Não, o post não é sobre a casa daquele seu primo.

Você sabe de quem eu tô falando.

“Uma vez eu passei um mês na casa de farinha”, dizia meu pai, e não explicava nada depois. Uma das várias formas que Seu Lindauro encontrava de ser irritante era deixar a conversa entrar em loop.

— O que é casa de farinha?

— É onde faz a farinha.

— E por que você ficou um mês na casa de farinha?

— Pra fazer farinha.

— …

— Ué. É cada uma…

Hoje eu entendi.

Fui a uma casa de farinha no Salgado, vilarejo próximo da Silgueira, onde meu pai cresceu. Os dois vilarejos protagonizam há décadas um clássico do futebol local. Bom, talvez não seja um clássico, porque o Salgado sempre ganha, mas sei lá de futebol.

Fui lá na casa de farinha. Logo na porta, muitas mulheres, umas vinte, sentadas no alpendre descascando o que parece ser um número infinito de mandiocas. Braços e roupas cobertos de mandioca, as que usam óculos têm os óculos cheios de resquício. Eu tinha chegado procurando o Leôncio, mas ele não estava. Fui recebido pelo afilhado dele, Isaías, um rapaz com camisa da Argentina (do Messi, claro). Ele foi me explicando como as coisas funcionavam, mas não queria aparecer em vídeo. “Quem faz vídeo é meu padrinho, ele que é o chefe”.

A casa de farinha é uma linha de produção com processos e papéis bem definidos. O caminhão (ou caminhões, quando a safra é boa) descarrega as mandiocas que as mulheres descascam. Elas são precisas e hábeis com as facas afiadas: com elas, decepam de um golpe só a ponta da mandioca e depois vão descascando (ou “raspando”, como elas dizem). Os homens pegam as caixas de plástico ou balaios de palha cheios de mandiocas descascadas e levam para dentro. Lá, os lotes de mandiocas são despejados numa máquina que ceva, ou tritura, a mandioca. Triturada, ela é uma massa úmida que contém mandioca, água e fécula, que é o que se usa para fazer tapioca. Outro grupo de mulheres mistura água nessa massa e espreme em panos. A água que sai dessa operação contém a tapioca, só precisa deixar assentar. Depois de assentada, ela é lavada para deixar branquinha, e levada para uma chapa de ferro quente em outro espaço, aquecida sobre um forno a lenha, onde elas fazem o beiju (que é o que nós em São Paulo chamamos de tapioca). O beiju que sai fresquinho e quente da casa de farinha é delicioso puro mesmo. Elas fazem beijus grandes, que são para consumo e venda, e uns pequenos, de 100 gramas, que são vendidos para a merenda das escolas.

Depois de extraída a tapioca, a massa é levada para uma prensa, onde dois ou três homens empurram uma alavanca que move o parafuso que aperta as chapas que prensam a mandioca, extraindo dela quase todo o líquido. A massa, já quase seca, é levada de volta ao cevador, que é movido para outro cocho. A mandioca que sai ali é mais fina e seca, e já lembra a farinha. Mas ainda falta um processo: o forno. Na verdade é um grande tacho metálico, também aquecido por forno a lenha, com um conjunto de pás que giram a farinha, que assim vai ficando seca e torrada.

Quando está no ponto, a farinha é tirada do forno e levada para uma peneira automática. O que sai já é farinha pronta para o consumo. O que sobra na peneira é levado de volta ao cevador e ao forno.

Nada se perde: as mulheres levam para casa as cascas que tiraram, que é usada como alimento para os animais (elas também recebem cada uma um balde de tapioca). Leôncio aproveita até as folhas e caules, que ele tritura e deixa fermentando em um tonel. Quando a seca é braba e a ração acaba, é essa ração de caules e folhas que alimenta os bichos de criação.

Entendi por que meu pai passou um mês inteiro na casa de farinha. A mandioca, Leôncio me explica, é como defunto: depois de um dia, no máximo dois, não presta mais. Agora imagine esse processo todo numa época sem energia elétrica. A ceva era manual, dois homens precisavam ficar mexendo a farinha no forno com rodos, mulheres peneiravam a farinha torrada. Famílias passavam semanas, meses até, fazendo suas farinhadas para não perder a safra.

A farinhada, que é esse processo todo, é uma atividade comunitária. As famílias vão às casas de farinha umas das outras para ajudar. Meu avô, diz o Leôncio, era dos que mais trabalhavam nisso. Tinha terras boas que davam muita mandioca, era trabalhador, esperto, e muito querido na região.

Digo às mulheres que só elas trabalham na farinhada. Lá dentro, quase todo o trabalho dos homens é feito por máquinas, mas a raspagem e a tapioca ainda são feitas manualmente. Elas riem, concordam. Leôncio e os outros ficam meio contrariados. Já existe uma máquina que faz a tapioca, Leôncio diz (e me mostra depois), mas as mulheres não querem. Talvez o negócio ali não seja produzir farinha, a farinha é só um acaso. O que conta é o senso de comunidade. Isaías definiu bem: “isso aqui é minha terapia”

“Você precisa ir ver o Leôncio”, disse meu tio José, e depois minha tia Zenaide. Leôncio é primo do meu pai (o pai dele era irmão da minha avó), e nos desencontramos muitas vezes nos últimos dias. Hoje eu estava na casa de farinha (depois conto da casa de farinha), soube que ele estava em casa e, para evitar novo desencontro, fui até lá. E aí entendi por que queriam tanto que eu conhecesse o cara.

Leôncio é um líder comunitário. Bem na porta da casa dele tem um adesivo de uma candidata a vereadora pelo PT. Ele fundou uma cooperativa de agricultores familiares, uma outra associação, mas o grande orgulho dele é a escola agrícola.

Leôncio me contou que a escola veio de uma ideia que começou na França. Assim como aqui, as crianças francesas da área rural iam estudar para aprender coisas da cidade. Assim que o moleque tinha idade para isso, se empirulitava pra cidade. Chegou uma hora que o governo francês percebeu que isso ia dar merda: se a área rural se esvaziasse, o que o povo da cidade ia comer? E o povo que ficasse na área rural, ia viver do quê? Aí começaram os projetos de escolas agrícolas. (Tudo isso segundo o Leôncio, não pretendo verificar a informação).

Aqui acontecia igualzinho. Na família do meu pai, os 9 irmãos se mandaram para São Paulo assim que possível. “Não só eles!”, diz o Leôncio. Ele nasceu em 1963, mesmo ano em que meu pai foi embora. Em 1983, aos 20 anos, ele também foi. Um dia, vendo o Jornal Nacional, viu que ia passar uma notícia sobre Monte Santo. Ninguém falava de Monte Santo, nem telefone havia na cidade. Ele ficou empolgado para escutar notícias de sua terra no principal telejornal do país. Só que as notícias não eram boas: segundo um levantamento daquela época, Monte Santo era o município onde mais morriam crianças antes de completar 1 ano de idade.

