Deixamos o servo de Abraão na beira do poço esperando que as moças da cidade viessem buscar água. Pois ele mal acabou de estabelecer o critério pelo qual escolheria a noiva de Isaque quando viu Rebeca aproximando-se, carregando um cântaro no ombro. Rebeca, lembrem-se, era neta de Naor, irmão de Abraão. O servo ficou de queixo caído: a moça era linda. Esperou que ela tirasse a água do poço e, quando já estava indo embora, correu até ela.
— Moça! Ô, moça! Tô com uma sede danada, será que a senhorita não podia me dar um golinho d’água?
Rebeca deixou que ele bebesse e se ofereceu para tirar água também para os camelos. Despejou o conteúdo do cântaro no bebedouro dos animais e voltou várias vezes ao poço até que os camelos estivessem saciados (e sede de camelo não é brincadeira, vocês sabem). Enquanto ela ia e voltava com o cântaro, o servo ficou só na miúda, observando a moça. Quando os camelos terminaram de beber, ele pegou uma argola para nariz pesando 6 gramas de ouro puro (vejam que já existia piercing naquela época) e duas pulseiras de mais de cem gramas cada uma, também de ouro, e deu os presentes a Rebeca. Em seguida perguntou:
— Você é daqui? Quem é o seu pai? Será que tem lugar na casa dele para os meus homens e eu passarmos à noite?
Hum… Embora isso não tenha sido dito antes, o servo não foi sozinho. Acho que nem era necessário dizer: Partir para uma viagem longa, passando pelo meio do deserto sozinho seria suicídio. Ou então esse negócio de “meus homens” significa outra coisa, e o servo era coleguinha de Lot. Vai saber…
Mas Rebeca, muito educada, respondeu:
— Meu pai é o Betuel, filho de Naor. Lá na nossa casa tem lugar para dormir e bastante palha para os camelos também.
Ao saber disso, o homem se ajoelhou e adorou a deus, agradecendo por tê-lo guiado até dar de cara com alguém da parentela de Abraão. Olhando lá de cima, deus ficou meio envergonhado: não tinha interferido em nada, e parecia que os homens podiam se virar muito bem sem ele. Pela primeira vez na História, deus duvidou da própria existência.
Rebeca correu para a casa dos pais para contar o que havia acontecido. Notem que ninguém ainda falou em Isaque, então dá pra imaginar que a moça tava de olho era no servo. Pensando bem, aquele negócio de “Pode beber, e vou pegar água para os camelos também” e “Sem problema, vocês podem dormir lá em casa”, sei não… Acho que o tal servo perdeu uma excelente oportunidade de se passar por rico e faturar a donzela. Coitado…
Rebeca tinha um irmão chamado Labão.
— Lobão?
Não, Labão.
— Ah, Lobão!
NÃO, porra, Labão! Prestem atenção nesse cara. Até agora os personagens da bíblia eram ou bonzinhos ou malvados. Creio que Labão é o primeiro a ter um caráter dúbio, o que o torna mais convincente como personagem. Labão viu a irmã com uma argola de ouro no nariz e duas pulseiras enormes, ouviu a história toda, fez uns cálculos rápidos de cabeça e foi depressinha ao encontro do servo de Abraão, que ficara esperando em pé ao lado do poço.
— Meu senhor, como vai? O que o traz até essas quebradas, um homem tão distinto, tão elegante? E por que está aqui ainda? Simbora, já preparei a casa para recebê-los.
O empregado foi com ele até a casa. Lá chegando, Labão descarregou os camelos e lhes deu palha e capim. Depois trouxe água para que os homens lavassem os pés e mandou trazer a comida. Puro interesse, claro.
O servo, no entanto, disse que só comeria depois de contar o que o levara até ali. Doido de curiosidade, Labão pediu que ele se sentasse
— Sou todo ouvidos, senhor.
O servo contou toda aquela história que já sabemos, do juramento para Abraão, do critério que inventara para escolher a moça, do encontro com Rebeca.
— E foi isso. Agora é com vocês.
Nem era preciso dizer. Abraão era aquele tio rico do qual raramente tinham notícias. Era a oportunidade para saírem da pindaíba.
— Meu senhor — disse Labão, todo bajulador — quem somos nós para decidir alguma coisa, se tudo isso veio de deus? Pode levar a Rebeca para que ela se case com o filho do seu patrão, como deus determinou.
Então o servo tirou da bagagem vários objetos de prata e de ouro e vestidos e os deu de presente a Rebeca. Deu também presentes caros para Labão e sua mãe. Vejam que o velho Betuel não apitava nada nessa casa: não tomou parte na decisão de dar a filha em casamento e também não ganhou nenhum presentinho…
Os homens comeram, beberam e passaram a noite na casa de Betuel. No dia seguinte, quando se preparavam para a viagem de volta, Labão veio falar com eles:
— Cês vão levar minha irmã embora? Mas já? Queisso! Acho melhor ela ficar por aqui mais uns dez dias e depois ela vai. Sabe como é mulher, demora pra arrumar as coisas, não pode ser assim, de uma hora pra outra.
Claro que o velhaco do Labão estava querendo mais presentes. Se Rebeca ficasse mais dez dias, os homens também ficariam, porque a viagem era longa e não valia a pena ir para Canaã e voltar depois. Além disso, o servo tinha feito um juramento a Abraão, não queria chegar dizendo “Olha, achei uma noiva para Isaque, lindíssima, virgem e neta do seu irmão, do jeitinho que o senhor queria. Mas deixei ela por lá mesmo”. Já imaginaram a reação do velho? Por isso o servo bateu o pé e disse que estava indo e pronto.
— Tudo bem, tudo bem. — disse Labão — Vamos chamar Rebeca, ela que decida. Rebeeeeeecaaaaaaaa! Ô, Rebeca. Cê quer ir com eles?
Pensando na vida de fartura que levaria dali pra frente, ela não pensou duas vezes:
— Ôpa! Tamozaí!
Rebeca chamou a mulher que havia sido sua babá para ir com ela, montaram nos camelos e começaram a viagem.

