No meu último dia em Monte Santo, Romana me mostra um áudio. “Oi, aqui é Maria, viúva de André, irmão do seu avô”. A Maria diz que gostava muito do meu pai e dos irmãos dele. Fico sabendo que Maria mora em Itapicuru, e decido que vou dar uma passada por lá no caminho para o aeroporto em Salvador. Combino tudo com o filho dela, Josuel, e tudo certo.
Ou quase.
Primeiro, descubro que Itapicuru é mais longe do que eu pensava, já quase perto da família dos meus avós maternos, em Sergipe.
E depois, porque perdi algum tempo emburacado em Monte Santo. Fui me enrolando, e quando vi já era de tarde. Acabou que cheguei a Itapicuru já às sete da noite, com todo mundo me esperando. Quando soube que eu precisava sair no mesmo dia para ir a Salvador, Maria ficou desenxabida: tinha preparado cama e tudo, pensava que eu ia pelo menos passar a noite lá. Alguma falha de comunicação entre ela, Josuel, Romana e eu.
Os valores de Maria parecem estar todos atrelados à religião: ou você é crente, o que é bom, ou não é, o que depende. Mesmo que você seja crente, precisa ver se segue a doutrina. E se é crente e segue a doutrina, tem que ver se não trocou de igreja, como fez meu pai (ela conta de uma censura que fez a ele por isso; eu ignoro). O primeiro casamento dela foi na igreja católica, então ela não considera. Quando meu tio-avô, então viúvo, a conheceu (numa igreja batista da Zona Leste aqui de São Paulo), perguntou se ela era viúva, ela disse que tinha se casado na igreja católica, não tinha mais marido, portanto era solteira.
André era 19 anos mais velho que Maria, e ela o chamava de “senhor”. Ela mostra as fotos do casamento em 1995. André se parecia muito com meu avô. Ela diz que ele era muito quieto, e ela o apelidou de Cacique. No primeiro casamento, André teve 6 filhos, 3 deles mudos.
— Deficientes auditivos, mãe! — corrige Josuel.
Eu digo que tudo bem, que ela não vai mudar agora, aos 80 anos. Ele diz que sempre corrige: eu não me ofendo, mas outros podem se ofender.
FIquei sabendo depois pelo Luís, irmão mais velho do meu pai, que Síria, primeira mulher de André, ficou grávida 22 vezes. Pelo que entendi, as crianças nasciam mortas, ou eram abortadas espontaneamente. Com esse histórico de mortes e deficiências, André não queria mais ter filhos.
— Ele sempre amou os filhos mudos…
— DEFICIENTES AUDITIVOS!
— … mas era muito trabalho, né? Ainda mais naquela época.
Maria, que já tinha filhos do primeiro casamento, não se importou em não ter mais. Pergunto o que aconteceu com o primeiro marido, ela desconversa. Insisto e ela diz que era “raparigueiro”.
— Viveu 93 anos! Quem dera o velho André tivesse vivido tanto quanto aquele troço ruim!
Pelo que entendo, André era caladão. Maria diz que os irmãos todos eram assim, e não sabe se herdaram isso de Ana ou de Salu, meus bisavós. “A família de Salu não se comunica, aí ninguém conhece ninguém”, ela diz. Por isso ninguém do meu lado da família foi ao casamento: ela só soube que havia todo um ramo da família por ali mesmo, na Zona Leste, depois de se casar.
As histórias de Maria são confusas. Não é que ela esteja senil nem nada, parece ser mesmo o jeito que a cabeça dela funciona. Ela conta uma história, pula para outra, depois volta. Estranhamente, em toda história dela aparece um homem lavando o carro. Talvez as pessoas lavem muito o carro em Itapicuru, sei lá. Ela conta que uma vez recebeu a visita de um filho de André, um dos mudos.
— Deficiente auditivo, mãe!
Ela ignora a correção de Josuel. Diz que o enteado chegou à cidade e conseguiu achar a casa dela, o que muito a impressionou. “Chegou ali em cima na casa de um rapaz que estava lavando o carro e ele, mesmo sem entender mudo, trouxe ele direitinho até aqui”.
Ela começa a me mostrar fotos naqueles slides dentro de monóculos. Diz que quer me mostrar o pai dela, os irmãos, os netos. Eu fico olhando e admirando por educação. Não estou interessado naquelas pessoas, honestamente, e o fervor religioso de Maria, que pontua tudo que ela diz, me incomoda. Não tanto pela religião, mas também porque ela joga veneno em muito do que fala dos outros, e nisso vejo o que me afastou da igreja: a hipocrisia dos religiosos.
Assim que possível, peço licença porque tenho um voo para pegar. Ela ainda quer me apresentar à vizinha, e eu vou, fazer o quê? Converso um pouco com a vizinha, depois vou até o carro. Ela me acompanha, ainda falando.
No caminho para Salvador, me pergunto se valeu a pena ir até Itapicuru. Dias depois, em São Paulo, falo dela para os meus tios, e não há muito entusiasmo em relação a ela. Parece ser uma nota de rodapé na família, alguém que nunca se encaixou direito. Ela me contou que os filhos de André nunca aprovaram o casamento, e um deles chegou a chamá-la de Dalila. Entendo que nunca vou saber tudo que essa mulher sofreu juntando o marido raparigueiro, o segundo casamento contra a vontade de tanta gente, as críticas que deviam ser constantes, e provavelmente permanecem até hoje.
Um pensamento, porém, me consola: pelo menos três dos filhos do meu tio-avô André nunca falaram mal dela…
Meu pai tinha o dom muito especial: sempre que viajávamos, não importava pra onde, dava algum problema no carro: furava um pneu, ou dava lá uma pane qualquer. O fato de ele só ter carro velho contribuía para isso também. A gente tirava sarro, ficava em volta cornetando.
Nesses dias eu rodei o sertão da Bahia num carro alugado, zero problemas. Mas claro que meu pai não ia deixar de me visitar. Hoje inventei de ir ver um açude num povoado de Monte Santo chamado Tapera. Coloquei no Google Maps, dava 12 quilômetros. Pertinho, fui.
Saindo da cidade, pega-se um trecho de BR e a maior parte do trajeto é por estradas de terra. São boas estradas, então fui tranquilo. Só que uma hora o GPS mandou entrar numa estradinha mais estreita, irregular. Titubeei, mas tava tão perto, então fui.
Logo de cara, um buraco imenso na lateral da estradinha. Passei com muuuuito cuidado para não cair no buraco e fui adiante. Uns 100 metros depois, vi que a estrada ficava mais irregular ainda, e mais adiante nem tinha mais cara de estrada. Achei melhor voltar. Só que não havia espaço para manobrar, então fui voltando de ré. Tudo certo, tudo tranquilo, eu só precisava ir devagar, prestando atenção, e tomando cuidado pra não cair no-
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Só senti o solavanco e o carro parando. Acelerei mais, só ouvi barulho de areia. Engatei uma primeira, mas pra frente ele não ia também. Eu tinha caído no buraco. Claro que tinha.
Em outros tempos, eu ficaria irritado, xingando a mim mesmo. Depois de velho, passei a aceitar que as coisas são como são. Depois de ficar um tempinho admirando meu autocontrole e estoicismo, decidi procurar ajuda. Por sorte minha, o buraco ficava bem em frente a uma propriedade com uma casa lá no fundo, depois de duas porteiras. A primeira porteira não estava trancada, abri, andei até a outra, bati palmas, gritei o protocolar “ô, de casa!”, e nada. Voltei para o carro, peguei minha garrafa d’água para dar um gole (imaginem o calor do sertão perto do meio-dia), e comecei a pensar no que fazer. Sinal de celular, não tinha (aliás, hoje deu alguma pane na operadora, porque eu só fui ter sinal de celular uns 100 quilômetros adiante). Lembrei que tinha passado por um lugar onde trabalhavam com tratores. Depois, pensei que podia pegar umas pedras e tentar calçar a roda solta do carro. Foi eu pegar a primeira pedra, chegou um rapaz de moto. Era o dono da casa, ou trabalhava na propriedade. Nicácio.
Prontamente o Nicácio começou a me ajudar. Pegamos pedras, ele foi colocando atrás da roda, liguei o carro, engatei a ré… E nada. A roda continuava flutuando sobre o fundo do buraco, e não havia nada que se pudesse fazer.
