pneus, do jeito que era para ser. O Dr. Kolinov avançou muito em suas pesquisas, e vai avançar mais. Está em teste uma substituição do sistema digestivo humano por um de injeção eletrônica. Há boatos de um transformer ucraniano com uma bomba de combustível no lugar do coração. De um angolano que instalou blindagem e lagartas, e entrou para o exército de seu país como veículo de combate anfíbio (é um excelente nadador). De uma italiana que se identifica como Romi-Isetta e está fazendo 12 quilômetros por litro. Na cidade!

Essas histórias me enchem de esperança, e deveria nos encher a todos. Há muita gente por aí ainda no armário (ou na garagem, como gostamos de dizer na comunidade). Eu só quero ser feliz do jeito que eu nasci para ser. E não é o que todos queremos?

Sua língua parece estranha dentro da boca. Você detesta notar a própria língua. Assim que notada, ela ganha volição. Ela parece grande demais para a boca, uma lesma úmida e obesa. Onde é o lugar certo da língua ficar? Grudada no céu da boca? Com a ponta nos dentes? Na… parte de baixo da boca? Você tenta lembrar o nome certo do lado oposto ao céu da boca. Chão da boca? Piso da boca?

Perceber o próprio corpo funcionando é estranho. A respiração, por exemplo. Ato involuntário, função do tronco encefálico, a parte mais primitiva do cérebro. É automático. Então por que você está reparando na sua respiração agora? Você pensa se está respirando certo. Se está fazendo barulho. Se está oxigenando direito o… O quê? O sangue? Como funciona esse negócio de respiração? Sabe Deus…

Há coisas que estão ali sem que você se dê conta, e você se irrita quando as percebe. O nariz está sempre no seu campo de visão. Já notou? Pois notou agora, e a única coisa que você vê é seu nariz. Ele se agiganta, toma a paisagem, ocupa a tela.

É estranho como o cérebro ama a obsessão. Considere o ohrwürm, earworm, verme de orelha: de repente você está com uma música na cabeça. Ou pior, um trecho de música. A mente está funcionando bem, e de repente vem o bug, o verme, em forma de LA LA LARANJEEEEIRA SATISFEITO SORRI ou NOSSA, NOSSA, ASSIM VOCÊ ME MATA ou Ô ANNA JÚLIAAAAA-AAAAAA-A-AAAAA-AA-AAAAAA ou aquele DERINDÁUN DÁUN DÁUN, DERÊ, DARADANDÁUN, DERIDADÁUN DÁUN do Skank. Pronto: a música se plantou na sua cabeça, vai ficar tocando em loop, e você está preso a ela.

Que inferno.

Você percebe que está sentado torto. Isso é péssimo para a coluna. Você se ajeita. A postura está certa agora? O pé está plantado no chão? A coluna está ereta? Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo. Se você conhece essa música do Walter Franco, ela está na sua cabeça agora.

O cérebro é uma doideira.

Mesmo as coisas que você evita pensar podem ser plantadas na sua cabeça. A imagem dos seus pais transando: por que você pensaria nisso? Por que você imaginaria seus pais nus na cama de casal da casa onde você cresceu, o pênis ereto de papai penetrando a vagina de mamãe? Isso é doente, para de pensar nisso! Pense em outra coisa, rápido! Pense na sua língua, sinta como ela é estranha dentro da boca. Evite pensar na língua do seu pai fazendo você-sabe-o-quê.

EU FALEI PARA EVITAR!

Pense em outra coisa, qualquer coisa. Pense nos seus mamilos roçando na roupa. Pense numa coceira bem no meio das costas, justo naquele ponto inalcançável que faz você esfregar as costas na quina da parede. Pense naquilo que seu pai te disse há tantos anos, mas que ainda dói…

Pense naquilo que você falou muito tempo atrás, que até hoje te mantém acordado. Que vergonha!

Pense no tanto que você é uma fraude. Mais cedo ou mais tarde eles vão te descobrir.