* * *

Isaque vinha andando cabisbaixo, no caminho de volta do poço de Laai-Roi (que significa Aquele que vive e me vê). Ele saíra à tardinha para meditar. Ainda estava muito triste com a morte da mãe. Não tinha irmãos que o ajudassem a superar essa dor, e não era de muita conversa com o velho, todos sabemos por quê. Aos quarenta anos de idade, permanecia solteiro, e sem perspectiva de encontrar alguém. Perdido nesses tristes pensamentos, olhou para o horizonte e viu uns camelos se aproximando. Rebeca também olhou e viu aquele homem tão bonito e tão triste, e perguntou ao servo de Abraão quem era aquele.
— É Isaque, filho do meu patrão.
Rebeca pôs o véu no rosto e foram ao encontro de Isaque. O servo contou a ele tudo o que ocorrera desde sua partida, mas Isaque mal ouviu sua história: Estava hipnotizado pela beleza de Rebeca.
Naquele tempo e lugar o casamento não era essa coisa chata de hoje, com uma pilha de papéis para assinar, roupas desconfortáveis para vestir e festas intermináveis para ficar até o fim sem tirar da cara o sorriso de noivos felizes: Isaque apenas pegou Rebeca pela mão e a levou para tenda que havia sido de Sara (e se Sara tinha uma tenda só dela, é mais um indício forte de que ela e Abraão haviam se separado). Isaque foi consolado, enfim, da perda da mãe. Os dois viveram felizes, mas não posso dizer que tenha sido para sempre. Rebeca também aprontou as dela, como veremos mais tarde.