A notícia comoveu Leôncio, e não só ele: organizações estrangeiras, nacionais, a igreja católica, todo mundo se descambou pra Monte Santo pra tentar resolver aquela tragédia. Não sei direito o que aconteceu, mas a taxa de mortalidade infantil melhorou muito. Faltava o problema da evasão dos jovens. “Aquilo que aconteceu com seu pai nos anos 60, continuou nos anos 70, 80, 90…”

Em 1990, Leôncio voltou a Monte Santo. Tinha aqui a casa do pai dele, construiu a própria casa, tudo lá no povoado Salgado, zona rural. Depois de um tempo, conheceu um paulistano filho de franceses que conhecia o que tinham feito na França e queria fazer o mesmo no sertão baiano (“ser tão baiano” é algo muito mal visto em São Paulo). Em 1998, Leôncio foi um dos fundadores da Escola Agrícola. Perguntei se era ali no povoado, mas é mais longe ainda. A Silgueira, onde meu pai cresceu, fica a 6 quilômetros da cidade. O Salgado, onde mora Leôncio, fica a 8. A escola fica a 20 quilômetros da cidade.

A escola agrícola oferece ensino fundamental e depois o médio, que é escola técnica. No primeiro ano do ensino médio, os alunos vão fazer estágio em seus respectivos povoados, conhecer a economia do lugar. No segundo e no terceiro, estagiam em outros povoados. Com isso, têm uma visão mais ampla

(Lembro do meu pai dizendo que tinha vontade de fazer uma faculdade para ter uma visão mais ampla do mundo. Quando falava “ampla”, ele colocava os dedos indicador e médio de cada mão nas têmporas e depois abria os braços num semicírculo. “Aaaaampla”, ele dizia, enquanto os braços se afastavam.)

uma visão mais ampla da economia da zona rural de Monte Santo. Porque cada povoado tem sua economia própria: há lugares onde se planta mandioca, em outros se cria gado, em outros o negócio é sisal, e por aí vai.

A escola foi dando resultados, formando alunos e, quatro anos depois, Lula foi eleito presidente. Ou, como diz o Leôncio: “Lula ganhou na política”. O Luz Para Todos foi uma revolução na zona rural de Monte Santo, que entrara no século 21 sem energia elétrica. A água encanada ainda está chegando

(no Salgado, as casas já têm aquele cavalete pronto, só esperando o relógio da companhai de água; na Silgueira, ainda não há previsão. A Romana me conta que os homens diziam que se vestiriam de mulher no dia em que a luz chegasse à Silgueira; pois a luz chegou e ninguém se travestiu, nem sempre o sertanejo tem palavra)

Chegou a energia elétrica, veio o Bolsa Família, que exige como contrapartida que as crianças estejam na escola. A vida foi melhorando. Hoje, diz Leôncio, na casa dele tem tudo que tem na cidade: energia elétrica, TV, internet com Wi-Fi. Os jovens hoje saem da cidade para ir cursar a universidade em Euclides da Cunha, Feira de Santana ou Salvador, mas voltam. Leôncio, um agricultor do sertão da Bahia, tem duas filhas. Uma está na faculdade em Euclides da Cunha. A outra foi para Curitiba, formou-se em Direito, já saiu da faculdade empregada, fez mestrado e está fazendo doutorado.

Ontem fui a Juazeiro e vi um grande shopping center, mas também pessoas morando em casas de pallet na beira da estrada. Em Monte Santo não se vê nem a miséria nem a riqueza ostensiva. Talvez seja essa a tal distribuição de renda.

Domingo, depois de muitos anos, fui a um culto numa igreja batista. Tá igual, mas tá diferente.

Hesitei mas fui. Era a Primeira Igreja Batista de Monte Santo, onde meus avós congregavam. Estou falando de uma época antes da transição religiosa que hoje acontece no Brasil, da ascensão evangélica. Até hoje, me parece que essa transição ainda não é tão evidente em Monte Santo. Quando falei pro dono do hotel que eu era neto do Júlio, a pergunta dele foi: “um que era crente?”. Quer dizer: crente ainda é ponto de referência nesta cidade erguida ao redor da fé católica.

Pois fui. Cheguei lá, fiquei do lado de fora, tirei foto da fachada (ficou uma boa bosta). Estava de bermuda e chinelo, e não se entra assim no culto, né? Pelo menos foi assim que eu aprendi, e essas coisas da infância a gente não larga fácil, não. Além do mais, o culto já havia começado e o portão estava fechado. Mas aí vi uma família chegando. Abriram o portão, entraram. Aí fui.

Na porta da igreja, uma moça recebia quem chegava. Disse “seja bem-vindo!”. Eu apontei para minhas pernas e pés, murmurei “tô de chinelo…” e ela fez um gesto de deixa disso, entre. Entrei e sentei no banco que ela me apontou. Era o último banco. Achei que fosse para esconder o gordo de bermuda que chegou atrasado, mas não. É o lugar dos visitantes.

Nos meus tempos de igreja, o visitante era recebido com música especial (Visitante, seja bem-vindo / sua presença é um prazer / com Jesus estamos dizendo / a nossa igreja ama você), ia todo mundo cumprimentar a pessoa. Era um gesto bonito e simples de hospitalidade, mas imagino que podia ser um tanto constrangedor para o desavisado. Então hoje não tem nada disso. Nos meus últimos dias de igreja já não tinha.

Muita coisa mudou. Quando cheguei, quem falava no púlpito era uma moça de óculos e saia jeans que parecia coisa de Assembleia de Deus. O pentecostalismo meio que se infiltrou entre os batistas, e essas trocas culturais acabam acontecendo. Vi que as pessoas moviam o corpo durante a música, algo impensável para um batista até os anos 90. A pregação do pastor, um pouco depois, também teve um sabor meio pentecostal, mas já chego lá.

A moça de óculos (que depois, num testemunho, revelou ser veterinária e ter duas especializações em saúde pública; o testemunho era pra contar que finalmente tinha sido aprovada numa especialização na UFBA. Senti uma pontinha de orgulho na irmã, e acho que ela tá certa).

Mas eu ia dizendo: a moça de óculos conduziu uma espécie de sermão breve sobre as bem-aventuranças, depois de fazer uma leitura bíblica.