Há quanto tempo você está sem piscar? Taí outro movimento involuntário. Piscar é importante para limpar e lubrificar os olhos. Esse ato involuntário desliga temporariamente o circuito visual do cérebro, por isso você pisca e nem nota. Exceto se o fizer de forma voluntária, claro.

Por que você está piscando?

Onde está sua língua agora?

Por que é que dói tanto quando a gente morde a língua sem querer, mas dói nada quando morde de propósito?

Pare de morder a língua!

O cara da kombi nunca vai esquecer da minha cara.

Tem uma frase que eu li no Insta semana passada: “Se 10 pessoas estão sentadas à mesa, chega um nazista e ninguém se levanta, há agora 11 nazistas sentados à mesa”. Era mais ou menos por aí, não lembro direito. Mas olha quantas profundidades se escondem por trás de uma frase simples, né? Simone de Beauvoir disse que o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos. Eu cansei de ser cúmplice faz tempo. Vocês sabem como eu sou, né? A Sandrinha e a Fê vivem dizendo que sou louca, que arrumo confusão. Mas o que eu vou fazer? Daqui do meu lugar de privilégio como mulher branca eu posso criar condições de combate à injustiça.

O cara de ontem, da kombi, que o diga.

Eu estava vindo da feirinha do MST, sabe aquela? Comprei berinjela, limão, alho… Tudo orgânico, pra fazer um babaganush mara. Coloquei na cestinha da bicicleta e estava indo para o Santa Luzia comprar pão sírio e tahine. Parei um pouco pra descansar e tirar fotos da pracinha. Fim de tarde, aquele pôr do sol maravilhoso de inverno, crianças brincando… É lindo aqui no bairro porque as crianças vão sozinhas brincar na praça. Ao mesmo tempo em que eu gosto de me sentir assim segura, fico pensando no nosso privilégio. É preciso reconhecer o privilégio todo dia. Nesse grupo, mesmo: eram, sei lá, sete ou oito crianças, e só um menino negro. Fiquei pensando se era filho de alguma empregada. E aí fiquei pensando no racismo estrutural que me fez pensar nisso. Ele podia ser de família rica também. Filho de algum jogador de futebol. Não que o negro só enriqueça jogando futebol. Esse é outro pré-conceito que a gente carrega e não percebe. O lugar do negro é onde ele quiser. Mas enfim, nem é essa a história.

De repente para uma kombi. Toda amassada, farol quebrado, uma chave-de-fenda segurando o vidro, um monte de ferrugem. Aí cês não vão acreditar: desce um cara todo esquisito, olhando desconfiado pros lados. Todo amarfanhado, barba desgrenhada. Careca-cabeludo, sabe? O cara é careca aqui em cima, aí em volta da cabeça é um ninho de cabelo. Muito esquisito. Não pela aparência, que eu nem reparo nessas coisas, mas pela atitude. Bem o jeitão de quem vai fazer alguma coisa errada.

Aí o cara pega e me abre aquela porta de correr da kombi, e lá dentro tem o quê? Um monte de doce, balões, brinquedos. Fiquei só olhando. As crianças, claro, foram chegando perto. O carequeludo… Quê? Carequeludo é o careca-cabeludo, ué. O carequeludo mudou de postura na hora! Ficou mais relax, sorridente. Eu não conseguia escutar o que ele dizia pras crianças, mas devia ser muito engraçado, porque elas riam cada vez mais alto. Ele dava doces, mostrava os brinquedos, brincava com elas.

E aí vocês não vão acreditar. O cara fez um gesto assim, de convite, e as crianças foram entrando na kombi. Duas subiram no banco da frente, as outras foram entrando atrás… Só uma criança não entrou, sabem qual? Bem o menino negro! O cara já estava contornando a kombi para sentar no banco do motorista, mas foi aí que eu intervim.

— Moço! Ô, moço! Ô, careq… — quase que eu falei, Fê! — Ô, da kombi!

Cês precisavam ver a cara de assustado dele. Machinho nunca espera ser confrontado por uma mulher, né? Ainda mais esse tipo. Ele ficou paralisado ali. Cheguei mais perto, peguei e falei assim:

— Cê tá louco?! — eu falei — Em plena luz do dia, acha que ninguém tá vendo? Doente!

