No começo, ficou todo mundo meio sem acreditar. Parecia um sonho. Depois de tanto tempo fechados em casa, finalmente chegava o final da quarentena.
— Acabou! — gritou um na rua. Outro, outro. Uma senhora da janela. — Acabou!
A humanidade podia enfim respirar. Melhor: respirar sem uma máscara na cara. A vacina demorou, mas saiu. Meses depois, o primeiro antiviral eficaz contra o novo coronavírus. Com uma esforço tremendo de governos, corporações e indivíduos de todo o globo, a doença foi erradicada do planeta.
Quando saiu a notícia, todos ficaram desconfiados. Ninguém sabia mais como sair à rua, como respirar sem duas camadas de algodão separando o rosto da atmosfera. Aos poucos foram saindo. Um, outro, outro. Acabou! Nas ruas e calçadas, começou um movimento espontâneo: pessoas jogavam suas máscaras de todos os tamanhos e formatos, com todas as estampas, despejavam álcool gel sobre elas e acendiam o fogo. Nunca mais isso.
— Vou ficar três meses sem lavar a mão! — disse um.
— Eu não preciso mais dar banho nas minhas compras! — se deu conta uma moça, maravilhada.
E a alegria quando se deram conta de que era possível novamente tocar outras pessoas? Estranhos se abraçavam e beijavam na rua. Divórcios de quarentena se desfaziam, reconstruindo casamentos. Casais de namorados separados pela pandemia tiravam o atraso de meses de desejo represado.
Foram duas semanas de glória e esperança no futuro da humanidade. A vida seria melhor, mais leve, mais solidária. Velhos rancores se amainaram. Armistícios foram declarados. Dívidas, perdoadas. O otimismo geral refletiu no mercado financeiro. Havia no ar uma promessa de prosperidade inédita na história humana.
Aos dias 23 do mês de março de 2021, às 9 horas e 30 minutos, me dirigi juntamente com meus homens ao estabelecimento do tipo shopping center ██████████ Shopping, no bairro de ████████ desta capital, para os procedimentos de costume.
Como é do conhecimento de todos, o governo do estado d█ ███████████ decretou em junho de 2020 a reabertura dos shopping centers do estado. À época, a decisão foi recebida com críticas, que se transformaram em louvores à argúcia do governador assim que o plano foi revelado.
Nosso papel é ir duas vezes por semana aos estabelecimentos para levar mantimentos aos confinados, monitorar os doentes, retirar e incinerar os mortos. Em fevereiro deste ano, o comando da Polícia Militar mudou minha escala. Solicitei aos superiores que revissem a decisão, já que havia conflito pessoal.
Como é do conhecimento de todos (agora), meu pai, o coronel reformado do Exército Brasileiro ██████ ██ ████████, é um dos confinados no ██████████ Shopping desde julho do ano passado. Em momento algum desde então eu tentei usar meu cargo ou qualquer influência que pudesse ter para resgatar meu pai, como o fizeram muitos colegas com parentes, amigos e cônjuges. Se o coronel quis furar a quarentena e caiu na armadilha do Estado, eu, como cidadão e policial militar, devo aceitar seu destino. Não significa, no entanto, que não me preocupe com o bem estar dele. Por isso solicitei repetidas vezes que o referido estabelecimento comercial fosse excluído de minha escala, mas sem sucesso.
Sendo assim, no dia supracitado, eu e meus homens fomos ao estabelecimento para os procedimentos de rotina. Tocamos a sirene de aviso antes de abrir a porta lateral, esperamos 30 segundos conforme determinado pelo protocolo, verificamos nossos trajes de proteção, nossas armas, e entramos.
Tudo estava dentro da normalidade. Os confinados encostados nas paredes de costas para nós. Saímos pelas áreas pré-determinadas para contagem, e recebemos as informações dos líderes indicados para cada piso do shopping. Na semana anterior, eles eram 547. Agora eram 522: 24 haviam morrido, e uma confinada dera à luz um casal de gêmeos. Os recém-nascidos passavam bem. O líder do piso nos entregou uma lista de necessidades [anexa]: fraldas, fórmula, vacinas. Um dos homens pegou a lista e prometeu fazer o possível. Passei para ver os gêmeos. A menina com 53 cm de comprimento, 3,760 Kg de peso. O menino, 51,5 cm, 3,510 Kg. A mãe os estava amamentando normalmente. O pai: desconhecido. Essa gente vive de qualquer maneira.