Hoje em dia quando alguém quer te fazer jurar alguma coisa, só diz “Jura?”. Aí você responde “Juro” e a pessoa se dá por satisfeita. Mas nos tempos de Abraão não era assim, como veremos agora.
Abraão já era bem velho. Quando Sara morreu, o patriarca contava 137 anos de vida. Sabendo que ia morrer e Isaque não arrumava mulher de jeito nenhum, e preocupado com a possibilidade de o filho estar indo pelo mesmo caminho cor-de-rosa trilhado por seu sobrinho Lot, Abraão tratou de acelerar as coisas: Chamou seu servo mais antigo, o que administrava tudo o que tinha e disse a ele:
— Põe a mão debaixo da minha coxa para me fazer um juramento.
Coisa mais esquisita essa fórmula de juramento, né não? Bom, tentem entender, Abraão estava viúvo, sozinho, melancólico. Precisava de um pouco de calor humano e foi buscar isso com seu servo mais fiel. Ah, vai, todo mundo está sujeito a uma escorregada… Mas vamos ao juramento:
— Jura por deus que você não vai arrumar mulher pro meu filho aqui na terra dos cananeus, mas irá até minha terra pra trazer pra ele uma namorada que seja da minha família.
O servo, que era bastante prático, levantou logo uma objeção:
— E se a mulher não quiser vir comigo? Vou ter que fazer o Isaque ir lá pra sua terra pra se casar? Trabalheira da porra…
— Não, de jeito nenhum! Deus me tirou de lá há tantos anos, e a terra que ele me prometeu é esta aqui. Vai pra lá, e que deus te ajude nessa empreitada. Mas se a mulher for ranheta mesmo e não quiser vir, paciência, você fica livre do juramento, só não faça Isaque ir pra lá.
Então o servo colocou a mão sob a coxa de Abraão (que coisa!) para fazer o juramento solene. E foi logo tratando da viagem: pegou dez camelos e foi pra Mesopotâmia (Síria), para a cidade onde morava Naor, irmão de Abraão. Chegando perto da cidade, fez os camelos se ajoelharem perto de um poço aonde as moças da cidade iam à tarde para fazer fofoca, trocar dicas de beleza e, claro, tirar água. Pô, o cara era um administrador de fazenda, e não tinha o mínimo dom para alcoviteiro. Então resolveu apostar na sorte mesmo:
— Ô, deus do meu chefe Abraão! Faz assim: quando as moças começarem a chegar eu vou começar a pedir a elas que me dêem um gole d’água. A primeira que me der água e também se oferecer para tirar água para dar de beber aos camelos, essa será mulher do Isaque, beleza?
Bom, era um critério como outro qualquer. O servo ficou em pé perto do poço e pôs-se à espera da caravana de donzelas.
E deus, lá de cima, pensou que esse negócio de arrumar casamento pras pessoas até que daria um bom programa de televisão. Mas pensou melhor, virou para o outro lado e voltou a dormir.

Antes de contar mais essa história triste, temos um trecho falando que Abraão recebeu notícias de casa. Naor, seu irmão, tivera oito filhos com Milca: Uz, Buz, Quemuel, Quésede, Hazo, Pildas, Jidlafe e Betuel. Além desses, Naor ainda tivera quatro filhos com sua concubina Reumá: Teba, Gaão, Taás e Maaca. Qual a relevância disso pra nossa história? Bom, primeiro várias sugestões de nomes para os filhos de meus leitores. Imagina que chique, ter gêmeos e chamá-los de Uz e Buz. Dá até uma dupla sertaneja. Mas o importante mesmo é que Betuel teve uma filha chamada Rebeca. Além de ser a única em toda essa família a ter um nome normal, ela ainda desempenhará importante papel em nossa história. Aguardem.

* * *

Mas é isso, Sara, nossa velhinha encrenqueira, morreu aos 127 anos de idade. Confessem que vocês já estavam criando uma certa simpatia por ela. Ela morreu em Quiriate-Arba e veio Abraão chorar por ela. Reparem nisso, o cara veio. Vejam que aquele negócio do sacrifício de Isaque pode ter sido mais sério ainda, causando a separação dos pais.
Depois de chorar a morte de Sara, Abraão foi falar com o povo de Hete (que era onde ficava Quiriate-Arba) para arranjar sepultura para a morta. E a cena que se segue mostra bem a característica do negociante oriental, cheio de cerimônias:
— Olha, povo de Hete, vocês sabem que eu sou estrangeiro e tal e coisa. O negócio é que morreu minha velha, que ficou a vida inteira comigo, e estou procurando um lugar para sepultá-la.
E o representante deles respondeu:
— Abraão, você é um princípe de deus aqui pra gente. Escolhe a sepultura que você quiser entre as nossas, e será nosso presente.
E Abraão se reclinou em respeito a eles e disse:
— Já que é assim, falem com Efrom, filho de Zoar. Ele é o dono da cova de Macpela; falem com ele para que ele me venda a sepultura pelo preço justo.
O tal Efrom estava no meio dos caras e se manifestou:
— Queisso, Abraão? Você é gente boa, e sua finada esposa também era, todo mundo gostava dela. Eu te dou a cova e o campo onde ela está de presente, deixa de viadagem. Tá todo mundo aqui de testemunha.
— Ah, Efrom, eu agradeço muito — respondeu Abraão, reclinando-se novamente —, mas faço questão. Me fala o seu preço, eu compro o campo e a sepultura.
— Pára com isso, Abraão! — Agora vem a malandragem — O valor dessa tera é de quatrocentos siclos de prata, uma ninharia, o que é isso diante da nossa amizade?
Abraão entendeu o recado: Pesou a quantidade de prata estipulada e pagou a Efrom. E sepultou Sara na cova de Macpela.