Aí ele:

— Moça, eu s-só estava…

Aquilo me ferveu o sangue, menina! O cara ali gaguejando, suando. Não era o bonzão? Peguei o menino negro pela mão, perguntei o nome dele. Pior é que depois esqueci. Adilson, Róbson… Um nome desses, bem de… bem brasileiro. Não importa o nome, ali eu senti uma conexão forte com o Edmilson, ou Edilson. Trouxe ele pra pertinho de mim.

— Qual o seu problema com esse menino?

— Moça, problema nenhum…

— É porque ele é NEGRO, né? Porque você é um RACISTA.

— Moça, pelo amor de Deus…

Típico, né? “Deus”. Tem que trazer religião pra conversa. Fiquei só esperando ele falar que tinha família. Família tradicional, claro. Alguém tem dúvida de quem ele votou em 2018? Não, né? Cidadão de bem…Eu continuei falando, virada no jiraya, daquele jeito que cês sabem que eu fico:

— Qual o problema com ele, hein? Você acha que ele é diferente dos outros? Que ele é inferior?

E ele:

— Não é racismo, que absurdo! Eu tenho vários amigos negros, inclusive. Só que para o que eu quero é complicado, eles correm muito…

Cês acreditam?! Estereótipo assim, na minha cara! O sangue me subiu à cabeça dum jeito… Dei um murro na porta da kombi.

— Abre essa porra. ABRE!

O cara, todo amuado, abriu a porta. Coloquei o Róbson no banco e falei pra ele:

— Vai, filho. Vai passear com seus amiguinhos. Não deixa ninguém te dizer que você é diferente, tá?

Aí me veio… Gente, nem sei explicar. Uma emoção forte, uma vontade de chorar. Aquele sentimento de ter contribuído, sabe? De ter feito a diferença. Não sei o que me deu, mas falei pro menino:

— Eu te amo, Róbson.

Gente, um negócio que eu nunca falei pra ninguém! Pra macho nenhum, nem pra minha mãe tóxica, nem pro meu pai minion… E ali estava eu, falando para um negri… para uma criança que eu a amava. E era de verdade, um sentimento puro.

O menino começou a chorar, emocionado também, enquanto eu fechava a porta. Foi tão lindo, uma pena eu não ter lembrado de fotografar.

O carequeludo gaguejou umas desculpas; ignorei. Ele entrou na kombi, deu a partida, foi embora com as crianças. Ele nunca vai esquecer minha cara.

Trancados no supermercado de prateleiras já vazias, esperamos o fim. Todo dia alguém faz a escolha entre ficar aqui e morrer de fome ou sair e se juntar aos mortos lá fora, ser mais um morto-vivo confuso e faminto por carne, mais um defunto a quem foi negado o descanso.

Eu ainda não decidi. Passo meus dias deitado sobre uma pilha de embalagens vazias, recapitulando o que nos trouxe até aqui. A epidemia. A doença espalhada sem controle. Os mortos sem conta, e depois a decisão de não contá-los. As primeiras notícias sobre os que se levantavam, contrariados por terem sua realidade negada. No começo virou piada. Boataria, fake news, sensacionalismo para dar clique.

Até o dia em que o morto mordeu o governador.

De repente estava ali, na nossa frente. Era um adolescente negro, magrinho. A pele ressecada tinha textura de pergaminho e cor de papelão molhado. Lembro de notar a terra no cabelo crespo e na roupa esfarrapada e pensar “mas nem pra tomar um banho” antes de me dar conta do que estava acontecendo. Ele mordeu o governador no topo da cabeça, como uma criança mordendo o maior pirulito do mundo. O tiro pegou bem no meio da cabeça do morto-vivo, mas era tarde. A transformação do governador foi imediata. Num momento estava fazendo duras críticas ao presidente que até tão pouco tempo atrás era seu aliado. No outro, era um ser de olhar vazio que rosnava. Ele ainda teve tempo de morder três repórteres antes de também ser alvejado.