Nicácio perguntou como eu tinha caído no buraco. Contei a história. Ele falou que a estrada não tinha saída, que o caminho para o açude era a estrada seguinte. E, além do mais, nem precisava dar aquela volta toda: o outro lado do açude ficava bem atrás das casas do povoado, quase na BR. Bom, paciência, já estava emburacado. Falei que tinha passado por um lugar onde alguns homens trabalhavam com tratores, sugeri chamá-los. “Precisa disso não, a gente tira. Vou chamar um amigo ali.”
Nicácio saiu e logo chegou com o amigo, cada um em sua moto. Era o Eduardo. Eduardo era mais engenhoso: deu a ideia de tentar levantar um lado do carro com o macaco (a ferramenta, não eu; bando de racista do caralho). Tentamos, não deu certo: não havia espaço para encaixar o macaco. Voltei a falar dos tratores. “Precisa não”. Nicácio perguntou se o carro tinha algum lugar onde fosse possível prender uma corda. Olhei embaixo. “Só se prender no eixo”, eu disse. Então no eixo seria. Eduardo saiu para buscar o carro. “Volto em uns 10 minutos”. Nicácio entrou na propriedade falando alguma coisa sobre uma raposa. Eu entrei no carro e fiquei aproveitando a brisa do sertão, que remédio?
Em bem menos de 10 minutos, Eduardo voltou com o carro dele, um gol branco com dois adesivos imensos do Lula no vidro traseiro, e umas cordas grossas. Nisso chegou um terceiro, o Ricardo. Eduardo achava que as cordas iam arrebentar. Eu e Nicácio garantimos que não. Ricardo preferiu não opinar. Por via das dúvidas, amarramos duas cordas no eixo traseiro do carro alugado, a outra ponta no engate do carro do Eduardo. Enquanto Eduardo amarrava as cordas, perguntou de onde eu era. Expliquei que era de São Paulo, mas meu pai e minha família toda eram de Monte Santo. Que sempre tinha sonhado em visitar a cidade, mas só agora tinha conseguido.
— E sua família é da cidade mesmo?
— Não, dá área rural. Da Silgueira.
—Da Siligueira? Eu tenho família na Siligueira, talvez nós até é parente!
— Meu avô era o Júlio…
Aí o rosto do Eduardo se iluminou:
— Neto de Júlio da SIligueira??? Rapaz, que satisfação! Teu avô é muito conhecido aqui, todo mundo falava bem dele.
Ali o negócio mudou. Os três estavam me ajudando, muito solícitos, como é o povo simples do Brasil. Mas ao falar o nome do meu avô, eu imediatamente me tornei um deles.
O carro já estava desatolado. Agradeci muito e falei:
— Se eu bem conheço o povo de Monte Santo, vocês não vão aceitar, mas eu tenho que oferecer. Não aceitam alguma coisa aí pelo trabalho?
Nicácio nem me deixou terminar:
— Eu mesmo não quero.
O Eduardo:
— Eu só quero que você seja muito feliz.
O Ricardo preferiu não opinar, mas ele já tinha aparecido no final e nem tinha feito nada.
Nos despedimos com abraços e trocas mútuas de “Deus abençoe”.
Transamos.
Não, mentira.
Voltei para a estrada de terra, mandei todos os açudes da Bahia tomarem no rabo, e segui viagem para Itapicuru. Essa parte eu conto depois.
Quebrar o carro é muito mais fácil sem gente cornetando. Mal aí, pai.
Minha tia Adalgisa me mandou um áudio ontem perguntando se eu tinha conseguido descobrir como o nosso povo chegou à Silgueira (o povo daqui fala “Siligueira”, como chama minha avó de “Siluvana”), o povoado onde ela, meu pai, os outros 7 irmãos, meus avós e bisavós nasceram. A história que ela conhece é a história de muitos lugares do interior do Brasil: “não tinha ninguém, o povo foi chegando, se apossando e ficando lá”. Ela contou que o Luiz, irmão mais velho do meu pai, tem o sonho de saber quem foi primeiro morar lá, quem descobriu o lugar. “Ele se arrepende muito de não ter perguntado a quem sabia, ao papai Mané”. Papai Mané era Manuel, o bisavô do meu pai, meu trisavô. Depois de contar essas coisas, Adalgisa deu uma dica: “Vê se você descobre onde o Godô tá. Ele é irmão da Emília, ex-namorada do seu pai. Ele mora no Monte Santo, procure por ele”.
Então fui caçar o Godô. Perguntei a Romana e bingo: Godô é padrinho da filha dela. Ela me mandou o contato do Modesto, filho dele. Falei com o Modesto, nos encontramos na porta da casa dele, e ficamos, feito Estragon e Vladimir, esperando Godô.
Lá pelas tantas, chega um motoqueiro de tipo raríssimo em Monte Santo: de capacete. Parou a moto, desceu, tirou o capacete, levantou a camisa para pegar um boné, que ele logo pôs na cabeça. Era Godofredo, o Godô, um velho miudinho, de óculos e estrábico — e eu só menciono esse detalhe porque vai ser importante em uma das muitas histórias do Godô; não tinha reparado até ele me dizer, acho que porque ficamos sentados lado a lado na calçada e eu quase só o vi de perfil.
Godô tem 83 anos, mesma idade do Luiz, irmão do meu pai. “Luiz nasceu dia 15 de agosto de 41, eu nasci três meses depois, em 9 de novembro”. Fica logo claro que ele tem uma memória prodigiosa para datas e fatos. Pergunto logo se ele sabe como as pessoas foram parar na Silgueira, onde ele também nasceu. Ele não sabe. Diz que quem sabia já morreu.
Godô conta que conheceu Mané, avô do meu avô. Já centenário, ainda caminhava muito pela Silgueira, sempre apoiado num bastão. Era magrinho e miúdo. Pergunto se ele lembra da aparência dele. “Era… Era meio claro, não era negro”. Era branco? “Também não”. Era como eu? “Isso, mulato”. A mulher do Mané se chamava Mameda, um nome que ouvíamos de vez em quando em casa, e nosa fazia rir. “Sua bisavó chamava ma merda, pai?”. Meu tio José encafifou que o nome tinha origem árabe. Sabe Deus.
Pergunto ao Godô se Mané foi o que viveu até os 100 anos. “Sim, morreu em 1960, com 100 anos, 1 mês e 20 dias”. FIco espantado com a precisão, e ele diz: “Por isso que tem que tomar cuidado com o que fala perto de criança. Isidoro, irmão mais velho de seu avô, comentou isso com alguém no velório do Mané, ‘meu avô viveu 100 anos, 1 mês e 20 dias’, e eu nunca esqueci”. Em 1960, Godô tinha 19 anos, estava longe de ser criança, mas deixei passar. Ele lembra porque lembra mesmo, a memória dele é impressionante.
Quando conta histórias, Godô encena: gesticula, se levanta, faz as vozes. Em trechos mais saborosos, os olhos brilham, a boca sorri de canto. É uma maravilha escutar Godô falando.
* * *
Uma breve história de amor
Claro que eu quero saber da irmã dele, ex do meu pai. Sei que os dois chegaram a ficar noivos.
(Uma vez meu amigo Leandro, que estava de casamento marcado, comigo de padrinho e tudo, desmanchou o noivado. Fiquei brabo com ele. Quando ele foi em casa, fiz questão de contar pro meu pai, pra ver se ele dava bronca no Leandro. “Fez certo”, ele disse. Contou que tinha ficado noivo em Monte Santo, e um dia resolveu terminar com a moça. Seu Júlio, meu avô, foi reclamar com ele. Disse que era um vexame, estava todo mundo esperando o casamento, o que iam dizer. “Então eu perguntei a ele: papai, se eu me casar… você vai dormir com ela?”. Meu avô ficou sem resposta, e nunca mais tocou no assunto.)
Perguntei da Emília e disse que sabia que ela tinha sido namorada do meu pai. Godô deu um sorriso de canto de boca, o olho já brilhando. “E você sabe disso, é?!”. Ernesto, que era primo do meu pai, namorou a Emília, os dois tiveram um filho, o Josué, que nasceu em São Paulo em 1968. “Mas a grande paixão de minha irmã foi o Lindauro”, ele confidencia.
Lembro do meu pai dizendo que um dos motivos para terminar o namoro foi porque ele não queria casar com uma prima. Sempre achei que era prima em primeiro grau, que é coisa comum por aqui. Mas Godô me explicou: Salu, meu bisavô, tinha uma irmã chamada Liadóra (poético demais), que era mãe de Amaro, pai de Godô e Emília. Quer dizer: a ex do meu pai era prima em segundo grau. Sei lá, acho que ele fez foi arrumar uma desculpa qualquer pra dar um pé na bunda da moça, coitada.