Estava eu saindo do quiosque de açaí que a recém-mãe tinha escolhido como seu berçário quando ouvi um grito: “R█████!”. R█████ era meu apelido de infância. Olhei na direção do grito e vi um velho que custei a identificar. Usava cuecas samba-canção ainda com o dispositivo antifurto da C&A pregado ao cós, e uma jaqueta muito maior do que ele, fechada até o pescoço. Meu pai perdera muito peso. Os joelhos pareciam bolas de bilhar. Os ossos da face quase furavam a pele seca. Ele sorria enquanto vinha na minha direção, de braços abertos.
Os confinados não podem se aproximar da equipe de apoio. Todos eles sabem disso desde o começo. Os que tentaram, conheceram o protocolo de segurança: um tiro para cima, de aviso, o segundo tiro para abater. Era meu pai, mas a segurança de todos estava em jogo.
— Coronel! — usei a patente para apelar aos brios do velho. — Afaste-se.
Ele continuou na minha direção, o sorriso mais largo ainda, os braços mais abertos. Dei o tiro para o ar, ele nem piscou. Continuou vindo na minha direção. Dei a ordem ao soldado mais próximo para se preparar para alvejar o coronel. Ele hesitou. Sabia que era meu pai. Eu mesmo atirei.
O que veio depois já é conhecido dos senhores: diante de meus olhos, meu pai explodiu. Perdi seis dos meus homens nesse dia. Outros confinados morreram. A mãe dos gêmeos morreu junto com o filho que estava amamentando. A menina sobreviveu.
Bolas de tênis, muitas cabeças de palito de fósforo, pregos, e dias de trabalho paciente: isso foi tudo de que ele precisou para construir seu explosivo de impacto [foto anexa]. Material que havia de sobra no shopping. Com isso e os anos de experiência nas Forças Armadas, meu pai morreu e levou junto com ele doze pessoas, ferindo outras 23.
Depois de chamar reforços para auxiliar na limpeza e remoção de mortos e feridos (confinados para a incineração, soldados para o IML), perfilamos os confinados para contagem e interrogatório [vídeo anexo]. Todos negaram participação ou conhecimento do ato terrorista do coronel. Mas quando saímos para o estacionamento, nossas três viaturas estavam com os pneus furados [foto anexa]. As câmeras de segurança do shopping, descobrimos então, estavam inutilizadas [foto anexa].
Como é do conhecimento de todos, o conflito recrudesceu no último mês. Outros atentados ceifaram vidas de soldados e oficiais. Bombas de bolas de tênis e de produtos de limpeza, armadilhas com objetos perfuro-contundentes, projéteis improvisados com bolinhas de gude e parafusos. No Shopping ██████ Parque, em ██████████, o sargento L██████ morreu junto com dois soldados, esmagados por um piano de cauda lançado da praça de alimentação até o primeiro piso. No ██████ Center, quatro soldados foram sacrificados ao se arriscarem numa escada rolante que os confinados sabotaram. Adolescentes com lança-chamas feitos de spray de cabelo conseguiram ferir gravemente cinco homens, antes de serem abatidos.
Dado o exposto, minha recomendação é que deixemos os confinados à própria sorte. Se não podem viver em sociedade, que sejam dela definitivamente excluídos. O investimento do Estado deve ser direcionado para o reforço da segurança dessas construções, para que ninguém delas escape.
É o relatório.
Tenente R█████████ ██████ ██ ████████ ██º Batalhão da Policia Militar do Estado d█ ████████████ 25/03/2021
ADENDO: As cinzas de meu pai, o coronel reformado██████ ██ ████████, foram misturadas às cinzas de todos os outros confinados mortos, e lançadas ao vento. Repilo todos os rumores de que eu as teria levado para casa, ou dado a elas outra destinação. Não aceito e nem pratico tratamento diferenciado motivado por parentela, amizade ou afinidade. Todos os que afirmarem o contrário terão de prová-lo em juízo.
A primeira sensação é a luz atravessando as pálpebras, uma luz tão intensa que ofusca os olhos fechados. A segunda sensação é uma dor excruciante no tórax. Você quer gritar, não consegue. Tenta se mexer, se levantar, o corpo não responde. Decide abrir os olhos, mesmo com a luz: impossível. Ao redor, bipes, vozes, passos abafados. Alguém mexe no seu peito. Não: alguém mexe dentro do seu peito.
Você se lembra: “hoje em dia o risco é mínimo”, eles disseram. Transplante de coração. Você vinha se preparando para o pior, mas nunca ia imaginar algo assim. Seu cérebro é um celular sem crédito nem WiFi, que recebe chamadas e mensagens, mas não envia nada.