(uma coisa é atirar num negrinho, coisa cotidiana, outra muito diferente é atirar no governador)

Mas aí já era o caos, a gritaria, uma orgia de mortos mordendo e criando outros mortos que mordiam e assim por diante.

Deixar de contar os mortos foi um erro. Tornados fantasia, exagero dos alarmistas, estatística falha, eles se rebelaram. Se a morte era mentira, então não ficariam deitadões esperando os bichos. Voltaram, fizeram esse estrago todo lá fora. Foi um erro, mas nem temos a quem responsabilizar. Segundo as últimas notícias que chegaram antes da internet cair de vez, o presidente era um morto vagando sozinho (nem mortos nem vivos queriam nada com ele) pelas ruínas de Brasília, comendo calangos e rosnando coisas sem sentido (certas coisas não mudam).

Olho lá fora e, de trás da porta de vidro, ela me olha. Uma menina que não deve ter mais de seis anos. Olhos fundos nas órbitas, dentes expostos pela boca já sem lábios, a cabeça com só alguns tufos de cabelo aqui e ali. Um coelhinho de pelúcia sujo abraçado com mãos ossudas sobre o peito.

— Está com fome, filha?

Ela me olha fixo. Sinto pena. Pobre mortinha que não pode descansar.

“Facada mal dada do caralho”, eu penso enquanto abro a porta.

Operários, de Tarsila do Amaral

Da primeira vez que ouvi a frase do título, ela veio atribuída ao Pelé. Depois descobri que era de um certo Robson, jogador do Fluminense. Robson estava num carro junto com dois brancos. Um casal negro atravessou a rua sem olhar, e os dois começaram a gritar impropérios racistas. Robson pediu aos companheiros que parassem, porque racismo era coisa séria: “Eu já fui preto, sei o que é isso”.

O jornalista Mário Filho conta essa história no livro “O Negro no Futebol”. Procure “eu já fui preto” no Google e vai encontrar várias citações do texto, a maior parte delas falando da questão social x racial, de como o preto deixaria de sofrer racismo ao ascender socialmente etc.

Este texto não é um desses.

Pretos são 8,86% da população brasileira. Pardos, 45,06%. 45,22% dos brasileiros se dizem brancos, e eu chutaria que metade são pardos em negação. Pretos e pardos formam o grande grupo dos negros. Eu sou pardo, esse borrão de cor indefinida na Aquarela do Brasil.

Existe todo tipo de pardo. Tem aquele que bota um aplique e começa a falar que é preto. Tem aquele que já é preto mas ainda não sabe. Tem aquele que passa tranquilamente por branco. Tem o que acha que é branco. Tem até pardo supremacista branco.

O Brasil é inacreditável.

Como eu ia dizendo, sou pardo. Então quando eu digo que já fui preto é porque já sofri uns racisminhos aí pela vida. Não o RACISMO, aquele da violência e do ódio, mas o racismo da confusão, das coisas que presumem sobre mim por causa da minha aparência.

(Já fui chamado de macaco uma vez, mas foi tão engraçado que eu nem conto como racismo. Eu tinha 18 anos e dava aula numa escolinha de informática. Tinha um aluno surdo-mudo que fazia barulho a aula inteira: batucava no teclado, na mesa, no monitor. Surdo não tem noção do barulho que faz. Um dia eu pedi pra ele parar, que estava atrapalhando. Aí ele virou de costas para mim e… Sei lá, eu acho que ele pensou que estava balbuciando. Mas falou MUITO ALTO e com aquele sotaque de surdo: MÃ-CÃ-COOO. Eu deixei barato, mas depois desse dia eu vivia falando “ê, surdo filho da puta…”; a sala ria, o surdo olhava em volta sem entender nada, ria também. A gente faz o que pode.)

O resto é bobagem, mal-entendido, confusão besta.