Quando eu ia à igreja, antes da ascensão evangélica, era fácil identificar o crente na rua. Pessoal da Congregação Cristã no Brasil e da Assembleia de Deus era mais fácil: as mulheres de saias e cabelos longos, os homens sempre de ternos. Nós, batistas, não tínhamos dress code nem regras para os cabelos, maquiagem, essas coisas. Mas todo crente, de qualquer denominação, levava a bíblia embaixo do braço. Às vezes, envergonhado pela possibilidade de encontrar um conhecido de fora da igreja, eu ia sem bíblia. Uma bobagem, todo mundo sabia que eu era crente. Mas essa vergonha aí, eu percebia, era comum. O crente era o diferente, que abria mão de um domingo de sol para ir à igreja de uma religião que ninguém entendia direito o que era. Quando alguém chegava à igreja sem bíblia, o pastor comentava: “Tá de agente secreto hoje, irmão?”. Não tinha censura na voz nem nada, acho que ele entendia o peso de ser crente naquela época na periferia de São Paulo. Na hora de contratar um pedreiro, uma faxineira, qualquer prestador de serviços, ser crente entrava na carta de recomendações. Crente, naquela época, era visto como honesto, correto, pontual. O principal: não bebia. Fora das relações comerciais, era visto só como esquisito mesmo. Eu já era esquisito o bastante de nascença, não precisava acrescentar a isso a bíblia, o símbolo que entregava minha religião de esquisitões. Então eu tinha vergonha.

Bom, hoje o cara só leva a bíblia pro culto se quiser, porque todas as passagens são projetadas num telão, assim como as letras dos hinos cantados. O culto ganha um ar de karaokê.

A moça de óculos, veterinária com muitas especializações, tocou o culto quase todo. Era ela quem chamava os grupos dizendo que teriam “oportunidade”. “O grupo de louvor vai ter agora uma oportunidade”, “a oportunidade agora é do grupo de mulheres”. O grupo de louvor era composto de bateria, baixo, guitarra ou violão e teclado. O bumbo da bateria estava muito alto, o baixo nem se ouvia. O tecladista fazia uns improvisos bem na hora em que o guitarrista tentava o solo. Todos tocavam muito bem, mas aparentemente ensaiaram pouco juntos. A cantora ia bem nos graves e médios, mas talvez não precisasse tentar alcançar certos agudos. Quanto às músicas, não as conhecia. Meu conhecimento dos louvores (que na minha época se chamavam “corinhos”, que eram as músicas fora do hinário oficial batista, o Cantor Cristão) ficou mesmo nos anos 90. O coral de mulheres cantou um hit do Cantor Cristão, “Alvo Mais que a Neve” (que minha irmã e minha mãe cantavam “ovo, clara em neve”). Todos ouviam e cantavam baixinho a letra bem conhecida. Só um negão na minha frente fazia questão de cantar alto, com fervor. Achei engraçado demais aquele preto retinto de olhos fechados cantando: “Sim, neste sangue lavado, mais alvo que a neve serei”. Será nada, meu irmão. Será nada.

Depois de toda essa parte que eu bem conhecia, eu já pensando que a igreja batista tinha se modernizado e que a veterinária fosse a pastora, ela passou a palavra para o pastor. E aí veio a parte que eu não conhecia.

No meu tempo de igreja, o pastor começava com uma leitura bíblica e depois fazia um sermão que destrinchava aquela leitura. Como éramos batistas, era um negócio bem racional, o cabra só faltava fazer análise sintática de cada versículo. Como isso mudou! O pastor começou pedindo que a igreja erguesse os braços na direção dos visitantes (eu e mais três) e entoasse a bênção apostólica. Foi tranquilo. Depois, leu uma passagem da carta de Paulo aos Colossenses, devidamente projetada no telão:

“Suportem uns aos outros e perdoem as queixas que tiverem uns contra os outros. Perdoem como o Senhor os perdoou. Sobre todas essas coisas, porém, vistam‑se do amor, que é o elo perfeito. A paz de Cristo deve ser o juiz no coração de vocês, visto que foram chamados para viver em paz, como membros de um só corpo — e sejam agradecidos.”

(Eu gosto muito da escolha da palavra “suportar” nessa passagem. Às vezes amar o próximo é só isso mesmo: suportar o feladaputa.)

Só que depois, em vez do sermão, o pastor começou um fluxo de consciência, metade oração, metade exortação. Usava técnicas de leitura fria. Começou do mais genérico possível: “Você que está com dor de cabeça, você que veio hoje com dor na coluna, no joelho, Deus sabe do seu sofrimento e vai te curar”. É claro que, entre as 40 ou 50 pessoas ali, alguém se identificou. Ele continuou, o discurso ia para todo o lado. Às vezes o pastor se inflamava, se emocionava, dava pulinhos como um pentecostal. Mais adiante, a pesca começou a ser mais dirigida: “Você que tem dúvidas, que veio aqui em busca de respostas… Você que talvez já tenha louvado a Deus, já tenha participado de uma igreja e hoje está distante…”. Se eu não soubesse que existe leitura fria, talvez achasse que era comigo. Não mordi a isca, só achei interessante.

O fio da prosa terminou do jeito que começou: do nada. E aí veio a hora da Santa Ceia. Os membros da igreja foram até lá pegar seu pedacinho de pão e sua tacinha de suco de uva (é uma tacinha mesmo, pouco maior que um dedal; isso não mudou), que são o corpo e o sangue de Cristo APENAS simbolicamente: não existe transubstanciação no protestantismo.

E aí bibibi, bobobó, acabou o culto. No meio disso tudo, a moça simpática da porta (que usava uma calça bem apertada, muito interessante) nos ofereceu água; a água gelada foi o mais próximo que cheguei do êxtase espiritual.

Na saída, o pastor me cumprimentou, ficou surpreso de saber que eu era neto de Júlio e Silvana. Contou que fez muitos cultos lá na casa deles na Silgueira, e que eram gente muito boa. Mas disso eu já sabia.

A vida toda eu achei que meu pai não me entendia. Nunca o culpei por isso: eu era esquisito mesmo. Gostava de ler, era introspectivo, tímido, sensível, delicado. Não levava jeito nenhum para esportes nem gostava das brincadeiras brutas dos meninos. Preferia a companhia das meninas à dos meninos, mas do que eu gostava mesmo era de ficar sozinho. Quer dizer: nada do que uma família da década de 1970 esperava de um primeiro filho homem. Depois veio minha irmã, e aí meu irmão, que em tudo correspondia ao arquétipo do moleque. Finalmente, eu achava, meu pai tinha o filho que tanto queria. Eu podia continuar sendo o filhinho da mamãe.

Foi preciso eu vir a Monte Santo e escutar uma história da infância do meu pai para tudo isso virar de cabeça pra baixo. A Romana, prima do meu pai, me contou segundo contado a ela por Dona Silvana, minha avó. Diz que Dona Silvana saía de casa deixando os 9 filhos, e os proibia de sair enquanto ela estivesse fora. Conhecendo as crias, porém, se escondia em algum ponto da estrada e ficava de olho. Logo vinham as pestes. Ela gritava, “NÃO FALEI QUE NÃO ERA PRA SAIR” e voltava para bater em todos. Ou melhor: em quase todos. Um dos filhos, o terceiro, era obediente. Ela tinha proibido todo mundo de sair, então ele não saía. E dizia “eu não fui, mamãe, porque sou obediente”.