(Maria, mãe do Godô, era prima em primeiro grau — ou “prima carnal”, como dizem aqui — da minha avó Silvana. As árvores genealógicas da zona rural de Monte Santo são um cipoal embaraçado)
Emília mora em Osasco. Godô sabe de cor a rua, o número, o bairro. Claro que sabe. Dia desses vou lá visitar a ex de Seu Lindauro.
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O mais bonito em sabedoria
Ontem, conversando com o Leôncio, fiquei sabendo de uma novidade: que meu pai foi professor das crianças da Silgueira. Eu nunca tinha ouvido falar nisso e perguntei ao Godô se era verdade que meu pai ensinava. Ele confirmou. Mas ensinava a quem? “Todos nós, que sabia menos que ele. Lindauro era o mais bonito na história da sabedoria”. E sim, ensinava as crianças. O lugar onde hoje fica uma borracharia na Silgueira era uma escolinha. Os pais da região pagavam o único professor para ensinar os filhos a ler e fazer contas. O professor morreu, ou foi embora, e meu pai, o mais bonito em sabedoria, ficou de substituto. Ele devia ter uns 16 anos.
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Fofoca atrasada
Godô também tem fofocas quentinhas sobre a família. Conta que minha avó Silvana falava assim de um agregado da família: “Que pedaço de homem enganoso…”. Era um sujeito grandão, fortão, mas que não valia nada. Falou dos irmãos do meu avô, fez uma pausa e disse, com o olhinho já brilhando: “E tinha a Tomásia, mas essa era filha particular…”. Pergunto o que é filha particular, ele finge que não quer contar, mas conta.
Uma tal Maria do Jorge foi trabalhar na casa da minha bisavó, Ana. O irmão mais velho do meu avô gostou da moça, coisa e tal, acabou que ela engravidou. “Foi um pãozinho fora do forno”, diz Godô, o olhinho brilhando mais, sorrisinho no rosto. Nasceu a menina, Isidoro era muito jovem, então Tomásia foi criada pelos meus bisavós, Ana e Salustiano, o Salu. Cresceu como filha deles, não sei se depois soube que os pais eram na verdade seus avós.
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Longe do limbo
Godô conta que, da geração dele, foi o único a ficar na cidade. Assim como meu pai e os irmãos dele, todos os irmãos de Godofredo se picaram para São Paulo. Só que ele tinha um emprego: era espichador de pele de bode, e trabalhava para o Laurentino da Silva, um empresário da cidade que ajudou muita gente e tem até estátua em uma praça no centro (vejo agora que ele também é nome de escola na Tapera, outro povoado, e foi prefeito da cidade por dois mandatos na década de 1950, pela UDN). “Maior homem que existiu em Monte Santo”, diz Godô. Emprestava dinheiro para o povo ir a São Paulo (dinheiro que pagavam de volta assim que arrumavam um emprego), dava comida a quem não tinha. Tratava de negócios sempre perto de onde Godô estava agachado (ele diz “acocado”, de cócoras) esticando as peles de bode, então ele escutava tudo. Godô é muito bom ouvinte.
Laurentino nasceu em outubro de 1908 e morreu no dia 9 de abril de 1992. Não tenho como confirmar nada disso, as datas simplesmente vão saindo da boca de Godô.
Godô não precisou ir para São Paulo porque arrumou esse trabalho em 1956. Viajava toda a região (Monte Santo, Euclides da Cunha, Cansanção) para as feiras onde Laurentino comprava e vendia todo tipo de produto. Mas ele também não foi porque não gosta de São Paulo. “Meu limite é duas semanas, não gosto”.
Em uma certa época, ele ficou em dúvida se deveria ir para São Paulo. Afinal, todos tinham ido, será que só ele era errado? Escreveu uma carta a um dos irmãos perguntando se o aconselhava a ir. A resposta do irmão: “Se você quiser vir para ficar como eu, que depois de muito anos ainda não sei onde vou morar, se aqui ou na Bahia, venha”. Foi o que bastou: Godô não queria o limbo, escolheu Monte Santo.
* * *
Dia de pedinte
“Vou te contar uma história que poucas vezes eu contei, porque o povo não acredita”. Já fico de orelha em pé pra escutar a história.
Numa dessas viagens pelas feiras, Godô estava em Cansanção, em frente à agência dos correios. Era 1963, ano de uma seca braba, ano em que meu pai foi para São Paulo. Muita gente passando fome, uma tragédia. Pois lá estava Godô, empregado, e viu vir subindo um velhinho magro. Godô se levanta para demonstrar a reação dele. O velho vindo, ele olhando. “Mas que velho tão magro é esse?”, ele se perguntava na época, e repete a pergunta agora. O velho vinha vindo olhando pra ele, e ele olhando pro velho. Mais de perto, a magreza do velho impressionava mais ainda. O braço era só o osso (“só a cana”, diz o Godô) Quando chegou, Godô disse:
— Ô, meu véinho, que magrice toda é essa?
E o velho:
— Meu filho, me dê uma esmola. Casei com uma mulher nova, deixei ela com 7 filhos em casa, sem nada pra comer. Também não trouxe nada comigo, nem tenho como levar.
— Eu não tenho dinheiro, não. Topa pedir?
— Topo.
A região em frente ao Correio era movimentada. O velho ficou sentado no chão enquanto Godô clamava aos passantes:
— Olha o estado desse véinho! Como está magro! Tá passando fome, tem 7 filhos! Ele não merece uma esmolinha.
Foi se formando uma roda, o povo dando dinheiro. Gente que estava mais longe via a roda e vinha para ver o que era (“pra curiar“, diz o Godô, usando um verbo que eu não conhecia, mas faz todo o sentido: curiar é a atividade do curioso). A rodinha aumentava, mais gente dava dinheiro, até que uma hora o velho se levantou, contou o dinheiro e disse:
— Deus que pague a vocês. Mais do que isso é comércio.
O povo começou a debandar, e o Godô chateado. Ele estava planejando arrumar dinheiro pro velho e a família não passarem fome por 6 meses, e ele dava uma dessa? Godô lembra que o velho comentou que o dinheiro dava para 3 pratos de farinha. Um prato são 4 quilos, então são 12 quilos de farinha. Godô diz que um prato de farinha na época custava 30 mil réis, então eles tinham arrecadado 90 mil réis.
(Fui conferir agora, e a moeda em 1963 era o cruzeiro. Mas eu conheci gente na década de 80 que ainda falava em mil réis, então imaginem em 1963. Tentei usar a calculadora do BC para descobrir quanto valeriam 30 mil cruzeiros de 1963 hoje, mas muda muito: pode ser qualquer valor entre 600 e 2 mil reais. Usando o índice Farinha de Mandioca, e considerando que hoje um quilo custe 5 reais, então o que eles arrecadaram no dia daria 180 reais)
Enquanto o povo dispersava, Godô ficava pensando que ia esperar para perguntar ao velho por que tinha parado de aceitar as esmolas. “Pois foi como se eu tivesse dormido em pé”. Assim que o lugar se esvaziou, ele se virou para falar com o velho e… cadê o velho? “Ficou essa pergunta no ar”, ele diz. O velho sumiu de repente, não tinha como ele ter saído dali tão rápido. “Não sei o que foi, mas sei que não foi coisa ruim. Foi coisa boa, coisa de bença”.
Godô herdou um certo misticismo do pai, que lia as profecias de Nostradamus e às vezes falava do futuro. “Vai chegar um dia em que as pessoas vão comprar farinha na prateleira”, ele dizia, e ninguém dava atenção. Quando apareceram os primeiros supermercados, Godô lembrou do velho Amaro.
* * *
Quando o filho ensina o pai
Amaro gostava de beber. Godô faz rodeios para contar isso. “Meu pai às vezes chegava… meio escorregando. Gostava de umas. Tá entendendo, né?” Num dia em que o pai chegou melado demais, Dona Maria chamou o filho: “Godô, você regule seu pai”. Mas ele não tinha coragem de dizer ao pai o que fazer. Ficou pensando nisso e teve uma ideia. No dia seguinte, falou para a mãe: “Mamãe, posso lhe contar um segredo?”.
Antes do segredo: Cecílio, irmão do meu avô, saiu do padrão da família. Em vez de São Paulo, resolveu migrar para Londrina, no Paraná. Cecílio e o primo Amaro, pai de Godô, escreviam cartas um ao outro.