Numa festa de aniversário da minha sobrinha, o segurança do condomínio falou para eu “encostar lá atrás, pra descarregar”. Demorei a entender. Ele achou que eu fosse fornecedor, não convidado. Eu dirigia um Corsa, botei na conta do carro. Mas não era. Anos depois, já dirigindo o carro atual (SUV daqueles bem de paulista, bancos de couro, câmbio automático), várias vezes em vários lugares eu ouvi “veio buscar quem?”. “Vim buscar tua mãe, pra levar ela pra dar na Cracolândia”, eu penso. Trabalhei para uma emissora aqui em São Paulo por um tempo, e toda semana um segurança diferente (mas sempre mais escuro do que eu) me perguntava isso. Ou então estava no estacionamento esperando o carro, chegava um cliente e me entregava o ticket. Essas coisas. “Você está aqui, você é dessa cor, tem essa boca e esse nariz, portanto é manobrista.”

Em loja de sapato acontece muito. “Moço, tem número 37 desse aqui?” Vendedor de loja de sapato usa uniforme com o nome da loja bem destacado na camisa. Eu não uso uniforme, mas tenho cara de quem usa. Aí eu digo “Desculpe, não tem”. Ou “vou ver no estoque” e saio pela outra porta.

No hotel Unique, aqui em São Paulo, aconteceu outra. Eu escrevi o roteiro de um programa que ia ser transmitido de lá. “Você chega na porta e pergunta onde é o credenciamento da emissora, não tem erro”. Foi o que fiz. O cara que estava na porta me falou para voltar por onde eu tinha vindo, virar à esquerda, descer a rampa da garagem até o final. Achei um lugar meio escondido demais, mas fui. Cheguei lá e a primeira coisa que notei foi o tamanho da fila. A segunda foi o tom da pele das pessoas. “Essa fila é do credenciamento?”, perguntei a um rapaz, que confirmou, disse que ia trabalhar de garçom e perguntou o que eu ia fazer. A moça atrás de mim era da limpeza. Aquele monte de gente parecida comigo, todos iam passar a noite pegando pesado. Eu ia ler um roteiro com artistas na suíte de hotel de luxo e depois acompanhar uma transmissão de dentro de um caminhão com ar-condicionado. Talvez até tomar um uísque caro que uma daquelas pessoas ia servir.

Voltei à recepção. “Cara, eu não falei que era da TV? Onde é o credenciamento da TV?”. Era logo ali do lado. Muitas pessoas brancas.

Uma vez me botaram num hotel em São Conrado, bairro chique do Rio de Janeiro. Ali foi esquisito. Não fui destratado, não me olharam estranho. Encostei no balcão e o cara olhou através de mim. Falei “boa noite”, e ele como se nada. Era como se eu não estivesse ali; nunca tinha sentido isso depois de adulto, muito menos depois de gordo. Não dá pra não ver um gordo. Foi só depois de falar o nome da empresa que o cara me viu. Aí me atendeu, fez o check-in, mas ainda cabreiro. Subi para o quarto, deixei as coisas, desci para o bar do hotel para tomar uma cerveja. “Boa noite”, e nada. “Qual cerveja você tem”, e nada. Mostrei a chave do quarto e, de repente, me materializei. “Pois não, senhor”. “Senhor é o negão que arromba teu cu”, eu só pensei. O que eu disse foi: “Me dá uma Heineken”.

E por que eu tô contando isso? Pra ser coitadinho? Pra chamar atenção? Até pode ser, eu bem sei que sou filho da puta a esse ponto. Mas eu queria contar mesmo para falar uma coisa que tenho pensado muito nesses dias de tensão racial no mundo todo: se eu, um pardo num país de maioria parda (maioria sim, tô vendo vocês aí dizendo que são brancos), de vez em quando passo um perrengue… Imagine o preto. Imagine o preto pobre.

Na periferia de São Paulo, onde eu nasci, eu passo por quase branco, como canta o Caetano em Haiti. Aqui em Santana, onde moro hoje, nem tanto. Nos Jardins eu sou quase preto, e “todos sabem como se tratam os pretos”. Mas não, né? São racisminhos. Nunca me machuquei, nunca sofri humilhação. A polícia não matou ninguém da minha família. Não é o monstro do racismo. É o racisminho. Uma amostra grátis, a versão demo. É só pra ter uma ideia do que deve ser a vida do preto no Brasil.