Com um esforço imenso, você consegue abrir um pouquinho os olhos. A luz é desesperadora, a dor é muito mais. No canto da visão o cirurgião tira a máscara. Você o reconhece: Dr. Orestes, o do risco mínimo, balança a cabeça e fala um horário. Está pronunciando sua morte. Você tenta mexer um dedo, piscar os olhos, qualquer sinal que possa chamar a atenção de alguém. Nada. De puro choque e desespero, você desmaia.
Quando acorda, percebe com alívio que consegue se mexer. Mexe os dedos dos pés, das mãos, pisca os olhos. Está escuro, aconchegante, o travesseiro é macio. Quer espreguiçar, mas não tem espaço. Explora ao seu redor. Os espaço é mínimo. Você tenta erguer a cabeça e bate a testa na madeira.
Minha geração inteira era louca por ele, escutava o tempo todo, só eu era indiferente. Foi uma febre na minha época, e posso dizer que passei incólume.
Acho que fui um adolescente chato, sei lá. Metido a besta. Só queria saber dos americanos, dos ingleses. Meus pais diziam que eu devia valorizar o produto nacional, e eu nem dava bola.
Não sei explicar o porquê. Talvez o jeito dele de ficar parado recebendo o amor da multidão, o olhar num ponto fixo do espaço. Talvez da voz, que eu achava dramática demais, meio ridícula. O estilo dele também não me agradava. Talvez minha implicância viesse das pessoas na plateia: rapazes de olhos brilhando, meninas aos gritos e prantos. Achava tudo aquilo uma histeria, uma bobagem, por um cara que nem era lá essas coisas.
Fiquei triste quando ele se matou, sim. Um cara na idade dele meter uma bala na cabeça, é triste mesmo. Mas isso não me fez mudar de opinião. Não é porque o cara morreu que eu vou começar a gostar dele. Muitos amigos começaram até a relativizar: diziam que ele tinha se afastado da proposta inicial, traído o movimento, que o sucesso tinha subido à cabeça. A mim, era indiferente: não gostava antes, não passei a gostar depois.
Mas antes disso, meu Deus, que inferno! Como único a não ser picado por esse bichinho, eu me sentia excluído. Quando ele fez a turnê pela Europa, vários amigos meus foram na onda. Tem um que jura até hoje que acompanhou o cara em todas as cidades. Ninguém acredita, mas ele insiste. É patético.
A turnê foi aquela loucura que todo mundo lembra. Polônia, Áustria, Tchecoslováquia (naquela época ainda era Tchecoslováquia). Minha esperança era que ele fracassasse na França. Franceses são nacionalistas e blasé, jamais aceitariam produto estrangeiro assim. Para meu desespero, até os franceses se renderam.
Bom, mas aí aconteceu tudo aquilo que vocês sabem, ele deu um tiro na cabeça e encerrou a carreira prematuramente. Os fãs foram deixando ele de lado, tinham até vergonha de seu entusiasmo adolescente. Agora, tantos anos depois, vejo um revival daquela idolatria. Acho uma bobagem. Ele era ridículo naquele tempo; o é muito mais agora. Sempre preferi os americanos, os ingleses. Roosevelt e Churchill eram os caras.
— Por aí onde, menino? Os bichos tão morrendo de fome.
— Que drama, mãe! Eles comeram de manhã…
— Eu já te falei que precisa ter horário pra tudo: pra dar comida, pra limpar o curral, pra trocar a palha do estábulo… E você passeando. “Por aí.” Por aí onde? Já te falei que é perigoso. A gente não sabe o que tem pra lá.
— Se todo mundo pensar assim, a gente nunca vai saber o que tem nesse planeta.
— A gente não precisa andar por aí pra saber. Tem um monte de sonda lá pra dentro, tem satélite em órbita, justamente pra isso. Os cientistas lá na base exploram o planeta e mandam informações pra gente. O nosso papel é colonizar.
— Você e o pai se contentam com pouco, né?
— Com pouco? Com POUCO? Menino, você sabe o que isso aqui significa? Quanto sacrifício, quanto dinheiro? Duzentos anos atrás ninguém nem pensava em colocar uma pessoa no espaço. Faz só 150 anos que a gente começou a explorar o nosso sistema solar.
— Nossa, 150 anos, praticamente ontem…
— Eu ODEIO quando você é debochado. 150 anos é muito pouco no contexto histórico. Uma espécie sair da limitação do seu planeta para o satélite mais próximo, depois para os planetas do seu sistema solar, depois conseguir colonizar um planeta tão longe de casa, em outro sistema solar… Você acha pouco?
— Ah, sei lá.