Esse, claro, era meu pai. O filhinho da mamãe original.

Hoje, voltando de Juazeiro para Monte Santo, vim pensando nisso. Lembrei de uma vez em que, depois de uma longa caminhada, eu reclamei de cansaço. Meu pai riu e falou: “Tá sem forças? Chute aquele limão ali”. Eu fui chutar o limão caído na rua e fiz palhaçada, fingi que não conseguia. E ele: “Eita, nem parece meu filho! Parece filho do Lúcio!”. Lúcio é o segundo filho de Dona Silvana. Quietão, o último da família a casar, gostava mais de ler do que de conversar com os outros. Sempre gostei muito do Lúcio, mas meu pai me dizer aquilo doeu de um jeito esquisito. Eu sabia que era só brincadeira, coisa à toa. Mas doeu, que que eu vou fazer? Sou sensível.

Mas na estrada, voltando de Juazeiro, percebi: não é que meu pai não me conhecesse, não me entendesse. Conhecia e entendia até demais, e sabia como eu ia sofrer na vida se continuasse sendo tão delicado, quieto, sensível, todas essas coisas pouco masculinas. Ele não queria me excluir: queria me proteger.

Isso estava na cara desde sempre. Meu pai se comovia quando via o arco-íris depois da chuva. Gostava da beleza das plantas e dos passarinhos, dos cachorros e dos bebês. Era delicado, ele também, e nem a roça nem a ferocidade de São Paulo conseguiram calejar aquela alma. Mas a que custo? Nunca vou saber, só sei que ele não queria que eu sofresse.

Meu pai veio a Monte Santo em agosto de 2009. Romana me contou que ele foi ver o milharal na roça do Leôncio, primo dele, e ficou encantado com o tamanho dos pés de milho, a quantidade de espigas. “Leôncio, como você conseguiu fazer isso?”, ele se admirava. Depois que todos voltaram pra casa, ele ainda ficou um tempão lá sozinho, quieto, só admirando o milho. Depois que voltaram à casa da Romana, ele ficou muito tempo com o olhar longe. No que ele pensava? No milho? Na infância? Em mim? Sei lá. Só sei que uma hora ele se levantou, suspirou e disse: “É… Infelizmente tenho que ir”. A Romana fica comovida quando lembra: “Parecia que ele estava se despedindo”.

Ele morreu 14 meses depois. 14 anos depois, ainda estou aqui tentando entender meu pai. E agora penso que talvez não haja nada para entender. Que talvez eu só precise sentir por ele o amor que ele teve por mim e eu não soube ver, porque estava muito preocupado em entender as coisas.

Eu e meu pai: dois filhinhos de mamãe

Hoje aprendi uma frase sábia de minha avó Silvana. Quando alguém estava passando por problemas com alguém da família, ela dizia: “Ligue não. Toda família tem um cutuco”, querendo dizer que toda família tem alguém que dá trabalho, ou que é do contra, ou que é chato, ou tudo isso junto.

Hoje fiz a peregrinação pelos familiares da minha avó. Boa parte dos filhos das irmãs dela mora num povoado chamado Lagoa do Saco. Romana me levou até lá, fui recebido do jeito de sempre (“mas é o vô dele todinho!”). Levei um caderno e fiquei feito um doido anotando o nome de cada pessoa, e em que galho da árvore genealógica se aboletava. Uma das primas do meu pai mostrou uma foto da minha avó com as irmãs e o único irmão (o outro já devia ter morrido; originalmente eram 6 irmãs e 2 irmãos). Pelo que entendi, era um povo muito unido: viviam visitando e ajudando uns aos outros. Minha avó, descobri, era chamada de “Tia Menininha”. Por quê? Sabe Deus.

Belarmino, que é casado com uma das sobrinhas da minha avó, contou que meus avós davam festas lá na Silgueira e recebiam todos muito bem. “Era gente muito boa, respeitosa, decente”. O Belarmino ia com a namorada, porque lá era bom para namorar. “Tinha um banco grande lá, a gente ficava lá horas…”. Perguntaram quem era essa namorada. “Essa princesa aqui”, disse ele, apontando para a esposa, Francisca, que fez uma cirurgia no joelho, está usando um andador e tem um acesso venoso no braço.

Lá pelas tantas, chegou o Valdeci. Levei um susto: Valdeci é a cara do meu pai, fala balançando a cabeça como ele fazia, faz gestos largos. Quando vai contar uma história divertida, começa a rir antes da parte engraçada. Igualzinho. Chamei ele de Lindauro Genérico.

Meu caderno está cheio de anotações. Como já tinha acontecido em Estância em 2007, terra da minha avó materna, vejo minha família aumentar de repente. Isso é um tesouro muito grande. Se tem alguém lendo isto aqui, recomendo que você visite a terra dos seus antepassados. Contei para a Edite, prima do meu pai, que estava me sentindo muito bem aqui em Monte Santo, como se estivesse em casa. “É o sangue”, ela disse. “É muito forte.”

Voltei à cidade feliz, pensando na família incrível que tenho. Meu pai, que já foi, minha mãe, meus irmãos… Nenhum deles é um cutuco! Que sorte, a minha!

Mas aí pensei um pouco mais e acho que preciso atualizar a sabedoria de Dona Silvana: “Toda família tem um cutuco. Se você acha que a sua família não tem, é provável que o cutuco seja você”.

Hoje eu comecei o dia católico e terminei batista. Mas antes de contar essa experiência mística complexa, preciso falar do meu avô.

Meu avô, Júlio, era um cabra bruto do sertão baiano. Nascido e criado no povoado Silgueira, a 6 quilômetros do centro de Monte Santo, tinha a pele que chamam de “curtida pelo sol”. Não sabemos muito sobre os antepassados dele. Dizem que há negros que foram escravizados. Dizem que há indígenas. Meu teste de DNA confirma a presença dessa gente toda no meu sangue; mas é impossível saber quem foram os indivíduos.

Quando meu avô ia a São Paulo, nos aterrorizava com a brincadeira do caranguejo. “O caranguejo vai te pegar!”, ele dizia, com os dedos indicador e médio dobrados, fazendo movimento de pinça. E ai do neto que achasse que era só uma brincadeira inofensiva: quando o caranguejo pegava, beliscava pra valer. Seu Júlio não era dado a delicadezas.

Eu disse no primeiro post da série que tinha comprado uma caneta verde porque me lembrava meu avô, mas achava que podia ser uma memória inventada. Pois hoje Romana me confirmou: Seu Júlio só usava caneta verde. As canetas estouravam no bolso da camisa, que ficavam manchadas de verde para sempre. Ela, Romana, deu a ele uma Bic 4 Cores. Adiantou nada: ele logo gastou a tinta verde, as outras três seguiram intactas.