Não parece legal.

O que mata o velho não é a velhice, é a inveja da juventude. Eu achava isso quando jovem, e ainda mais agora, que estou ficando velho e preciso resistir à tentação de criticar tudo de que os jovens gostam. Lembro de quando eu era jovem e os mais velhos criticavam as músicas que eu ouvia (barulho!), os livros que eu lia (analfabetismo!), as roupas que eu usava (achavam que eu estava virando punk, mas era só desleixo, que mantenho até hoje).

Consigo com relativo sucesso não implicar com as coisas dos jovens: escutei quase uma música inteira da Billie Eilish, fiquei inscrito por mais de meia hora num canal de YouTuber famoso, fingi que um meme era engraçadíssimo. Mas tem um limite que não consigo ultrapassar: os influenciadores. Não entendo a relevância, não aceito o alcance, não admito o destaque que recebem. E o que é isso, se não inveja da juventude?

Então hoje eu decidi que vou dar uma chance a eles, mas eles têm que dar também uma chance a mim. Sou um velho tolerante, mas ainda preciso ver algum sentido nas coisas. Billie Eilish compõe com o irmão dela, produz as faixas, tem influência estética. Os youtubers produzem conteúdo, os memes são produto do zeitgeist. Mas e os influenciadores? O que fazem, além de receber e mostrar mercadorias? Quando foi que o ser humano começou a se contentar em ser vitrine? Eu, hein…

Demonstrem alguma utilidade, caros influencers! Minha sugestão: quando começarem a sair as primeiras tentativas de vacina para essa doença terrível, sejam pioneiros. Ofereçam-se para testar as vacinas.

Calma, não descartem a ideia sem ouvi-la inteira.

Cada influenciador receberia uma caixa bonitinha, forrada de veludo com uma camada intermediária de isopor. Dentro dela, as ampolas da vacina e uma linda seringa de vidro (é para uso individual, então não tem problema). Eles fariam vídeos mostrando esses recebidos tão valiosos, aplicando as vacinas, contando como tem sido a reação.

Depois de um tempo de testes, viriam os desafios: fazer live no pronto-socorro, beijar alguém que testou positivo para Covid-19, lamber um balaústre de ônibus. E aí veríamos qual vacina é mais eficaz.

Há vantagens e desvantagens nesse processo.

Os testes seriam transparentes, fáceis de acompanhar, os resultados sairiam mais rápido.

Alguns influenciadores morreriam.

Não consegui pensar em nenhuma desvantagem.

O que me dizem, influencers? Estão prontos a contribuir para a sociedade que os sustenta? Juro que dou like.

Eu lembro do dia que o Solano perdeu o medo da morte.

Já fazia um tempo que o Solano vinha uma conversa esquisita, um negócio até meio perigoso. Numa sociedade que preza a rotina, a ideia de Solano era um desatino. Um desvario. Uma safadeza.

Mas sempre tem aqueles né? Aqueles. Uns gostam de novidade. Outros são desajustados mesmo, não se encaixam. E outros ainda querem mais é ver o circo pegar fogo, bater palma para maluco dançar. Ou cantar, no caso de Solano. Entre novidadeiros, esquisitões e incendiários do aplauso, Solano foi ganhando seus adeptos.

Nesse dia, Solano conseguiu reunir um grupo bom, até. Duas operárias daquelas que o Chico Buarque cantava nos anos 70, que já não produziam como antes. Uma outra daquela música do Ney Matogrosso, que só reclama da fraqueza. Uns três velhos roucos, uns frangos. Até gato pingado tinha nesse dia. Solano falava, os outros concordavam. Quanto mais concordavam, mais Solano danava a falar.

— Quando nossos patrões tinham uma rotina fixa, concordo, precisávamos tê-la também. Mas agora?! Agora estão entocados, com medo. Os homens ficam dias sem tomar banho. As mulheres deixam o cabelo seguir a natureza, e nem sabem mais onde guardaram os sutiãs. As crianças gritam, correm, choram e os pais, anestesiados pelo medo e pela cachaça, deixam. Ora, se a vida deles é o caos, por que a nossa tem que seguir sendo a ordem?