— “Ah, sei lá”… Você nunca sabe de nada. Só fica por aí se arriscando à toa. Vou falar de novo: nossa área é essa aqui, entre a montanha e o mar. Não temos autorização pra subir em montanha, pra passar da montanha pra lá, nem de entrar no mar e sair navegando por aí. É perigoso. O governo bate nessa tecla sempre: é perigoso. Tá entendido?
— Mas mãe…
— Tá entendido?
— Tá…
— Agora vai alimentar os bichos. Aproveita e vê como tá a fêmea prenha lá no estábulo. É capaz de já ter parido, e você não estava aqui pra ajudar.
— Mãe, tá longe ainda. Eu tô acompanhando o tempo, falta uma semana ainda… Uma semana lá de casa, que aqui é… Peraí… 47 dias? Não. 46. Faltam 46 dias pra ela parir.
— Tá vendo como você é? Você é estudioso, atencioso com os bichos, sabe cuidar deles, faz a ordenha, leva os machos para cobrir as fêmeas no tempo certo… Só precisa sossegar o facho.
— Tá bom, mãe.
— Te amo.
— Também te amo… Mas você não quer saber do que eu achei hoje?
— Não.
— Certeza? Cê vai ficar doida.
— Ai, ai… Vai, fala.
— Eu subi naquela montanha ali. Aquela pra direita, não a outra.
— Quê?! Até lá em cima?
— Mãe, relaxa. Quer saber a história ou não? Então… Subi lá. Tem um resto de caminho no meio da mata, acredita? Acho que o pessoal que veio aqui construir antes da colonização começou a fazer e depois desistiu. Então fui seguindo esse caminho, subindo, subindo… Cheguei lá em cima e tinha uma estátua lá!
— Estátua? Tipo estatueta?
— Não! Estátua grande, do tamanho de um prédio! Tombada de lado, coberta de plantas, já meio enterrada.
— Estátua de quê, menino?
— Aí é que tá, mãe! Eu acho que é uma estátua de bicho.
— De que bicho?
— Dos nossos, mãe! Do gado!
— Menino, quem é que ia fazer estátua de gado, ainda mais do tamanho de um prédio?
— Mãe… Essa estátua é antiga. Não foi a gente que fez. É de um bicho macho, com a cara peluda. Só que ele tá de roupa. E de braços abertos assim. Acho que a estátua ficava em pé no alto da montanha, devia ser impressionante.
— Mas quem fez uma estátua dessa, menino? Uma estátua de bicho vestido, do tamanho de um prédio? É piada?
— Mãe… Eu acho que isso é de antes da gente chegar, antes das sondas, dos satélites. E se foram os bichos que fizeram?
— Ah, pronto… Lá vem você com esse papo de novo.
— Mãe, eles são inteligentes! Cê não vê como eles olham pra gente? Às vezes eu chego no estábulo à noite, acendo a luz, e parece que eles estavam cochichando alguma coisa, sabe? Conspirando, sei lá.
— Seu pai não devia ter deixado você ficar com aquele de bicho de estimação. Bicho tem que ficar lá fora, não dentro de casa, dormindo na cama da gente. Olha no que dá: tá mexendo com a sua cabeça. Eles são bichos. É gado. Dão leite e carne pra gente. Mais nada. Você precisa entender isso.
— Mãe, mas a estátua…
— Eu não quero mais ouvir esse papo. Não era nem pra você ter ido até a montanha, muito menos ter subido. Não quero saber. E seu pai já falou: se você não seguir as regras aqui, vai voltar pra casa. É isso que você quer?
— Não…
— Então sossega e vai cuidar dos bichos. E traz aquele filhote que já tá gordinho, que hoje seu pai pediu pra comer uma carne macia.
Foi ali, bem ali naquele balcão de bar, no fim de uma noite ruim, que Gustavo soube que estava apaixonado. Ela continuava com a história (“O nome dele é Walt Jabsco. Se você falar o nome, ele vai embora. Walt Jabsco. Não esquece.”), e ele fascinado mais pelo timbre da voz, pelo corte de cabelo assimétrico com uma mecha que caía sobre a testa e pendulava quando ela gesticulava, pelo nariz grande e um pouco torto para a esquerda, pelos olhos castanhos que brilhavam de álcool e entusiasmo pela lenda urbana do homem que flutuava.
— Você não tá nem escutando né, né?
— Claro que sim — disse Gustavo, só querendo que os lábios carnudos sem batom não parassem de se mover. — Esse cara… como é o nome?
— Walt Jabsco.