A memória da gente é uma coisa doida, olha o tipo de coisa que resolve lembrar.

Sempre que chego a algum lugar aqui em Monte Santo, as pessoas (primos do meu pai, normalmente) exclamam variações de “mas é a cara do vô!”. Quando me despeço, a conversa também é a mesma: “quando vier de novo, não gaste com hotel, fique aqui, o que não falta é lugar”.

Meu avô era crente, numa cidade qeu foi erguida e funciona em função do catolicismo. Achava as romarias ao alto da Serra da Santa Cruz uma “ignorância do povo”. Pois hoje, lá fui eu subir a serra.

A Serra da Santa Cruz se chamava Serra do Piquaraçá, até que um frei italiano chegou na região no século 18 (veio catequizar os índios, claro), achou o monte parecido com o Calvário e decidiu erguer estações da Paixão de Cristo e uma capela. Decidir é fácil, mas quem ergueu mesmo foram os escravos. Dizem que as muradas da escadaria que vai até a primeira capela, de Nossa Senhora das Dores, foram rebocadas por Antônio Conselheiro. É muito muro, não foi à toa que o bicho revoltou-se.

Comecei a subir a serra às 8h15 da manhã. Ao longo do caminho, há 25 capelas. Eu achava que fossem 12, e ainda bem que achava: se soubesse que eram 25, talvez tivesse desistido no meio. A subida é difícil, e a única companhia constante (para quem não tem fé, pelo menos) são os calangos tricolores. O começo é um calçamento de pedras irregulares, com degraus a certos intervalos.

No meio dessa subida, eu decidi que ia rezar quando chegasse lá em cima.

Numa segunda parte, o caminho tem só as formações rochosas da montanha mesmo, de quartzito liso. Esse trecho é mais plano e fácil de subir. Tem até uma descida no meio, de pedra e areia que faz fuish-fuish a cada passo. Já perto da capela principal, voltam os degraus, a subida íngreme, a falta de ar.

Cheguei às 10 em ponto, 1h45min de subida. A capela do século 18 é simples, com teto de ripas de madeira em arco, e grandes imagens de Nossa Senhora e São João Evangelista. Na lateral, a sala de ex-votos, onde as pessoas deixam representações das graças alcançadas, geralmente esculpidas em madeira: casas, motos, pernas, cabeças, seios. Muitas muletas de quem não precisa mais delas e atribui isso a um milagre.

Não rezei. Até tentei, mas não me pareceu correto. Acho que a fé começa com a verdade, e eu estaria mentindo se rezasse. Não senti nenhuma presença divina, nenhuma revelação espiritual. Então, em vez de rezar, fiquei pensando em tudo que me trouxe até aqui. No meu pai, na minha mãe, na minha mulher que me entende e me apoia em tudo, nos irmãos, nos sobrinhos. Foi um sentimento de gratidão muito grande. No livro de visitas da capela, pedem o nome, cidade de origem e o que foi pedir. Eu ia deixar em branco, mas vi que muitas pessoas antes de mim tinham preenchido esse campo com a palavra “gratidão”. Fiz o mesmo, resistindo à tentação de incluir uma hashtag.

O resto do dia foi visitando parentes, numa história que conto depois. À noite, lembrei que era domingo e pensei em ir ao culto na Primeira Igreja Batista de Monte Santo, onde Seu Júlio congregava. Achei a igreja, tinha uma moça cantando no púlpito. Culto já começado, eu de bermuda e chinelo, decidi voltar para o hotel. Mas parei o carro na praça e continuava aquela vontade de ir à igreja. Achei que dessa vez pudesse ser um chamado divino mesmo, uma onda espiritual querendo me levar aos braços de Deus. Então dei meia-volta, fui à igreja e…

Nada, claro. Apenas um culto batista, como muitos que assisti na minha infância e adolescência. Alguns hinos familiares, o estilo da pregação também. Na saída, o pastor me cumprimentou e eu disse que meu avô tinha sido membro da igreja. Quando falei o nome dele, o rosto do pastor Rosaldo se iluminou: “Júlio! E a esposa dele, Silvana! Gostava muito dele, um homem especial. Fiz muitos cultos na casa dele lá na Silgueira”.

Talvez seja essa minha experiência espiritual. As coisas às vezes são muito simples.

Dona Silvana e Seu Júlio, meus avós paternos, iam a São Paulo em anos alternados. A viagem de ônibus levava três dias, imagino que havia todo um preparo psicológico para encarar, e mesmo sendo bianual eu já admiro a empreitada. Enfim, quando eles vinham, traziam tesouros no bagageiro do ônibus: marmelada, rapadura, doces de leite e de mamão. Mas o sucesso mesmo, o que reunia todos os netos em roda no quintal do tio mais velho, todos de colher na mão, não era nenhum doce: era a farofa. Hoje eu vi o making of da farofa.

Fui até a Silgueira, o povoado onde meu pai e meus tios nasceram, cresceram e viveram até a seca ir empurrando todos para o Sul, um a um. Quem mora lá hoje é a Romana, que é filha de um irmão da minha avó, e cuidou dos meus avós enquanto eles viveram em Monte Santo (1994 ou 1995, não sei bem; foram para São Paulo, minha avó viveu mais 4 ou 5 anos; com a morte dela, meu avô só queria ir também, e foi três meses depois).

Peguei o carro e fui. A Romana tinha me explicado como chegava, meu primo Edmilson tinha me dado as coordenadas no Google Maps, então saí confiante. São uns 6 ou 7 quilômetros de estrada de terra. Cheguei ao ponto das coordenadas e era só um lugar da estrada, sem casa nem porteira por perto. Fui um pouco adiante, vi uma senhora parada no quintal, perguntei se ali era a Silgueira. Confirmou. Perguntei onde morava a Romana. “Numa daquelas casas lá em cima”, ela apontou. Eu tinha passado, mas não muito. Voltei, parei na casa que achei que tinha mais cara de ser da Romana, bati palmas. Saíram a Romana e o irmão dela, Antônio, que não me conhecia. “Mas é o vô dele todinho!”, admirou-se.

Entrei. Uma casa simples, daquelas de filme nacional feita por gente rica do Sudeste com a vida mais confortável possível e um certo fetiche pela Caatinga. Tirei uma foto do quintal enquanto me balançava na rede:

Uma foto para matar de prazer o cineasta brasileiro

Entrei e Romana já foi dizendo: “tô fazendo a farofa de vovó”. Apontou para uma bacia de alumínio já com farinha e alguns pedaços de galinha. Enquanto isso, fritava mais galinha numa frigideira grande. O segredo, ela me explicou, é fritar a galinha na própria gordura. Ela cozinha a galinha, depois despeja a gordura na frigideira e vai fritando os pedaços cozidos. O outro segredo é o corante que deixa a farofa avermelhada: urucum, que ela mesma colhe e tritura.