Solano se empertigava, estufava o peito, andava de um lado para o outro. O público ia aumentando.

— Chega de bater ponto! A gente pega cedo no batente, e sabem o que nossos patrões estão fazendo esse tempo todo? DORMINDO! É hora de mudar, de repensar os horários. Aquele rapaz da cidade lá, como é o nome dele? Aquele ator meio marrom? Marcos, Marco, Marcelo, coisa assim. A que horas ele acorda? Na hora do almoço, o vagabundo. Então pra que a gente vai ficar acordando seis, cinco, quatro da manhã? Eu não sei vocês, mas eu cansei de cantar por nada. A partir de hoje, canto às onze da manhã. E quem achar ruim, que venha aqui tirar satisfações comigo.

O público, alarmado, foi se dispersando. Aí já era demais. “É doido”, dizia um. “Vagabundo”, comentava outro.

Sozinho no poleiro, Solano não desanima. Está empolgado com sua ideia. É um novo tempo, de novas oportunidades, de novos horizontes. Enche o peito, levanta o bico para o céu e capricha no cocoricó.

Lá da casa, uma janela se abre com estrondo. É Marcos, ou Marco, ou Márcio, com os cabelos em revolta, uma medusa de terracota.

— CALA A BOCA, GALO FILHO DA PUTA!

Solano para, suspira, desolado. É um gênio à frente do seu tempo.

— Sabe o que é isso aqui? — Mateus tira o nariz vermelho da gaveta e o mostra para a própria imagem no espelho — É a menor máscara do mundo.

Ele põe o nariz e sorri. Faz cara de choro. Faz careta. A maquiagem está ótima.

— Quem eu sou, o que eu penso. Meu CPF, minhas dívidas, meus vícios. Tudo isso escondido atrás dessa bolinha vermelha. Engraçado, né?

O reflexo olha. Pituco tomou o lugar de Mateus.

— Já volto — diz Pituco. — Vou buscar o Treze.

Ele sai. É uma manhã nublada, triste. Mas o palhaço tem compromissos. Uma festa infantil. Locução e palhaçadas na porta de uma loja no Centro. E… só. As pessoas não buscam mais os palhaços como antigamente. “Muita gente hoje em dia tem medo de palhaço”, ele pensa, e suspira.

A festa é aquilo de sempre. Cambalhotas. Mágicas. Doces. Nem sinal do Treze. A festa termina, Pituco recebe seu dinheiro, agradece. Entra no carro. Na esquina seguinte, para num semáforo. O motorista do carro ao lado pergunta onde estão os outros.

— Que outros?

— Palhaços, pô! Carro de palhaço, deve ter pelo menos uns quinze aí dentro, né não?

Pituco dá uma risada falsa. Olha para o carro. Um carro daqueles populares, como o de Mateus, como tantos outros. Todos igualmente sem graça. No banco de trás, um menino de uns 7 anos. Ele nota que Pituco olha e mostra o dedo do meio. Pituco sorri. É o Treze.

O coração do palhaço dispara. “Calma”, ele pensa. “Muita calma”. Respira fundo, faz uma breve oração pedindo calma. Tira o nariz por um instante para enxugar o suor,

[não pituco por favor não não não]

põe o nariz de volta. Mateus covarde. O sinal abre, o carro ao lado avança com uma buzinadinha camarada. Pituco acena, conta até três, vai atrás.

Está com sorte. O carro embica numa casa duas quadras à frente. O portão é baixo. Bom. Casa térrea. Melhor ainda. Pituco manobra, vai embora. Ainda é cedo. Além do mais, ele tem outro compromisso. E mais tarde tem que passar em casa. Limpar o quartinho, verificar as correntes e o isolamento acústico, alimentar o Doze.

Amolar as facas.

O Doze… Amanhã ele será história, uma lembrança que foge rapidamente, um fardo com pedras nos bolsos no fundo de um rio. Ele já imagina os próximos dias com o Treze. E sorri.