Já tem gente achando que eu sou algum tipo de evangelista enrustido, divulgando a bíblia e disfarçando isso com piadas. A verdade é que eu tive uma formação protestante e gosto das histórias da bíblia. Quanto a deus, eu prefiro pensar que ele não existe. Porque imaginar que exista um ser capaz de tanta crueldade, de tantas piadas de mau gosto, ah, é assustador demais.

Depois de um breve porém intenso ataque de narcisismo, vamos voltar à bíblia, seus ímpios.
Tantos anos depois de sua estréia, as Pegadinhas de Jeová ainda lideravam a audiência no horário. Mas deus estava cansado, as Pegadinhas tomavam quase todo o seu tempo e, sejamos francos, ele já não era mais nenhum jovenzinho impetuoso. Então ele resolveu que já era tempo de tirar umas férias, de parar de interferir na vida das pessoas e descansar um pouco. Convocou uma coletiva e anunciou à imprensa que o último episódio do programa iria ao ar na semana seguinte. Foi um rebuliço, os repórteres não acreditavam no que estavam ouvindo. Maior ainda foi a reação do público, choviam cartas na emissora pedindo a continuidade do programa, e pela primeira vez na história o servidor de e-mail do céu saiu do ar (tá certo que rodava Microsoft Exchange e ia acabar acontecendo mais cedo ou mais tarde). Mas deus mostrou-se irredutível, e na semana seguinte, como prometido, foi ao ar o último episódio das Pegadinhas de Jeová, que passo a narrar agora. Vou ver se consigo deixar a história um pouco mais leve e engraçada, mas é quase impossível, como vocês verão. A crueldade de deus não tem limites.

Estava Abraão dentro da tenda um dia, só ali coçando o saco, e deus veio falar com ele.
— Ô, Abraão, como é que vai?
— Tudo na santa paz de deus. Digo, do senhor. Bom, você entendeu.
— Beleza… Notícias de Agar e Ismael?
— Não, nunca mais deram sinal de vida, não entendo porquê. Fui tão legal com eles…
— Ah, Abraão, a ingratidão é foda. Se eu for te contar todas as vezes em que foram ingratos comigo, a gente não sai daqui hoje.
— Bom, eu não pretendo sair mesmo. Tô na minha casa, esqueceu?
— Não pretende sair, é? Pois é, mas acho que você vai precisar… Como está Isaque?
— Ah, seu deus, esse menino é a alegria da minha vida. É inteligente, é carinhoso, tá crescendo que é uma beleza. Eu e a velha passamos o dia rindo feito bobos das coisas que ele apronta, esse nome foi mais apropriado do que o senhor pensava. E fala cada coisa, cê tem que ver. Ah, nem gosto de falar muito, olha aí, já tô me emocionando. Foi o melhor presente que o senhor podia me dar, nada do que eu fizer será suficiente para agradecer.
— É, né? Pois é… Então… Bom, vou direto ao ponto: Você vai pegar o Isaque agora e vai com ele até a terra de Moriá.
— Pô, deus, outra mudança? Bom, tava demorando…
— Não, não, nada de mudança. Só você e ele. Vocês vão lá pra Moriá e vão subir até uma montanha que eu mostrarei. Em cima da montanha você vai pegar este filho que você tanto ama e queimar como sacrifício a mim.
É muita crueldade, né não? O cara espera até os 100 anos de idade para ter um filho, e quando tem, vem deus e pede pra sacrificar o menino. Isso sem contar que anos antes Abraão já tivera que expulsar de casa seu outro filho, Ismael. É, meu povo, esse é o senso de humor de deus…
Mas Abraão era muito obediente (ou trouxa) e na madrugada seguinte arreou um jumento, rachou lenha, chamou dois servos, pegou Isaque e partiu para Moriá. No terceiro dia de viagem, avistou a montanha e seu velho coração se apertou. Falou para os empregados ficarem por ali, porque ele e o menino iriam à montanha para adorar a deus e logo voltariam. Colocou a lenha no ombro de Isaque, pegou o fogo e uma faca e foram os dois juntos na direção da montanha. Parem para imaginar isso: Isaque andando numa boa, encarando tudo como um passeio, e Abraão consciente de que voltaria sem o filho, alegria de sua velhice. Mas no meio do caminho Isaque, que era inteligente, reparou que havia alguma coisa errada.
— Pai!
— Fala, filho.
— Tô vendo a faca e o fogo, e estou carregando a lenha comigo. Mas cadê o carneiro pra gente sacrificar?
Ah, cambada! Eu no lugar de Abraão responderia: “Isaque, deus quer que eu sacrifique você, mas eu não vou fazer isso. Vamos voltar pra casa, se ele achar ruim, que venha acertas as contas comigo. Já suportei muita coisa desse sujeito, chega, quem ele pensa que é?”. Mas Abraão era obediente, e só respondeu:
— Deus vai dar um jeito, Isaque, e vai providenciar o carneiro pra gente.
E continuaram caminhando. Ao chegarem ao lugar que deus havia indicado, Abraão fez um altar de pedras e arrumou a lenha em cima dele. Depois amarrou Isaque sobre o altar e pegou a faca para matar o menino. Nesse instante, um anjo gritou do céu:
— Abraão!
O velho levou um puta susto.
— Tô aqui.
— Não machuque o menino, não faça nada com ele. Agora sabemos que você é temente a deus. Olha ali praquela caverna, tá vendo a câmera? Você acaba de participar das Pegadinhas de Jeová!
Os repórteres invadiram o cenário nesse momento, fazendo perguntas a Abraão. Deus entrou em cena para anunciar oficialmente o final do programa lendo uma carta que dizia:

Abraão, como você me obedeceu e não me negou Isaque, seu único filho, eu juro pelo meu próprio nome que farei os seus descendentes mais numerosos do que as estrelas do céu e os grãos de areia da praia. Toda a terra será abençoada através dos seus descendentes

Ainda confuso com tudo aquilo, Abraão olhou em volta e viu um carneirinho preso pelos chifres a um ramo de árvore. Pegou o pobre bichinho, que nada tinha a ver com a história, e o ofereceu como sacrifício em lugar de Isaque.
Atordoado pelos holofotes, Abraão esqueceu de fazer o que qualquer um faria: Mandar deus à merda. Mas parece mesmo que essa brincadeira de mau gosto estremeceu as relações entre os dois, porque depois desse capítulo (Gênesis 22), deus some de cena e só vai reaparecer lá na frente, pra falar com Jacó, filho de Isaque. Bom, talvez isso seja por causa das “merecidas” férias…
O capítulo termina dizendo que Abraão voltou para onde estavam seus empregados e foram todos juntos para Berseba, onde Abraão ficou morando. Só isso. A impressão que dá é que ele fez isso para sumir por um tempo, por vergonha de ter saído com intenção de sacrificar o próprio filho. E Isaque deve ter carregado essa mágoa por toda a vida. Pegadinha ou não, acho que Abraão devia ter processado deus por essa.