A farofa antes de sê-lo

“Quem fazia essa farofa com ela era eu”, Romana me explicou. Ela e a irmã matavam as galinhas às vésperas da viagem de minha avó a São Paulo.

— Mataram seis galinha?! — se admirava meu avô. — Pra que tudo isso?

— Júlio, eu tenho é 9 filho, 23 neto!

— E tão passando fome?

— Tem ninguém passando fome, eles gosta da farofa. Júlio, vai pra roça, vai. Vai caçar o que fazer.

“Aí ele ia pro riacho dar o pé pras piaba beliscar”, contou a Romana. Gostei. Era literalmente o que ele fazia, mas é um baita expressão: “vai dar o pé pras piaba beliscar!”. Não é sonoro? Pois.

A farofa ficou pronta cedo, então Romana foi me mostrar a área. Um pouco para baixo ficava a casa dos meus avós, que foi demolida. Sobraram uma cacimba, um pedaço de alicerce, destroços de uma pia de cozinha e uns tijolos caídos aqui e ali. Existiu um lar ali. Agora mal existem ruínas, é só mato. O tempo, o mundo, a natureza eles tão nem aí para nós.

Fiz vários vídeos para não esquecer. A propriedade é muito maior do que eu pensava. O solo arenoso dá muitas plantas retorcidas, teimosas, espinhudas. Os trechos de caatinga são impenetráveis. Mais teimosas que as plantas, só as pessoas, que dão um jeito de tirar da terra o sustento delas e de seus bichos. Roças de pimentão, pimenta, coentro, milho, mandioca. Muito capim que Romana plantou para as ovelhas, que saem para pastar longe e obedecem ao comando dela na hora de voltar. No curral, um porco imenso, pachorrento. “Aqui é a roça do Lindauro”, ela diz. Fico surpreso ao ouvir a voz do meu pai. Parece que cada um dos filhos dos meus avós tinha sua própria roça. Mais tarde, meu tio me contou que na roça do meu pai tinha um tanque onde eles tomavam banho.

(Esse tio, José, me mandou um áudio assim: “Pra você saber como era antigamente, você vai ter que cagar no mato, limpar o cu com folha de malva, tomar banho no tanque, ao ar livre, jogando água no corpo com as mãos ou com uma canequinha”. É doido receber um áudio com a voz e o sotaque tão parecidos com o do meu pai. Respondi a ele que tomo esse banho aí tranquilamente, mas cagar no mato, nem que me paguem)

Fomos andando pelo mato e Romana me contando: o lado de lá era do meu avô, mas ele vendeu antes de se mudar para São Paulo. Ele queria vender tudo, não vendeu porque minha avó não deixou. Imagino que não queria deixar Romana desamparada. Os filhos deles vieram para São Paulo há 60 anos, casaram, construíram suas casas, tiveram filhos, netos. Ninguém pensa em voltar a Monte Santo. Fiquei sabendo que existe um acordo entre todos eles para deixar as terras para Romana. Ela trabalha numa escola da cidade, cuida dos bichos e da plantação, da casa e da vida. É muita coisa.

Quando voltamos, Romana disse que ia terminar de preparar o almoço e perguntou se eu gostava de rede. “Sua vovó amava uma rede”. Pois eu também. Depois de tanto andar no calor do sertão, eu estava suado e soprava uma brisa boa na varanda. Deitei na rede e fiquei lá, bundando, às vezes tirando uma foto:

Os postes são novos. A energia elétrica chegou à Silgueira já neste século

Depois de uns minutos, Romana me chamou para almoçar. Arroz, feijão, tomates colhidos do quintal e a farofa de minha avó, com o sabor que eu me lembro da infância e não provava há 30 anos. Para beber, um suco de maracujá do mato. É um maracujazinho menor, verde, de polpa também verde, menos ácido do que aquele que a gente conhece. O suco é suave, como o de caju. Tomei um copo só porque sou envergonhado, mas a vontade era virar a jarra toda.

É difícil explicar o que é estar aqui em Monte Santo, esta terra onde nunca havia pisado antes, mas me dá a sensação de estar em casa. É como se eu tivesse prendido a respiração por 49 anos e, chegando aqui, soltasse o ar, aliviado.

Servidos?

*Sim, eu sei que o “making of” já contém a preposição. Me deixa.

Mais de 60 anos depois que meu pai foi para São Paulo, e 15 anos depois da última visita dele à terra natal, finalmente estou em Monte Santo. Vim aqui para deixar de ser uma árvore troncha.

Já explico.

Cheguei ontem a Salvador, dormir em Feira de Santana, hoje de manhã segui viagem. Contei no grupo da família que pretendia passar por Caldas do Jorro antes, e minha mãe me disse que uma prima do meu pai morava lá.

Caldas do Jorro tem esse nome porque o pessoal do “O Petróleo é Nosso” inventou de furar o chão pra caçar petróleo na década de 1940. Depois de mais de 1.800 metros de perfuração, finalmente jorrou… água. Água quente, 48 graus centígrados. Frustrada a ideia do combustível fóssil, o lugar virou estância hidromineral que atrai turistas até hoje. Dizem que as águas são medicinais, “melhores que as de Vichy”. A prefeitura garante que elas surgem de um lençol freático inesgotável. Na minha idade, eu já sei que nada no universo é inesgotável. A MIM NÃO ME ENGANAM

Pois lá fui eu para o Jorro encontrar a prima do meu pai, Zenaidinha. Pouco antes da entrada da cidade, um aviso:

Você está preparado?

Tenho nem roupa para um evento desse porte. Já em Caldas do Jorro, estava parado na praça central, que é o lugar onde as pessoas vão tomar banho de água medicinal, quando ouvi meu nome. Era o filho da Zenaidinha. Tinha visto uma foto minha, viu um careca barbudo com cara de perdido, soube logo que era eu. Eu tinha acabado de tirar essa foto:

Não quis ir lá fazer uma foto frontal com as pessoas lá, fiquei com vergonha. Meu pai fez uma foto muito melhor em 2009 (que, olhando agora, acho que não é da praça, mas do Jorrinho, que fica um pouco antes na estrada que vai para o Jorro):

Bom, o filho da Zenaidinha me achou, me levou até a casa dela, depois fomos ao bar. Zenaidinha tem um bar na praça, onde ela insistiu que eu almoçasse. “Você não come bode, né”. Eu nunca tinha comido, mas não tenho essas frescuras. Aceitei o bode, e foi a decisão acertada. É uma carne muito gostosa.