Voltando.
“Mamãe, posso lhe contar um segredo? Eu não me atrevo a querer controlar papai, não. Mas vou escrever uma carta a ele”. Dona Maria, ao contrário do marido, não sabia ler. E era isso que Godô queria explorar.
Ele escreveu a carta com um apelo ao pai: que ele já estava velho, precisava se cuidar, ter mais juízo, não beber tanto. Colocou o nome do pai no destinatário, e o dele próprio no remetente. Entregou a carta à Dona Maria, para que ela entregasse ao marido.
Quando Amaro chegou da roça, Maria avisou:
— Amaro, chegou uma carta aqui. Veja de quem é.
Ele olhou, fez cara de espanto, a mulher voltou a perguntar de quem era.
— É do Cecílio, lá no Paraná — mentiu ele, desconcertado.
— Pois leia pra mim.
Depois de já ter lido a carta em silêncio umas duas ou três vezes, Amaro foi inventando em voz alta uma carta do primo. Estava claramente envergonhado de receber um sermão fo filho. Mas, depois daquele dia, nunca mais bebeu nem fumou.
— Às vezes o filho ensina ao pai — eu digo ao Godô.
—É isso! — ele concorda, empolgado — Às vezes o filho ensina ao pai!
* * *
Godô investigador: parte 1
— Se eu me metesse a ser investigador, ia ser muito bom — diz o Godô. — Eu presto muita atenção, escuto tudo, vejo tudo. Vou lhe contar uma história.
Ele conta que trabalhava com um amigo chamado Celé. Quando iam para Cansanção, o caminhão parava em Jenipapo e Celé descia para tomar uma cachaça. Uma vez lá em Cansanção, Celé comprou um peixe, botou sobre outras coisas que levaria num saco e deu um nó. O caminhão voltou para Monte Santo com umas vinte pessoas na carroceria. Quando parou e Celé foi tomar sua cachaça em Jenipapo, alguém desatou o nó e furtou o peixe.
Celé ficou injuriado no caminho de volta. Então Godô teve uma ideia:
— Compadre Celé, não ligue não. Eu vi quem tirou seu peixe. Ele tá é brincando com você. Se ele não devolver até a ponte, não se preocupe, porque eu vi quem foi.
A viagem seguiu em silêncio por um tempo. Dali a pouco um gritou:
— Celé, olha aqui seu peixe! Era brincadeira, rapaz!
E ficou tudo bem.
* * *
Godô investigador: parte 2
Eu já precisava ir embora, tinha marcado de passar na casa da Romana para pegar as encomendas para São Paulo — farofa de galinha, marmelada, licuri, doce de leite. Fui me despedindo do Godô e ele:
— Você tá com muita pressa? Dá tempo de contar mais uma?
Claro que dava.
Nessas viagens às feiras da região ia às vezes a esmoler Anastácia. “Toda esfarrapada, tadinha, cheirando a mijo, sempre carregando um saquinho onde guardava o dinheiro da esmola”. Na volta para Monte Santo uma vez, no caminhão, Anastácia percebeu que lhe tinham roubado o saquinho. Começou a chorar e lamentar a esmola perdida.
— Eu sou estrábico, né? — diz o Godô, e só agora reparo nos olhos que são como irmãos que não se dão, cara um para um lado. — Então levantei, fui até a frente do caminhão, me virei, levantei a blusa pra mostrar a faca e falei: “Devolve o dinheiro da Anastácia, senão te dou uma facada!”. Ninguém sabia para quem eu tava olhando, podia ser qualquer um. Aí claro que o culpado se entregou. “Tá aqui, Anastácia, era brincadeira!”.
E ficou tudo bem.
* * *
Me despeço de Godô, mas ele quer me levar para ver a casa. Um menino de cadeira de rodas assiste TV parece ter algum tipo de paralisia cerebral. Uma moça vem lá de dentro e Godô começa a explicar muito lentamente quem eu sou. Depois esclarece: “ela é muda”. Eu pego o caderno onde estava anotando as histórias todas e escrevo: “Emília foi noiva do meu pai”. Ela lê e leva a mão à boca, depois ri. Faz sinal de quem alguém dormindo na casa, então saímos.
Na calçada, Godô se despede de novo. Diz que foi uma satisfação, uma das grandes alegrias da vida dele me encontrar.
— Não é sempre que eu acho que tenha paciência pra me escutar.
Pois eu ficaria escutando por muito tempo ainda. Obrigado, Godô. Valeu a pena te esperar.
“Uma vez eu passei um mês na casa de farinha”, dizia meu pai, e não explicava nada depois. Uma das várias formas que Seu Lindauro encontrava de ser irritante era deixar a conversa entrar em loop.
— O que é casa de farinha?
— É onde faz a farinha.
— E por que você ficou um mês na casa de farinha?
— Pra fazer farinha.
— …
— Ué. É cada uma…
Hoje eu entendi.
Fui a uma casa de farinha no Salgado, vilarejo próximo da Silgueira, onde meu pai cresceu. Os dois vilarejos protagonizam há décadas um clássico do futebol local. Bom, talvez não seja um clássico, porque o Salgado sempre ganha, mas sei lá de futebol.
Fui lá na casa de farinha. Logo na porta, muitas mulheres, umas vinte, sentadas no alpendre descascando o que parece ser um número infinito de mandiocas. Braços e roupas cobertos de mandioca, as que usam óculos têm os óculos cheios de resquício. Eu tinha chegado procurando o Leôncio, mas ele não estava. Fui recebido pelo afilhado dele, Isaías, um rapaz com camisa da Argentina (do Messi, claro). Ele foi me explicando como as coisas funcionavam, mas não queria aparecer em vídeo. “Quem faz vídeo é meu padrinho, ele que é o chefe”.
A casa de farinha é uma linha de produção com processos e papéis bem definidos. O caminhão (ou caminhões, quando a safra é boa) descarrega as mandiocas que as mulheres descascam. Elas são precisas e hábeis com as facas afiadas: com elas, decepam de um golpe só a ponta da mandioca e depois vão descascando (ou “raspando”, como elas dizem). Os homens pegam as caixas de plástico ou balaios de palha cheios de mandiocas descascadas e levam para dentro. Lá, os lotes de mandiocas são despejados numa máquina que ceva, ou tritura, a mandioca. Triturada, ela é uma massa úmida que contém mandioca, água e fécula, que é o que se usa para fazer tapioca. Outro grupo de mulheres mistura água nessa massa e espreme em panos. A água que sai dessa operação contém a tapioca, só precisa deixar assentar. Depois de assentada, ela é lavada para deixar branquinha, e levada para uma chapa de ferro quente em outro espaço, aquecida sobre um forno a lenha, onde elas fazem o beiju (que é o que nós em São Paulo chamamos de tapioca). O beiju que sai fresquinho e quente da casa de farinha é delicioso puro mesmo. Elas fazem beijus grandes, que são para consumo e venda, e uns pequenos, de 100 gramas, que são vendidos para a merenda das escolas.
Depois de extraída a tapioca, a massa é levada para uma prensa, onde dois ou três homens empurram uma alavanca que move o parafuso que aperta as chapas que prensam a mandioca, extraindo dela quase todo o líquido. A massa, já quase seca, é levada de volta ao cevador, que é movido para outro cocho. A mandioca que sai ali é mais fina e seca, e já lembra a farinha. Mas ainda falta um processo: o forno. Na verdade é um grande tacho metálico, também aquecido por forno a lenha, com um conjunto de pás que giram a farinha, que assim vai ficando seca e torrada.
Quando está no ponto, a farinha é tirada do forno e levada para uma peneira automática. O que sai já é farinha pronta para o consumo. O que sobra na peneira é levado de volta ao cevador e ao forno.
Nada se perde: as mulheres levam para casa as cascas que tiraram, que é usada como alimento para os animais (elas também recebem cada uma um balde de tapioca). Leôncio aproveita até as folhas e caules, que ele tritura e deixa fermentando em um tonel. Quando a seca é braba e a ração acaba, é essa ração de caules e folhas que alimenta os bichos de criação.
Entendi por que meu pai passou um mês inteiro na casa de farinha. A mandioca, Leôncio me explica, é como defunto: depois de um dia, no máximo dois, não presta mais. Agora imagine esse processo todo numa época sem energia elétrica. A ceva era manual, dois homens precisavam ficar mexendo a farinha no forno com rodos, mulheres peneiravam a farinha torrada. Famílias passavam semanas, meses até, fazendo suas farinhadas para não perder a safra.