— Esse Walt aí, um cara branco, alto, de terno e gravata e chapéu fedora…
— Fedora não: pork pie. Igual o do Buster Keaton, mas de feltro.
— Esse cara de chapéu de Buster Keaton… Faz o quê? Visita as pessoas? Tipo uma Testemunha de Jeová? “Bom dia, você teria um minuto para a palavra de Walt?”.
— Você não leva a sério!
— Levo, claro que levo, Karina! Seriíssimo. Mas é que já bebi um pouco demais, estou com dificuldade de gravar os detalhes. Conta de novo.
— Esse cara. De chapéu pork pie. Terno completo. Óculos escuros. Meia branca, sapato preto. — ela enumerava cada item da descrição levantando um dedo da mão esquerda, e Gustavo se apaixonava mais — Walt Jabsco. Ok? Ele toma a forma que quiser.
— Tipo Super Gêmeos? “Forma de um balde de gelo!”
— Não, tipo… Forma de gente. Geralmente ele se apresenta como enfermeira, ou médico. Porque é assim que ele se alimenta, percebe? Escolhe um hospital e sai fazendo a ronda pelos quartos. Quando escolhe um paciente, ele fecha a porta e se transforma de volta em Walt Jabsco. Terno e gravata. Chapéu pork pie. Sapato preto, meia branca.
— Tipo Michael Jackson, mas em vez de fazer a inclinação antigravidade e Moonwalk, ele levita.
— Isso. E aí quando ele levita, pode esquecer. Se ele está levitando, é que não precisa mais se esconder de você. Chegou sua hora.
— O quê? A pessoa morre?
— Morre. Ele prefere pessoas não muito doentes, mas que também não levantem suspeitas. Todo mundo tem uma história assim, já reparou? “Minha mãe ficou dois meses no hospital, estava se recuperando, de repente teve uma piora de madrugada e morreu”. “Meu tio já estava bem, o médico falou que teria alta no dia seguinte. Infarto fulminante. Do nada.” Chamam isso de “a melhora da morte”. É como uma lâmpada daquelas antigas, incandescentes, que brilhavam mais forte logo antes de queimar. Mas não é isso. É…
— … Walt Disney.
— Jabsco.
— E por que ele pega esse pessoal e não quem já está mesmo nas últimas? Seria até um ato de misericórdia.
— Porque é disso que ele se alimenta, entende? Da… vitalidade da gente, eu acho. Pouca vitalidade, poucos nutrientes. O cara que está no hospital já se recuperando é comida de hospital: sem gosto, pouco calórica, mas nutritiva. O paciente desenganado, em coma, é um chuchu desidratado: não tem sustança. — Ela faz mesmo cara de quem mordeu um pedaço de chuchu seco, e o coração de Gustavo perde o compasso.
— Mas aí esse… esse SER aí passa a vida só na base da comida de hospital?
— Não lembro direito. É só uma lenda urbana, Gustavo. Eu só sei que tá muito barulho aqui e eu quero ir embora…
— Tá bom. Eu chamo um Uber pra você…
— Eu moro a duas quadras daqui. Você me acompanha até lá?
— Depende. Você vai me convidar para subir?
— Talvez… Mas não se empolga, tá? Tô bêbada e exausta. Vamos conversar mais um pouco e dormir. De acordo?
— Cem por cento.
Conversaram, sim, mais um pouco. E dormiram. Mas não só. Gustavo estava apaixonado e dormiu sorrindo. Acordou com o sol entrando pela janela. Virou-se para o lado. Estava só na cama.
— Karina?
— Aqui na cozinha! Você come ovos no café da manhã?
Preparando o café da manhã! Gustavo já imaginava os filhos que teriam. Levantou-se, vestiu as calças, foi até a cozinha.
— Eu normalmente acordo sem fome, mas hoje eu poderia comer um boi.
— Eu também. Falando em fome, lembrei o resto da história do Walt. Ele é tipo o Renfield… Cê leu Drácula? Ele é que nem o Renfield, que só come rato, mosca, aranha. Assim é o Walt com pacientes de hospital. Só que isso não basta, né? De vez em quando bate a fome de verdade, e ele precisa de uma refeição completa. Você já fez dieta? Sabe quando você tá há duas semanas só na saladinha de alface e peito de frango grelhado? De repente você PRECISA de um doce, ou de uma lasanha, ou de churrasco. E aí não tem quem te segure, e é por isso que dieta não funciona. Bom, é assim com o Jabsco. No dia que bate a fome, ele precisa encontrar uma refeição decente, daquelas para se esbaldar.
— A não ser que a pessoa fale o nome dele.