Eu, Zenaidinha, o filho dela, e um cara que tava lá falando ao telefone

Almocei, vim pra Monte Santo. Entrei na igreja, subi uma escada que talvez estivesse interditada e tirei essa foto:

Eu queria subir até a torre, mas a escada que vai até ela é gordofóbica:

Fui ao Museu do Sertão, bibib, bobobó. Depois eu conto.

Estou agora no hotel. Hotel, não: o Monte Santo Palace Hotel. Cheguei no dia mais movimentado da cidade, o dia da feira. A feira já estava se desmontando quando cheguei, mas o trânsito ainda estava caótico. Tem muita moto aqui, muita mesmo. As leis de trânsito são meras sugestões, e dar seta não faz parte da cultura local.

Agora está mais tranquilo, só permanece na praça o camelô dos CDs piratas e caixinhas de som bluetooth. Estava tocando Roberto Carlos quando voltei ao hotel depois do passeio pela cidade. Agora está tocando uma música em que o sujeito diz que chorou na vaquejada quando ouviu a música que o faz lembrar da ex. É bonita, a música.

Não sei se vou fazer um diário da viagem ou coisa assim. Até comprei um caderno e uma caneta verde pra isso (tinta verde me faz lembrar do meu avô Júlio, que era daqui, não sei por quê; acho que as cartas que ele escrevi ao meu pai eram em tinta verde e fiquei com isso na memória). Caderno e caneta estão aqui, mas eu logo me canso de escrever a mão. Só de pensar em contar uma história completa, já me ataca a tendinite. Digitando é melhor, mas acho chato abrir um documento do Word e escrever coisas que ninguém vai ler. Aí lembrei aqui do velho blog, onde QUASE ninguém vai ler.

Ficamos assim, então: não sei o que vai ser esse registro. Não sei nem se vai ter registro. Mas queria dizer que finalmente vim a Monte Santo, e que vinha rindo à toa dirigindo pela estrada, achando belíssima a paisagem da caatinga, as plantas e aves que não conheço. Meu projeto para essa viagem é saber das origens da família, mas é muito difícil eu saber algo além do pouco que já sei. Nós, desse grande clã chamado Brasileiro Pobre, não temos muito registro de nada. Nossos antepassados são como os mastodontes que viveram aqui muitos milênios antes deles: viveram, tiveram suas alegrias, suas lutas, deixaram filhos, talvez tenham visto os netos, morreram, e não tinha ninguém para escrever “Fulano viveu aqui. Ele era assim, assado.”

Não sei bem quem foram meus antepassados. Mas estar aqui na terra deles me dá uma sensação boa. É outro tipo de raiz, mas é alguma raiz. Não sou mais uma árvore troncha.

Fóssil de mastodonte encontrado em Monte Santo e exposto no Museu do Sertão

Hoje este pobre blog abandonado chega aos 20 anos de existência. Já que ninguém lê mais blogs, fiz uma thread no Twitter que vou reproduzir mais ou menos aqui:

No começo de 2002, a @babslops começou a falar uma palavra que eu nunca tinha ouvido: BLOG. Que tinha feito um blog (que fui ver agora e ainda tá no ar), que era muito legal, que eu precisava fazer um blog, PRECISAVA. De tanto ela insistir, no dia 7 de fevereiro de 2002, há exatos 20 anos, eu criei uma conta no Blogger, penei um pouco pra configurar o negócio, escrevi o primeiro post, colei uma foto minha com o prof. Olavo de Carvalho e publiquei meu blog.

(“Jesus, me chicoteia!” era uma expressão que minha colega @vivianepita tinha aprendido numa viagem e voltou de férias falando o tempo todo. Achei engraçado, roubei.)

No mesmo dia, dois posts depois, contei rapidamente uma versão minha da Criação do mundo segundo a Bíblia. A Bárbara falou que tinha feito ela lembrar do Millôr, do Bernard Shaw… Minha vaidade não aguentou, e decidi que ia reescrever a Bíblia. Reescrevi os primeiros 11 livros, e parei no meio do 12º, II Reis. Vez em quando eu invento de escrever um capítulo novo. Ninguém mais lê, as pessoas pararam de ler texto na internet.

O título daquele primeiro post foi premonitório: a aventura tinha começado e eu não tinha ideia de aonde ela ia me levar. Foi graças ao blog que escrevi uns textos para revistas. Lendo um desses na Superinteressante mais o blog, o @gpavoni arriscou e me contratou em 2005. Foi meu primeiro emprego como jornalista. Anos depois, em 2009, o @arecobarudino me chamou para uma entrevista de emprego para uma vaga de roteirista no CQC. Até a hora de chegar lá eu achei que fosse trote. Ele lia meu blog (eu lia o dele também, mas não sabia), o Tas lia, o Gentili lia. Acabei contratado, e tô nessa profissão até hoje.

Fiz festas nos dois primeiros aniversários do blog. Veio gente do Brasil todo, casais se formaram. Na primeira festa, a @dani7macedo encasquetou que ia pegar o autor do blog Fale Com Deus. Pegou, namorou, casou, estão morando em Portugal de frente pro mar.

Em 2004, uma leitora mandou mensagem dizendo que gostava muito do que eu escrevia e coisa e tal. Chamei pra sair, ela aceitou. Fui muito sem noção, era um bar com os amigos, só ela de fora da turma. Mas ela se divertiu. Aí tem toda uma história, mas em janeiro de 2005 eu e @anacarlota começamos a namorar. Meses depois, quando eu decidi que ia pedir demissão do meu emprego de uma multinacional, ela me deu força. Ela me ensinou a dirigir aos 30 anos de idade.

Nos casamos em 2008. Em 2009, quando o @arecobarudino me ligou pra dizer que a vaga era minha, eu disse que ia pensar. Ele ficou desapontado. Cheguei em casa, falei pra Ana e ela: “Pensa sim. Mas se você decidir não aceitar, eu peço o divórcio”.

Ela sempre me empurra para o risco, baseada simplesmente numa confiança doida que ela tem no meu talento. Com o tempo, fui pegando um tiquinho dessa confiança dela. Te amo, minha leitora preferida.

Voltando ao blog: conheci muita gente, alguns que são amigos até hoje. Arrumei trabalho e casamento para mim e para os outros.

O @antoniotabet me conheceu lá no começo, quando ele também começou o Kibe Loco. Em 2018, ele me reencontrou no GNT, soube que eu era roteirista, e me indicou para uma vaga no canal de notícias que ele e a @MaraLuquet estavam começando. Assim eu fui parar no @CanalMyNews. O @MarceloTas, meu ídolo desde a infância, que era meu leitor sem eu saber, tá aí me aturando até hoje, agora no #Provoca.

É por coisas assim que, mesmo sem publicar mais nada lá (fora uns surtos eventuais), eu mantenho o blog, pago o registro do domínio e a hospedagem. A Bárbara tinha razão: é muito legal esse negócio de blog.