A farinhada, que é esse processo todo, é uma atividade comunitária. As famílias vão às casas de farinha umas das outras para ajudar. Meu avô, diz o Leôncio, era dos que mais trabalhavam nisso. Tinha terras boas que davam muita mandioca, era trabalhador, esperto, e muito querido na região.
Digo às mulheres que só elas trabalham na farinhada. Lá dentro, quase todo o trabalho dos homens é feito por máquinas, mas a raspagem e a tapioca ainda são feitas manualmente. Elas riem, concordam. Leôncio e os outros ficam meio contrariados. Já existe uma máquina que faz a tapioca, Leôncio diz (e me mostra depois), mas as mulheres não querem. Talvez o negócio ali não seja produzir farinha, a farinha é só um acaso. O que conta é o senso de comunidade. Isaías definiu bem: “isso aqui é minha terapia”
“Você precisa ir ver o Leôncio”, disse meu tio José, e depois minha tia Zenaide. Leôncio é primo do meu pai (o pai dele era irmão da minha avó), e nos desencontramos muitas vezes nos últimos dias. Hoje eu estava na casa de farinha (depois conto da casa de farinha), soube que ele estava em casa e, para evitar novo desencontro, fui até lá. E aí entendi por que queriam tanto que eu conhecesse o cara.
Leôncio é um líder comunitário. Bem na porta da casa dele tem um adesivo de uma candidata a vereadora pelo PT. Ele fundou uma cooperativa de agricultores familiares, uma outra associação, mas o grande orgulho dele é a escola agrícola.
Leôncio me contou que a escola veio de uma ideia que começou na França. Assim como aqui, as crianças francesas da área rural iam estudar para aprender coisas da cidade. Assim que o moleque tinha idade para isso, se empirulitava pra cidade. Chegou uma hora que o governo francês percebeu que isso ia dar merda: se a área rural se esvaziasse, o que o povo da cidade ia comer? E o povo que ficasse na área rural, ia viver do quê? Aí começaram os projetos de escolas agrícolas. (Tudo isso segundo o Leôncio, não pretendo verificar a informação).
Aqui acontecia igualzinho. Na família do meu pai, os 9 irmãos se mandaram para São Paulo assim que possível. “Não só eles!”, diz o Leôncio. Ele nasceu em 1963, mesmo ano em que meu pai foi embora. Em 1983, aos 20 anos, ele também foi. Um dia, vendo o Jornal Nacional, viu que ia passar uma notícia sobre Monte Santo. Ninguém falava de Monte Santo, nem telefone havia na cidade. Ele ficou empolgado para escutar notícias de sua terra no principal telejornal do país. Só que as notícias não eram boas: segundo um levantamento daquela época, Monte Santo era o município onde mais morriam crianças antes de completar 1 ano de idade.
A notícia comoveu Leôncio, e não só ele: organizações estrangeiras, nacionais, a igreja católica, todo mundo se descambou pra Monte Santo pra tentar resolver aquela tragédia. Não sei direito o que aconteceu, mas a taxa de mortalidade infantil melhorou muito. Faltava o problema da evasão dos jovens. “Aquilo que aconteceu com seu pai nos anos 60, continuou nos anos 70, 80, 90…”
Em 1990, Leôncio voltou a Monte Santo. Tinha aqui a casa do pai dele, construiu a própria casa, tudo lá no povoado Salgado, zona rural. Depois de um tempo, conheceu um paulistano filho de franceses que conhecia o que tinham feito na França e queria fazer o mesmo no sertão baiano (“ser tão baiano” é algo muito mal visto em São Paulo). Em 1998, Leôncio foi um dos fundadores da Escola Agrícola. Perguntei se era ali no povoado, mas é mais longe ainda. A Silgueira, onde meu pai cresceu, fica a 6 quilômetros da cidade. O Salgado, onde mora Leôncio, fica a 8. A escola fica a 20 quilômetros da cidade.
A escola agrícola oferece ensino fundamental e depois o médio, que é escola técnica. No primeiro ano do ensino médio, os alunos vão fazer estágio em seus respectivos povoados, conhecer a economia do lugar. No segundo e no terceiro, estagiam em outros povoados. Com isso, têm uma visão mais ampla
(Lembro do meu pai dizendo que tinha vontade de fazer uma faculdade para ter uma visão mais ampla do mundo. Quando falava “ampla”, ele colocava os dedos indicador e médio de cada mão nas têmporas e depois abria os braços num semicírculo. “Aaaaampla”, ele dizia, enquanto os braços se afastavam.)
uma visão mais ampla da economia da zona rural de Monte Santo. Porque cada povoado tem sua economia própria: há lugares onde se planta mandioca, em outros se cria gado, em outros o negócio é sisal, e por aí vai.
A escola foi dando resultados, formando alunos e, quatro anos depois, Lula foi eleito presidente. Ou, como diz o Leôncio: “Lula ganhou na política”. O Luz Para Todos foi uma revolução na zona rural de Monte Santo, que entrara no século 21 sem energia elétrica. A água encanada ainda está chegando
(no Salgado, as casas já têm aquele cavalete pronto, só esperando o relógio da companhai de água; na Silgueira, ainda não há previsão. A Romana me conta que os homens diziam que se vestiriam de mulher no dia em que a luz chegasse à Silgueira; pois a luz chegou e ninguém se travestiu, nem sempre o sertanejo tem palavra)
Chegou a energia elétrica, veio o Bolsa Família, que exige como contrapartida que as crianças estejam na escola. A vida foi melhorando. Hoje, diz Leôncio, na casa dele tem tudo que tem na cidade: energia elétrica, TV, internet com Wi-Fi. Os jovens hoje saem da cidade para ir cursar a universidade em Euclides da Cunha, Feira de Santana ou Salvador, mas voltam. Leôncio, um agricultor do sertão da Bahia, tem duas filhas. Uma está na faculdade em Euclides da Cunha. A outra foi para Curitiba, formou-se em Direito, já saiu da faculdade empregada, fez mestrado e está fazendo doutorado.
Ontem fui a Juazeiro e vi um grande shopping center, mas também pessoas morando em casas de pallet na beira da estrada. Em Monte Santo não se vê nem a miséria nem a riqueza ostensiva. Talvez seja essa a tal distribuição de renda.
Domingo, depois de muitos anos, fui a um culto numa igreja batista. Tá igual, mas tá diferente.
Hesitei mas fui. Era a Primeira Igreja Batista de Monte Santo, onde meus avós congregavam. Estou falando de uma época antes da transição religiosa que hoje acontece no Brasil, da ascensão evangélica. Até hoje, me parece que essa transição ainda não é tão evidente em Monte Santo. Quando falei pro dono do hotel que eu era neto do Júlio, a pergunta dele foi: “um que era crente?”. Quer dizer: crente ainda é ponto de referência nesta cidade erguida ao redor da fé católica.
Pois fui. Cheguei lá, fiquei do lado de fora, tirei foto da fachada (ficou uma boa bosta). Estava de bermuda e chinelo, e não se entra assim no culto, né? Pelo menos foi assim que eu aprendi, e essas coisas da infância a gente não larga fácil, não. Além do mais, o culto já havia começado e o portão estava fechado. Mas aí vi uma família chegando. Abriram o portão, entraram. Aí fui.
Na porta da igreja, uma moça recebia quem chegava. Disse “seja bem-vindo!”. Eu apontei para minhas pernas e pés, murmurei “tô de chinelo…” e ela fez um gesto de deixa disso, entre. Entrei e sentei no banco que ela me apontou. Era o último banco. Achei que fosse para esconder o gordo de bermuda que chegou atrasado, mas não. É o lugar dos visitantes.
Nos meus tempos de igreja, o visitante era recebido com música especial (Visitante, seja bem-vindo / sua presença é um prazer / com Jesus estamos dizendo / a nossa igreja ama você), ia todo mundo cumprimentar a pessoa. Era um gesto bonito e simples de hospitalidade, mas imagino que podia ser um tanto constrangedor para o desavisado. Então hoje não tem nada disso. Nos meus últimos dias de igreja já não tinha.
Muita coisa mudou. Quando cheguei, quem falava no púlpito era uma moça de óculos e saia jeans que parecia coisa de Assembleia de Deus. O pentecostalismo meio que se infiltrou entre os batistas, e essas trocas culturais acabam acontecendo. Vi que as pessoas moviam o corpo durante a música, algo impensável para um batista até os anos 90. A pregação do pastor, um pouco depois, também teve um sabor meio pentecostal, mas já chego lá.