— Exato. Aí ele vai embora. A NÃO SER que ele já esteja levitando. Tarde demais. A família lamenta o morto. “Tão novo, morrer desse jeito…” E o Walt, depois de uma refeição dessa, fica igual uma sucuri que comeu um bezerro: passa uns dias só descansando, fazendo a digestão. Depois de um tempo bate uma fomezinha, ele escolhe um hospital e começa tudo de novo. Até o dia de furar a dieta.
— Esse papo tá me deixando com mais fome. Vou botar a mesa na sala enquanto você termina aí.
Gustavo pegou pratos, xícaras, talheres para levar até a sala. No caminho, deu um beijo na bochecha de Karina. Linda, linda.
— Minha barriga tá roncando, credo! — ele falou enquanto punha a mesa — tô parecendo o Michael Jackson assombrado depois de um mês de comida de hospital.
— Também tô morrendo de fome! — gritou Karina da cozinha. — Vem aqui ver se tá bom.
— Tô indo.
Gustavo foi até a porta e parou.
Um homem estava parado no meio da cozinha.
De terno e gravata. Um chapéu de aba curta e copa achatada, com uma fita em volta. Como o do Buster Keaton, só que de feltro preto. Sapatos pretos, meias brancas, óculos escuros.
— Muita fome…
A voz de Karina saiu da boca do homem. O homem. Como era o nome dele? Wagner? Walter? Um sobrenome eslavo ou coisa assim. Com G, ou J. Ou seria D? O nome dele. Gustavo precisava lembrar o nome dele.
— Wallter… Não, Walt! Walt… — à cabeça dele só vinha “Disney”.
Walt Jabsco sorriu e colou os braços aos lados do corpo. Pareceu crescer diante de Gustavo. Dois centímetros, cinco, dez. Não, não crescer.
I’ve got a mind that can steer me to your house And a heart that can bring you red flowers My intentions are good and earnest and true But under my hood is internal combustion power (Cake, Satan Is My Motor)
Eu, Marco Aurélio, 45 anos, sou uma pessoa trans
Foram anos, desde a adolescência (pelo menos!), me escondendo. O medo do que iam pensar, do que iam dizer, da reação da família, tudo isso me mantinha trancado num lugar onde não estou confortável, atrás de uma fachada que não me representa. Décadas sufocado, escondido, aterrorizado. Talvez você que está lendo esteja passando por isso. Deixa eu dizer uma coisa: não vale a pena. Você merece ser feliz do jeito que você é.
Se você nunca passou por isso, já parou para pensar se causou essa dor a outra pessoa? É hora de encarar seu próprio preconceito. É hora de rever suas convicções. E peço a você que leia este texto (se é que leu até agora) de mente aberta.
Por fora eu sou um homem pardo, gordo, calvo e de barba. Mas isso, minha aparência, não diz nada sobre minha real identidade. Porque por dentro eu sou outra coisa.
Por dentro eu sou um Jeep Willys 51.
Eu sou uma pessoa trans.
Transformer.
Ah, nem precisa dizer nada, já sinto seu julgamento daqui… Que feio, sua mente aberta durou menos de um minuto! Você não está preparado para abraçar o diferente. Que pena. Continue lendo, se quiser, mas já adianto que o que vem depois vai chocar ainda mais a sua sensibilidade burguesa.
Como eu disse, é algo que carrego comigo desde a adolescência, e só consegui carregar porque sou um veículo robusto, com tração nas quatro rodas, que encara qualquer terreno. E tenho uma história de batalhas, claro. Fosse eu um Corsa 1.0, sabe lá se teria suportado. Provavelmente teria fundido o motor antes da vida adulta.
Como sou forte, sobrevivi. Aos 25 anos, descobri a comunidade transformer na internet. Somos muitos! Se você nunca ouviu falar, é porque o Brasil é um país muito atrasado. Mas marcamos presença aqui, sim. Em São Paulo, onde moro, há um grupo pequeno, mas fiel, formado por pessoas que se identificam como carros de passeio, utilitários, motocicletas. Tem até um microônibus e um senhor simpático que se descobriu recentemente um Gordini 1965.
Em outros países, nossa comunidade é mais forte e organizada. Nos Estados Unidos há um rally anual só para pessoas transformers. Em Praga há faixas exclusivas para nós. Na Rússia, o Dr. Dimitri Ivanovitch Kolinov abraçou a comunidade e é hoje o maior especialista em cirurgias de transição de transformers no mundo.