— Cês vão duvidar, vão rir da minha cara, mas basta pensar um pouco. Tudo se encaixa. Ali por 1950, 1960, tinha muito experimento com drogas psicodélicas rolando. O Humphry Osmond, um psiquiatra da Califórnia, fez vários testes com LSD. Parece que até o Aldous Huxley foi cobaia dele. Um outro psiquiatra, Ronald Sandison, tratou pacientes de um hospício inglês com LSD. Em Oklahoma, os caras mataram um elefante com a dose errada de LSD.

— Porra, overdosaram um elefante? Aí cê tá forçando. O que deram pra ele? Um ácido do tamanho de uma mesa de pôquer?

— LSD é poderoso, ô. Sabe quanto LSD precisa pra você começar a alucinar? 20 microgramas! Isso são 0,02 miligramas. Um miligrama é o peso de meia muriçoca! Se você pegar uma muriçoca e cortar em cem pedacinhos iguais, um pedacinho tem o mesmo peso da dose de LSD suficiente pra causar alucinação. Entendeu?

— Você estudou bastante o LSD, hein? E muriçoca também. Tô bobo com a amplidão do seu conhecimento.

— Cala a boca. Então. Teve os experimentos do Leary e do Alpert em Harvard. E aí tem vários testes em muitos países com mescalina, cogumelos, veneno de sapo. Vocês acham que o Brasil ia ficar de fora? Só que o Brasil é aquele negócio, né? Nunca teve transparência no governo. Os caras fizeram esterilizações em massa, esconderam epidemia de meningite, e isso só pra falar da época da ditadura. E governante brasileiro ser contra o método científico não é de hoje. Duplo cego, grupo de controle, tudo isso é chato demais. Aí o que os caras fizeram? Meteram psicodélico no povo, sem o povo saber.

— De onde cê tirou isso, cara?

— É só olhar! Você acha que aquele final dos anos 50 até o final dos 60 foi uma coincidência feliz? Primeiro Tom Jobim, João Gilberto, Carlos Lira, Donato, Alf, Menescal, Bôscoli. A bossa nova surge em 1958, em 1960 já dominou o mundo. O mundo! Poucos anos depois Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo, Gal Costa, Elis Regina, Maria Bethânia, Roberto e Erasmo… Tudo isso acontecendo ao mesmo tempo! Só um exemplo: as quatro primeiras colocadas no Festival da Record de 1967 foram Ponteio, do Edu Lobo, Domingo no Parque, do Gil, Roda Viva, do Chico e Alegria, Alegria, do Caetano. Um bando de moleques, todos com vinte e poucos anos. Quatro obras-primas da música popular universal, todas no mesmo ano, no mesmo país, no mesmo festival. Isso sem falar de Eu e A Brisa, O Cantador, Gabriela, Maria, Carnaval e Cinzas. Todas essas estavam no mesmíssimo festival! E cês vão me dizer que é coincidência?

— E isso prova o quê?

— Não prova nada. Mas dá indícios. Minha tese: o governo distribuiu psicodélicos para a população, e isso resultou numa explosão de criatividade nunca vista. Eu só falei de música, mas isso aconteceu no teatro, nas artes plásticas, no cinema… O Cinema Novo, cara! Acontecendo junto com a Tropicália! Coincidência? Nunca!

— Mas como que o governo ia distribuir isso?

— Aí é que está. Só pode ter sido na água. Só que era arriscado deixar o povo beber essa droga desconhecida. Vai que acontece que nem com o Tusko.

— Que Tusko?

— O elefante que morreu de ácido. Era Tusko o nome dele. Não falei? Pois era.

— E essa droga, então, é desconhecida?

— Só pode ser! Porque ela precisa ter algumas características que o LSD, por exemplo, não tem. Primeiro: tem que ser absorvida pela pele de forma mais eficiente, com um contato muito rápido. Segundo: tem que ser ativada só a partir de uma certa temperatura da água. Percebe? Porque a ideia era que o negócio ficasse ativo só na água quente, no mínimo morna.

— Mas por quê?

— Qual é a coisa que todo brasileiro faz todo dia? Pode faltar tudo, mas esse ritual não falha… O banho!

— Os caras botaram droga no banho do brasileiro? É isso que cê tá dizendo?

— Pensa, cara! PENSA! Quando é que você tem suas ideias? Aquelas que você não sabe de onde vieram? Onde vem a solução para problemas que estavam te fazendo quebrar a cabeça? No banho! Sempre no banho!

— Ah, mano, para…

— Tudo se encaixa! E digo mais: essa droga tem uma meia-vida de vinte anos. A cada vinte anos, a concentração dela se reduz pela metade.

— Como cê pode saber de uma coisa dessa?!

— Fácil: é claro que os militares, moralistas como eram, não iam deixar isso prosseguir. Devem ter demorado um tempo para descobrir, era provavelmente um projeto ultrassecreto. Mas digamos que eles tenham cortado o programa em 1970. Só em 1990 a dose se reduziu à metade. Deu tempo de aparecer o Clube da Esquina, o Belchior e o Fagner, o Raul Seixas… Cara, imagina o Raul Seixas, cheio de droga na cabeça, de pinga, e ainda vinha um reforço no banho. O João Gilberto com a maconha dele. Ou o Tim Maia. Um coquetel criativo! Veio o rock dos anos 80, que era bom, mas não chegava perto da música de 10 ou 15 anos antes. A partir de 1990, a gente vê uma queda de qualidade. Mas a criatividade ainda resiste. Teve o mangue beat, muita coisa no rap. E o pagode, não vamos nos esquecer do pagode! Podem torcer o nariz. Leandro Lehart, Péricles, Alexandre Pires… Esses caras são artistas, mentes musicais. São algum Gilberto Gil? Claro que não, porque não tiveram acesso à mesma dose do Gil. Mas ainda assim!

— Bom, então agora já deve ter acabado a droga.

— Não digo que tenha acabado. Mas a dose de 2010 era a metade daquela de 1990. Em 2030 será a metade daquela de 2010. Eu não esperaria muita coisa.

— Peraí, você não explicou por que a cada 20 anos, e não 15 ou 22…

— Por causa da nostalgia! Pode reparar: a cada década que começa, vem uma nostalgia de duas décadas atrás. Nos anos 80 teve o revival dos anos 60. Nos 90, até a calça boca-de-sino dos anos 70 voltou. Nos 2000 todo lugar tinha festa dos anos 80. O que é isso? É saudade de uma época em que a música, a moda, o cinema, todas as artes eram melhores.

— Cara, o que você tomou pra pensar nisso?

— O que eu tomei? Eu tomei banho! VOCÊS NÃO TÃO PRESTANDO ATENÇÃO!

(para a Tatiana Sendin, que falou que eu devia escrever um texto sobre as ideias que tenho no banho)

A conversa que deu origem ao texto