A moça de óculos (que depois, num testemunho, revelou ser veterinária e ter duas especializações em saúde pública; o testemunho era pra contar que finalmente tinha sido aprovada numa especialização na UFBA. Senti uma pontinha de orgulho na irmã, e acho que ela tá certa).
Mas eu ia dizendo: a moça de óculos conduziu uma espécie de sermão breve sobre as bem-aventuranças, depois de fazer uma leitura bíblica.
Quando eu ia à igreja, antes da ascensão evangélica, era fácil identificar o crente na rua. Pessoal da Congregação Cristã no Brasil e da Assembleia de Deus era mais fácil: as mulheres de saias e cabelos longos, os homens sempre de ternos. Nós, batistas, não tínhamos dress code nem regras para os cabelos, maquiagem, essas coisas. Mas todo crente, de qualquer denominação, levava a bíblia embaixo do braço. Às vezes, envergonhado pela possibilidade de encontrar um conhecido de fora da igreja, eu ia sem bíblia. Uma bobagem, todo mundo sabia que eu era crente. Mas essa vergonha aí, eu percebia, era comum. O crente era o diferente, que abria mão de um domingo de sol para ir à igreja de uma religião que ninguém entendia direito o que era. Quando alguém chegava à igreja sem bíblia, o pastor comentava: “Tá de agente secreto hoje, irmão?”. Não tinha censura na voz nem nada, acho que ele entendia o peso de ser crente naquela época na periferia de São Paulo. Na hora de contratar um pedreiro, uma faxineira, qualquer prestador de serviços, ser crente entrava na carta de recomendações. Crente, naquela época, era visto como honesto, correto, pontual. O principal: não bebia. Fora das relações comerciais, era visto só como esquisito mesmo. Eu já era esquisito o bastante de nascença, não precisava acrescentar a isso a bíblia, o símbolo que entregava minha religião de esquisitões. Então eu tinha vergonha.
Bom, hoje o cara só leva a bíblia pro culto se quiser, porque todas as passagens são projetadas num telão, assim como as letras dos hinos cantados. O culto ganha um ar de karaokê.
A moça de óculos, veterinária com muitas especializações, tocou o culto quase todo. Era ela quem chamava os grupos dizendo que teriam “oportunidade”. “O grupo de louvor vai ter agora uma oportunidade”, “a oportunidade agora é do grupo de mulheres”. O grupo de louvor era composto de bateria, baixo, guitarra ou violão e teclado. O bumbo da bateria estava muito alto, o baixo nem se ouvia. O tecladista fazia uns improvisos bem na hora em que o guitarrista tentava o solo. Todos tocavam muito bem, mas aparentemente ensaiaram pouco juntos. A cantora ia bem nos graves e médios, mas talvez não precisasse tentar alcançar certos agudos. Quanto às músicas, não as conhecia. Meu conhecimento dos louvores (que na minha época se chamavam “corinhos”, que eram as músicas fora do hinário oficial batista, o Cantor Cristão) ficou mesmo nos anos 90. O coral de mulheres cantou um hit do Cantor Cristão, “Alvo Mais que a Neve” (que minha irmã e minha mãe cantavam “ovo, clara em neve”). Todos ouviam e cantavam baixinho a letra bem conhecida. Só um negão na minha frente fazia questão de cantar alto, com fervor. Achei engraçado demais aquele preto retinto de olhos fechados cantando: “Sim, neste sangue lavado, mais alvo que a neve serei”. Será nada, meu irmão. Será nada.
Depois de toda essa parte que eu bem conhecia, eu já pensando que a igreja batista tinha se modernizado e que a veterinária fosse a pastora, ela passou a palavra para o pastor. E aí veio a parte que eu não conhecia.
No meu tempo de igreja, o pastor começava com uma leitura bíblica e depois fazia um sermão que destrinchava aquela leitura. Como éramos batistas, era um negócio bem racional, o cabra só faltava fazer análise sintática de cada versículo. Como isso mudou! O pastor começou pedindo que a igreja erguesse os braços na direção dos visitantes (eu e mais três) e entoasse a bênção apostólica. Foi tranquilo. Depois, leu uma passagem da carta de Paulo aos Colossenses, devidamente projetada no telão:
“Suportem uns aos outros e perdoem as queixas que tiverem uns contra os outros. Perdoem como o Senhor os perdoou. Sobre todas essas coisas, porém, vistam‑se do amor, que é o elo perfeito. A paz de Cristo deve ser o juiz no coração de vocês, visto que foram chamados para viver em paz, como membros de um só corpo — e sejam agradecidos.”
(Eu gosto muito da escolha da palavra “suportar” nessa passagem. Às vezes amar o próximo é só isso mesmo: suportar o feladaputa.)
Só que depois, em vez do sermão, o pastor começou um fluxo de consciência, metade oração, metade exortação. Usava técnicas de leitura fria. Começou do mais genérico possível: “Você que está com dor de cabeça, você que veio hoje com dor na coluna, no joelho, Deus sabe do seu sofrimento e vai te curar”. É claro que, entre as 40 ou 50 pessoas ali, alguém se identificou. Ele continuou, o discurso ia para todo o lado. Às vezes o pastor se inflamava, se emocionava, dava pulinhos como um pentecostal. Mais adiante, a pesca começou a ser mais dirigida: “Você que tem dúvidas, que veio aqui em busca de respostas… Você que talvez já tenha louvado a Deus, já tenha participado de uma igreja e hoje está distante…”. Se eu não soubesse que existe leitura fria, talvez achasse que era comigo. Não mordi a isca, só achei interessante.
O fio da prosa terminou do jeito que começou: do nada. E aí veio a hora da Santa Ceia. Os membros da igreja foram até lá pegar seu pedacinho de pão e sua tacinha de suco de uva (é uma tacinha mesmo, pouco maior que um dedal; isso não mudou), que são o corpo e o sangue de Cristo APENAS simbolicamente: não existe transubstanciação no protestantismo.
E aí bibibi, bobobó, acabou o culto. No meio disso tudo, a moça simpática da porta (que usava uma calça bem apertada, muito interessante) nos ofereceu água; a água gelada foi o mais próximo que cheguei do êxtase espiritual.
Na saída, o pastor me cumprimentou, ficou surpreso de saber que eu era neto de Júlio e Silvana. Contou que fez muitos cultos lá na casa deles na Silgueira, e que eram gente muito boa. Mas disso eu já sabia.
A vida toda eu achei que meu pai não me entendia. Nunca o culpei por isso: eu era esquisito mesmo. Gostava de ler, era introspectivo, tímido, sensível, delicado. Não levava jeito nenhum para esportes nem gostava das brincadeiras brutas dos meninos. Preferia a companhia das meninas à dos meninos, mas do que eu gostava mesmo era de ficar sozinho. Quer dizer: nada do que uma família da década de 1970 esperava de um primeiro filho homem. Depois veio minha irmã, e aí meu irmão, que em tudo correspondia ao arquétipo do moleque. Finalmente, eu achava, meu pai tinha o filho que tanto queria. Eu podia continuar sendo o filhinho da mamãe.
Foi preciso eu vir a Monte Santo e escutar uma história da infância do meu pai para tudo isso virar de cabeça pra baixo. A Romana, prima do meu pai, me contou segundo contado a ela por Dona Silvana, minha avó. Diz que Dona Silvana saía de casa deixando os 9 filhos, e os proibia de sair enquanto ela estivesse fora. Conhecendo as crias, porém, se escondia em algum ponto da estrada e ficava de olho. Logo vinham as pestes. Ela gritava, “NÃO FALEI QUE NÃO ERA PRA SAIR” e voltava para bater em todos. Ou melhor: em quase todos. Um dos filhos, o terceiro, era obediente. Ela tinha proibido todo mundo de sair, então ele não saía. E dizia “eu não fui, mamãe, porque sou obediente”.
Esse, claro, era meu pai. O filhinho da mamãe original.
Hoje, voltando de Juazeiro para Monte Santo, vim pensando nisso. Lembrei de uma vez em que, depois de uma longa caminhada, eu reclamei de cansaço. Meu pai riu e falou: “Tá sem forças? Chute aquele limão ali”. Eu fui chutar o limão caído na rua e fiz palhaçada, fingi que não conseguia. E ele: “Eita, nem parece meu filho! Parece filho do Lúcio!”. Lúcio é o segundo filho de Dona Silvana. Quietão, o último da família a casar, gostava mais de ler do que de conversar com os outros. Sempre gostei muito do Lúcio, mas meu pai me dizer aquilo doeu de um jeito esquisito. Eu sabia que era só brincadeira, coisa à toa. Mas doeu, que que eu vou fazer? Sou sensível.