Só no Brasil que é essa vergonha. Eu já tentei e recorri várias vezes ao Detran, e nada de aceitarem meu apelo por um número de chassis e um Renavam. Desconfio que há um tanto de etarismo aí também: como sou um modelo antigo, estaria isento de IPVA. Se eu fosse um Renegade 2019, certeza que as coisas seriam mais fáceis. Nem precisa tanto. Até se eu fosse um Celta mais novo. Se bem que há muito preconceito de classe também, até mesmo entre nós. Tem um Porsche Carrera do Rio de Janeiro que não fala com ninguém, se acha melhor que os outros. Pior é que é um fodido, de família falida. Aquele senhor que eu falei, o Gordini 65, sempre diz do Porsche (não na cara dele, claro): “Esse aí bebe etanol batizado e arrota gasolina azul.”
Eu não sei o que vão achar dessa minha revelação. Minha mulher, meus irmãos, minha mãe, meus amigos e colegas de trabalho: todos vão ficar chocados (mas nem todos surpresos). Tudo bem, é algo que tenho que enfrentar, e sem esquentar demais o motor com isso. Como disse Henry Ford (ele é tipo um deus na comunidade transformer), “A preocupação é o maior desperdício de energia que existe”.
A partir de agora, vou me ocupar da minha felicidade. Já tenho algum dinheiro guardado para minha transformação. A primeira etapa vai ser por aqui mesmo. Quero instalar um santo antônio, faróis de milha, talvez um reboque. Depois, se tudo der certo, vou viajar à Rússia para me consultar com o Dr. Kolinov. Lá poderei trocar meus membros desajeitados por rodas e pneus, do jeito que era para ser. O Dr. Kolinov avançou muito em suas pesquisas, e vai avançar mais. Está em teste uma substituição do sistema digestivo humano por um de injeção eletrônica. Há boatos de um transformer ucraniano com uma bomba de combustível no lugar do coração. De um angolano que instalou blindagem e lagartas, e entrou para o exército de seu país como veículo de combate anfíbio (é um excelente nadador). De uma italiana que se identifica como Romi-Isetta e está fazendo 12 quilômetros por litro. Na cidade!
Essas histórias me enchem de esperança, e deveria nos encher a todos. Há muita gente por aí ainda no armário (ou na garagem, como gostamos de dizer na comunidade). Eu só quero ser feliz do jeito que eu nasci para ser. E não é o que todos queremos?
Sua língua parece estranha dentro da boca. Você detesta notar a própria língua. Assim que notada, ela ganha volição. Ela parece grande demais para a boca, uma lesma úmida e obesa. Onde é o lugar certo da língua ficar? Grudada no céu da boca? Com a ponta nos dentes? Na… parte de baixo da boca? Você tenta lembrar o nome certo do lado oposto ao céu da boca. Chão da boca? Piso da boca?
Perceber o próprio corpo funcionando é estranho. A respiração, por exemplo. Ato involuntário, função do tronco encefálico, a parte mais primitiva do cérebro. É automático. Então por que você está reparando na sua respiração agora? Você pensa se está respirando certo. Se está fazendo barulho. Se está oxigenando direito o… O quê? O sangue? Como funciona esse negócio de respiração? Sabe Deus…
Há coisas que estão ali sem que você se dê conta, e você se irrita quando as percebe. O nariz está sempre no seu campo de visão. Já notou? Pois notou agora, e a única coisa que você vê é seu nariz. Ele se agiganta, toma a paisagem, ocupa a tela.
É estranho como o cérebro ama a obsessão. Considere o ohrwürm, earworm, verme de orelha: de repente você está com uma música na cabeça. Ou pior, um trecho de música. A mente está funcionando bem, e de repente vem o bug, o verme, em forma de LA LA LARANJEEEEIRA SATISFEITO SORRI ou NOSSA, NOSSA, ASSIM VOCÊ ME MATA ou Ô ANNA JÚLIAAAAA-AAAAAA-A-AAAAA-AA-AAAAAA ou aquele DERINDÁUN DÁUN DÁUN, DERÊ, DARADANDÁUN, DERIDADÁUN DÁUN do Skank. Pronto: a música se plantou na sua cabeça, vai ficar tocando em loop, e você está preso a ela.
Que inferno.
Você percebe que está sentado torto. Isso é péssimo para a coluna. Você se ajeita. A postura está certa agora? O pé está plantado no chão? A coluna está ereta? Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo. Se você conhece essa música do Walter Franco, ela está na sua cabeça agora.
O cérebro é uma doideira.