Ah, Sara… Se vocês pensam que os anos amaciaram essa mulher, estão muito enganados. Estava ela um dia sentada, fazendo a unha e viu Ismael brincando com Isaque. Foi o que bastou pra baixar a paranóia; foi correndo falar com Abraão
— Abraão, vê se dá um fim nessa mulher e no filho dela, porque esse moleque não vai ser herdeiro junto com Isaque porra nenhuma!
Ora, ora, ora, vejam só o que é um coração de pedra! Ismael só tinha nascido por idéia de Sara, estão lembrados? Ah, mulheres…
— Caray, Sara, de novo essa história? O moleque é meu filho, não vou expulsar ninguém, fica na sua, véia, se fecha!
E tudo ficaria por aí mesmo se não fosse essa mania besta de deus de se guiar puramente pela audiência: Ele percebeu que o drama de uma mulher expulsa com o filho despertaria nos expectadores todas aquelas emoções baratas que hoje fazem as pessoas chorarem em frente à TV assistindo ao Arquivo Confidencial do Fausto Silva. E tratou de ir logo falar com Abraão.
— Ô, Abraão, coitada da Sara! Ela tá toda orgulhosa, não é todo dia que você vê uma mulher de 90 anos parindo. Dá esse ponto pra ela, deixa Agar e Ismael irem embora. Além do mais, a promessa que eu te fiz é pra ser cumprida com a descendência de Isaque, mas, como eu já te disse, Ismael também será pai de uma grande nação.
Abraão já devia estar de saco cheio desse negócio de “grande nação” pra lá, “grande nação” pra cá. Porra, como é que ele ia saber se o negócio era verdade mesmo? Por que deus não prometia alguma coisa mais palpável, uma casa na praia, um carro novo, qualquer coisa? Nãaaaao, sempre que o bicho pegava vinha com esse papo de “grande nação”. Mas quem era ele pra discutir? Acatou então a ordem de deus e foi tratar da despedida de Agar e Ismael. Na madrugada seguinte, entregou a Agar um pouco de pão, um odre cheio de água, colocou Ismael no ombro dela e mandou que fosse embora.
Aqui cabem duas observações. Primeira: um homem rico pra cacete, com tantos bens adquiridos ao longo da vida a troco de outros tantos chifres plantados na testa, poderoso, amigo de Abimeleque, vai expulsar o próprio filho junto com sua mãe, e entrega pão e água para eles??? Segunda: Pelo menos um ano antes do nascimento de Isaque, Ismael foi circuncidado, e contava então treze anos de idade. Quando da expulsão, portanto, era no mínimo um adolescente de 14 anos. Imaginem só, então: Abraão faz Agar acordar de madrugada e diz:
— Olha, Agar, você tem sido muito leal e responsável em todos esses anos, e aquela nossa noite juntos foi inesquecível. Mas preciso expulsá-la agora, tudo bem? Nada pessoal, só resolvi isso à noite, do nada, sabe como são essas coisas. Então, toma aqui uns pãezinhos e esse jarro de água, porque estamos no meio do deserto e a viagem vai ser longa para você, deus me livre de te deixar ir embora sem provisões. Tudo bem? Que bom! Então agora eu vou pegar esse marmanjão que já está maior que você e colocá-lo no seu ombro, boa viagem, fica com deus.
Sei não, acho que qualquer outra no lugar dela teria matado Abraão. Mas Agar saiu sem destino, andando pelo deserto de Berseba(*). Quando acabou a água do odre, deixou o menino embaixo de uma árvore e foi sentar-se a uns cem metros de distância, pois não suportaria ver o filho morrer. Ficou lá sentada e Ismael começou a chorar.
Um anjo que ia passando ouviu o choro do moleque.
Já repararam como sempre tem um anjo transeunte nessas histórias? Eita anjaiada desocupada da porra, só flanando pelos desertos da terra. E pensar que hoje em dia quando a gente precisa de um mísero policial não encontra, que dirá um anjo…
Mas o anjo ia passando e ouviu o berreiro
Outra coisa que eu não entendo: com 14 anos o moleque já tava na idade de começar a cuidar da mãe, e não de ficar chorando embaixo de árvore. Não é de hoje que esses filhinhos-de-papai são mimados e chatos pra cacete.
Onde eu estava mesmo? Ah, o anjo passando etc. foi falar com Agar:
— Ô, muié. Que que esse moleque tá chorando tanto? Vai lá e pega ele pela mão, deus ouviu o choro dele e apiedou-se. Deus fará dele uma grande nação.
Talvez por não ter ouvido essa conversa de “grande nação” com tanta freqüência quanto Abraão, Agar se animou com as palavras do anjo e voltou para pegar Ismael. Nesse momento deus fez com que Agar encontrasse um poço, onde ela pôde reabastecer o odre.
Ismael e Agar ficaram morando no deserto de Parã e ele se tornou um grande arqueiro. E Agar arrumou para ele uma esposa egípcia (eis as raízes dos povos árabes: descendentes de semitas com egípcios).
E a todas essas o povo em casa chorando com essa historinha piegas.

* * *

(*)Nota: Bom, vimos que Agar e Ismael peregrinaram por um lugar chamado Berseba. Tempos antes, Abraão tinha reclamado com Abimeleque que uns empregados deste último tinham tomado à força um poço que tinha sido cavado por ele, Abraão. Abimeleque não estava sabendo de nada e ficou indignado, pois os dois eram amigos. Então Abraão separou sete ovelhinhas de seu rebanho e as deu de presente a Abimeleque.
— Pra que que eu vou querer essas ovelhas, Abraão?
— Aceitando esse presente, você estará concordando que fui eu quem cavou este poço.
E os dois resolveram assim a contenda, com Abimeleque aceitando as ovelhas e Abraão recebendo o poço de volta. Ali mesmo Abraão fez um juramento de lealdade a Abimeleque, a seus descendentes e à Filistia, sua terra.
Berseba significa “poço do juramento” ou “Poço dos sete”. Contente com o bom andamento das coisas, Abraão plantou uma árvore por ali e adorou a deus.
Entende-se que o poço e a árvore são os mesmos que desempenhariam papel chave tempos depois na história de Agar e Ismael.