Mas na estrada, voltando de Juazeiro, percebi: não é que meu pai não me conhecesse, não me entendesse. Conhecia e entendia até demais, e sabia como eu ia sofrer na vida se continuasse sendo tão delicado, quieto, sensível, todas essas coisas pouco masculinas. Ele não queria me excluir: queria me proteger.
Isso estava na cara desde sempre. Meu pai se comovia quando via o arco-íris depois da chuva. Gostava da beleza das plantas e dos passarinhos, dos cachorros e dos bebês. Era delicado, ele também, e nem a roça nem a ferocidade de São Paulo conseguiram calejar aquela alma. Mas a que custo? Nunca vou saber, só sei que ele não queria que eu sofresse.
Meu pai veio a Monte Santo em agosto de 2009. Romana me contou que ele foi ver o milharal na roça do Leôncio, primo dele, e ficou encantado com o tamanho dos pés de milho, a quantidade de espigas. “Leôncio, como você conseguiu fazer isso?”, ele se admirava. Depois que todos voltaram pra casa, ele ainda ficou um tempão lá sozinho, quieto, só admirando o milho. Depois que voltaram à casa da Romana, ele ficou muito tempo com o olhar longe. No que ele pensava? No milho? Na infância? Em mim? Sei lá. Só sei que uma hora ele se levantou, suspirou e disse: “É… Infelizmente tenho que ir”. A Romana fica comovida quando lembra: “Parecia que ele estava se despedindo”.
Ele morreu 14 meses depois. 14 anos depois, ainda estou aqui tentando entender meu pai. E agora penso que talvez não haja nada para entender. Que talvez eu só precise sentir por ele o amor que ele teve por mim e eu não soube ver, porque estava muito preocupado em entender as coisas.
Hoje aprendi uma frase sábia de minha avó Silvana. Quando alguém estava passando por problemas com alguém da família, ela dizia: “Ligue não. Toda família tem um cutuco”, querendo dizer que toda família tem alguém que dá trabalho, ou que é do contra, ou que é chato, ou tudo isso junto.
Hoje fiz a peregrinação pelos familiares da minha avó. Boa parte dos filhos das irmãs dela mora num povoado chamado Lagoa do Saco. Romana me levou até lá, fui recebido do jeito de sempre (“mas é o vô dele todinho!”). Levei um caderno e fiquei feito um doido anotando o nome de cada pessoa, e em que galho da árvore genealógica se aboletava. Uma das primas do meu pai mostrou uma foto da minha avó com as irmãs e o único irmão (o outro já devia ter morrido; originalmente eram 6 irmãs e 2 irmãos). Pelo que entendi, era um povo muito unido: viviam visitando e ajudando uns aos outros. Minha avó, descobri, era chamada de “Tia Menininha”. Por quê? Sabe Deus.
Belarmino, que é casado com uma das sobrinhas da minha avó, contou que meus avós davam festas lá na Silgueira e recebiam todos muito bem. “Era gente muito boa, respeitosa, decente”. O Belarmino ia com a namorada, porque lá era bom para namorar. “Tinha um banco grande lá, a gente ficava lá horas…”. Perguntaram quem era essa namorada. “Essa princesa aqui”, disse ele, apontando para a esposa, Francisca, que fez uma cirurgia no joelho, está usando um andador e tem um acesso venoso no braço.
Lá pelas tantas, chegou o Valdeci. Levei um susto: Valdeci é a cara do meu pai, fala balançando a cabeça como ele fazia, faz gestos largos. Quando vai contar uma história divertida, começa a rir antes da parte engraçada. Igualzinho. Chamei ele de Lindauro Genérico.
Meu caderno está cheio de anotações. Como já tinha acontecido em Estância em 2007, terra da minha avó materna, vejo minha família aumentar de repente. Isso é um tesouro muito grande. Se tem alguém lendo isto aqui, recomendo que você visite a terra dos seus antepassados. Contei para a Edite, prima do meu pai, que estava me sentindo muito bem aqui em Monte Santo, como se estivesse em casa. “É o sangue”, ela disse. “É muito forte.”
Voltei à cidade feliz, pensando na família incrível que tenho. Meu pai, que já foi, minha mãe, meus irmãos… Nenhum deles é um cutuco! Que sorte, a minha!
Mas aí pensei um pouco mais e acho que preciso atualizar a sabedoria de Dona Silvana: “Toda família tem um cutuco. Se você acha que a sua família não tem, é provável que o cutuco seja você”.
Hoje eu comecei o dia católico e terminei batista. Mas antes de contar essa experiência mística complexa, preciso falar do meu avô.
Meu avô, Júlio, era um cabra bruto do sertão baiano. Nascido e criado no povoado Silgueira, a 6 quilômetros do centro de Monte Santo, tinha a pele que chamam de “curtida pelo sol”. Não sabemos muito sobre os antepassados dele. Dizem que há negros que foram escravizados. Dizem que há indígenas. Meu teste de DNA confirma a presença dessa gente toda no meu sangue; mas é impossível saber quem foram os indivíduos.
Quando meu avô ia a São Paulo, nos aterrorizava com a brincadeira do caranguejo. “O caranguejo vai te pegar!”, ele dizia, com os dedos indicador e médio dobrados, fazendo movimento de pinça. E ai do neto que achasse que era só uma brincadeira inofensiva: quando o caranguejo pegava, beliscava pra valer. Seu Júlio não era dado a delicadezas.
Eu disse no primeiro post da série que tinha comprado uma caneta verde porque me lembrava meu avô, mas achava que podia ser uma memória inventada. Pois hoje Romana me confirmou: Seu Júlio só usava caneta verde. As canetas estouravam no bolso da camisa, que ficavam manchadas de verde para sempre. Ela, Romana, deu a ele uma Bic 4 Cores. Adiantou nada: ele logo gastou a tinta verde, as outras três seguiram intactas.
A memória da gente é uma coisa doida, olha o tipo de coisa que resolve lembrar.
Sempre que chego a algum lugar aqui em Monte Santo, as pessoas (primos do meu pai, normalmente) exclamam variações de “mas é a cara do vô!”. Quando me despeço, a conversa também é a mesma: “quando vier de novo, não gaste com hotel, fique aqui, o que não falta é lugar”.
Meu avô era crente, numa cidade qeu foi erguida e funciona em função do catolicismo. Achava as romarias ao alto da Serra da Santa Cruz uma “ignorância do povo”. Pois hoje, lá fui eu subir a serra.
A Serra da Santa Cruz se chamava Serra do Piquaraçá, até que um frei italiano chegou na região no século 18 (veio catequizar os índios, claro), achou o monte parecido com o Calvário e decidiu erguer estações da Paixão de Cristo e uma capela. Decidir é fácil, mas quem ergueu mesmo foram os escravos. Dizem que as muradas da escadaria que vai até a primeira capela, de Nossa Senhora das Dores, foram rebocadas por Antônio Conselheiro. É muito muro, não foi à toa que o bicho revoltou-se.
Comecei a subir a serra às 8h15 da manhã. Ao longo do caminho, há 25 capelas. Eu achava que fossem 12, e ainda bem que achava: se soubesse que eram 25, talvez tivesse desistido no meio. A subida é difícil, e a única companhia constante (para quem não tem fé, pelo menos) são os calangos tricolores. O começo é um calçamento de pedras irregulares, com degraus a certos intervalos.
No meio dessa subida, eu decidi que ia rezar quando chegasse lá em cima.
Numa segunda parte, o caminho tem só as formações rochosas da montanha mesmo, de quartzito liso. Esse trecho é mais plano e fácil de subir. Tem até uma descida no meio, de pedra e areia que faz fuish-fuish a cada passo. Já perto da capela principal, voltam os degraus, a subida íngreme, a falta de ar.
Cheguei às 10 em ponto, 1h45min de subida. A capela do século 18 é simples, com teto de ripas de madeira em arco, e grandes imagens de Nossa Senhora e São João Evangelista. Na lateral, a sala de ex-votos, onde as pessoas deixam representações das graças alcançadas, geralmente esculpidas em madeira: casas, motos, pernas, cabeças, seios. Muitas muletas de quem não precisa mais delas e atribui isso a um milagre.
Não rezei. Até tentei, mas não me pareceu correto. Acho que a fé começa com a verdade, e eu estaria mentindo se rezasse. Não senti nenhuma presença divina, nenhuma revelação espiritual. Então, em vez de rezar, fiquei pensando em tudo que me trouxe até aqui. No meu pai, na minha mãe, na minha mulher que me entende e me apoia em tudo, nos irmãos, nos sobrinhos. Foi um sentimento de gratidão muito grande. No livro de visitas da capela, pedem o nome, cidade de origem e o que foi pedir. Eu ia deixar em branco, mas vi que muitas pessoas antes de mim tinham preenchido esse campo com a palavra “gratidão”. Fiz o mesmo, resistindo à tentação de incluir uma hashtag.
O resto do dia foi visitando parentes, numa história que conto depois. À noite, lembrei que era domingo e pensei em ir ao culto na Primeira Igreja Batista de Monte Santo, onde Seu Júlio congregava. Achei a igreja, tinha uma moça cantando no púlpito. Culto já começado, eu de bermuda e chinelo, decidi voltar para o hotel. Mas parei o carro na praça e continuava aquela vontade de ir à igreja. Achei que dessa vez pudesse ser um chamado divino mesmo, uma onda espiritual querendo me levar aos braços de Deus. Então dei meia-volta, fui à igreja e…
Nada, claro. Apenas um culto batista, como muitos que assisti na minha infância e adolescência. Alguns hinos familiares, o estilo da pregação também. Na saída, o pastor me cumprimentou e eu disse que meu avô tinha sido membro da igreja. Quando falei o nome dele, o rosto do pastor Rosaldo se iluminou: “Júlio! E a esposa dele, Silvana! Gostava muito dele, um homem especial. Fiz muitos cultos na casa dele lá na Silgueira”.
Talvez seja essa minha experiência espiritual. As coisas às vezes são muito simples.
Dona Silvana e Seu Júlio, meus avós paternos, iam a São Paulo em anos alternados. A viagem de ônibus levava três dias, imagino que havia todo um preparo psicológico para encarar, e mesmo sendo bianual eu já admiro a empreitada. Enfim, quando eles vinham, traziam tesouros no bagageiro do ônibus: marmelada, rapadura, doces de leite e de mamão. Mas o sucesso mesmo, o que reunia todos os netos em roda no quintal do tio mais velho, todos de colher na mão, não era nenhum doce: era a farofa. Hoje eu vi o making of da farofa.
Fui até a Silgueira, o povoado onde meu pai e meus tios nasceram, cresceram e viveram até a seca ir empurrando todos para o Sul, um a um. Quem mora lá hoje é a Romana, que é filha de um irmão da minha avó, e cuidou dos meus avós enquanto eles viveram em Monte Santo (1994 ou 1995, não sei bem; foram para São Paulo, minha avó viveu mais 4 ou 5 anos; com a morte dela, meu avô só queria ir também, e foi três meses depois).
Peguei o carro e fui. A Romana tinha me explicado como chegava, meu primo Edmilson tinha me dado as coordenadas no Google Maps, então saí confiante. São uns 6 ou 7 quilômetros de estrada de terra. Cheguei ao ponto das coordenadas e era só um lugar da estrada, sem casa nem porteira por perto. Fui um pouco adiante, vi uma senhora parada no quintal, perguntei se ali era a Silgueira. Confirmou. Perguntei onde morava a Romana. “Numa daquelas casas lá em cima”, ela apontou. Eu tinha passado, mas não muito. Voltei, parei na casa que achei que tinha mais cara de ser da Romana, bati palmas. Saíram a Romana e o irmão dela, Antônio, que não me conhecia. “Mas é o vô dele todinho!”, admirou-se.
Entrei. Uma casa simples, daquelas de filme nacional feita por gente rica do Sudeste com a vida mais confortável possível e um certo fetiche pela Caatinga. Tirei uma foto do quintal enquanto me balançava na rede:
Entrei e Romana já foi dizendo: “tô fazendo a farofa de vovó”. Apontou para uma bacia de alumínio já com farinha e alguns pedaços de galinha. Enquanto isso, fritava mais galinha numa frigideira grande. O segredo, ela me explicou, é fritar a galinha na própria gordura. Ela cozinha a galinha, depois despeja a gordura na frigideira e vai fritando os pedaços cozidos. O outro segredo é o corante que deixa a farofa avermelhada: urucum, que ela mesma colhe e tritura.
“Quem fazia essa farofa com ela era eu”, Romana me explicou. Ela e a irmã matavam as galinhas às vésperas da viagem de minha avó a São Paulo.
— Mataram seis galinha?! — se admirava meu avô. — Pra que tudo isso?
— Júlio, eu tenho é 9 filho, 23 neto!
— E tão passando fome?
— Tem ninguém passando fome, eles gosta da farofa. Júlio, vai pra roça, vai. Vai caçar o que fazer.
“Aí ele ia pro riacho dar o pé pras piaba beliscar”, contou a Romana. Gostei. Era literalmente o que ele fazia, mas é um baita expressão: “vai dar o pé pras piaba beliscar!”. Não é sonoro? Pois.
A farofa ficou pronta cedo, então Romana foi me mostrar a área. Um pouco para baixo ficava a casa dos meus avós, que foi demolida. Sobraram uma cacimba, um pedaço de alicerce, destroços de uma pia de cozinha e uns tijolos caídos aqui e ali. Existiu um lar ali. Agora mal existem ruínas, é só mato. O tempo, o mundo, a natureza eles tão nem aí para nós.
Fiz vários vídeos para não esquecer. A propriedade é muito maior do que eu pensava. O solo arenoso dá muitas plantas retorcidas, teimosas, espinhudas. Os trechos de caatinga são impenetráveis. Mais teimosas que as plantas, só as pessoas, que dão um jeito de tirar da terra o sustento delas e de seus bichos. Roças de pimentão, pimenta, coentro, milho, mandioca. Muito capim que Romana plantou para as ovelhas, que saem para pastar longe e obedecem ao comando dela na hora de voltar. No curral, um porco imenso, pachorrento. “Aqui é a roça do Lindauro”, ela diz. Fico surpreso ao ouvir a voz do meu pai. Parece que cada um dos filhos dos meus avós tinha sua própria roça. Mais tarde, meu tio me contou que na roça do meu pai tinha um tanque onde eles tomavam banho.
(Esse tio, José, me mandou um áudio assim: “Pra você saber como era antigamente, você vai ter que cagar no mato, limpar o cu com folha de malva, tomar banho no tanque, ao ar livre, jogando água no corpo com as mãos ou com uma canequinha”. É doido receber um áudio com a voz e o sotaque tão parecidos com o do meu pai. Respondi a ele que tomo esse banho aí tranquilamente, mas cagar no mato, nem que me paguem)
Fomos andando pelo mato e Romana me contando: o lado de lá era do meu avô, mas ele vendeu antes de se mudar para São Paulo. Ele queria vender tudo, não vendeu porque minha avó não deixou. Imagino que não queria deixar Romana desamparada. Os filhos deles vieram para São Paulo há 60 anos, casaram, construíram suas casas, tiveram filhos, netos. Ninguém pensa em voltar a Monte Santo. Fiquei sabendo que existe um acordo entre todos eles para deixar as terras para Romana. Ela trabalha numa escola da cidade, cuida dos bichos e da plantação, da casa e da vida. É muita coisa.
Quando voltamos, Romana disse que ia terminar de preparar o almoço e perguntou se eu gostava de rede. “Sua vovó amava uma rede”. Pois eu também. Depois de tanto andar no calor do sertão, eu estava suado e soprava uma brisa boa na varanda. Deitei na rede e fiquei lá, bundando, às vezes tirando uma foto:
Depois de uns minutos, Romana me chamou para almoçar. Arroz, feijão, tomates colhidos do quintal e a farofa de minha avó, com o sabor que eu me lembro da infância e não provava há 30 anos. Para beber, um suco de maracujá do mato. É um maracujazinho menor, verde, de polpa também verde, menos ácido do que aquele que a gente conhece. O suco é suave, como o de caju. Tomei um copo só porque sou envergonhado, mas a vontade era virar a jarra toda.
É difícil explicar o que é estar aqui em Monte Santo, esta terra onde nunca havia pisado antes, mas me dá a sensação de estar em casa. É como se eu tivesse prendido a respiração por 49 anos e, chegando aqui, soltasse o ar, aliviado.
*Sim, eu sei que o “making of” já contém a preposição. Me deixa.