Mesmo as coisas que você evita pensar podem ser plantadas na sua cabeça. A imagem dos seus pais transando: por que você pensaria nisso? Por que você imaginaria seus pais nus na cama de casal da casa onde você cresceu, o pênis ereto de papai penetrando a vagina de mamãe? Isso é doente, para de pensar nisso! Pense em outra coisa, rápido! Pense na sua língua, sinta como ela é estranha dentro da boca. Evite pensar na língua do seu pai fazendo você-sabe-o-quê.
EU FALEI PARA EVITAR!
Pense em outra coisa, qualquer coisa. Pense nos seus mamilos roçando na roupa. Pense numa coceira bem no meio das costas, justo naquele ponto inalcançável que faz você esfregar as costas na quina da parede. Pense naquilo que seu pai te disse há tantos anos, mas que ainda dói…
Pense naquilo que você falou muito tempo atrás, que até hoje te mantém acordado. Que vergonha!
Pense no tanto que você é uma fraude. Mais cedo ou mais tarde eles vão te descobrir.
Há quanto tempo você está sem piscar? Taí outro movimento involuntário. Piscar é importante para limpar e lubrificar os olhos. Esse ato involuntário desliga temporariamente o circuito visual do cérebro, por isso você pisca e nem nota. Exceto se o fizer de forma voluntária, claro.
Por que você está piscando?
Onde está sua língua agora?
Por que é que dói tanto quando a gente morde a língua sem querer, mas dói nada quando morde de propósito?
Tem uma frase que eu li no Insta semana passada: “Se 10 pessoas estão sentadas à mesa, chega um nazista e ninguém se levanta, há agora 11 nazistas sentados à mesa”. Era mais ou menos por aí, não lembro direito. Mas olha quantas profundidades se escondem por trás de uma frase simples, né? Simone de Beauvoir disse que o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos. Eu cansei de ser cúmplice faz tempo. Vocês sabem como eu sou, né? A Sandrinha e a Fê vivem dizendo que sou louca, que arrumo confusão. Mas o que eu vou fazer? Daqui do meu lugar de privilégio como mulher branca eu posso criar condições de combate à injustiça.
O cara de ontem, da kombi, que o diga.
Eu estava vindo da feirinha do MST, sabe aquela? Comprei berinjela, limão, alho… Tudo orgânico, pra fazer um babaganush mara. Coloquei na cestinha da bicicleta e estava indo para o Santa Luzia comprar pão sírio e tahine. Parei um pouco pra descansar e tirar fotos da pracinha. Fim de tarde, aquele pôr do sol maravilhoso de inverno, crianças brincando… É lindo aqui no bairro porque as crianças vão sozinhas brincar na praça. Ao mesmo tempo em que eu gosto de me sentir assim segura, fico pensando no nosso privilégio. É preciso reconhecer o privilégio todo dia. Nesse grupo, mesmo: eram, sei lá, sete ou oito crianças, e só um menino negro. Fiquei pensando se era filho de alguma empregada. E aí fiquei pensando no racismo estrutural que me fez pensar nisso. Ele podia ser de família rica também. Filho de algum jogador de futebol. Não que o negro só enriqueça jogando futebol. Esse é outro pré-conceito que a gente carrega e não percebe. O lugar do negro é onde ele quiser. Mas enfim, nem é essa a história.
De repente para uma kombi. Toda amassada, farol quebrado, uma chave-de-fenda segurando o vidro, um monte de ferrugem. Aí cês não vão acreditar: desce um cara todo esquisito, olhando desconfiado pros lados. Todo amarfanhado, barba desgrenhada. Careca-cabeludo, sabe? O cara é careca aqui em cima, aí em volta da cabeça é um ninho de cabelo. Muito esquisito. Não pela aparência, que eu nem reparo nessas coisas, mas pela atitude. Bem o jeitão de quem vai fazer alguma coisa errada.
Aí o cara pega e me abre aquela porta de correr da kombi, e lá dentro tem o quê? Um monte de doce, balões, brinquedos. Fiquei só olhando. As crianças, claro, foram chegando perto. O carequeludo… Quê? Carequeludo é o careca-cabeludo, ué. O carequeludo mudou de postura na hora! Ficou mais relax, sorridente. Eu não conseguia escutar o que ele dizia pras crianças, mas devia ser muito engraçado, porque elas riam cada vez mais alto. Ele dava doces, mostrava os brinquedos, brincava com elas.
E aí vocês não vão acreditar. O cara fez um gesto assim, de convite, e as crianças foram entrando na kombi. Duas subiram no banco da frente, as outras foram entrando atrás… Só uma criança não entrou, sabem qual? Bem o menino negro! O cara já estava contornando a kombi para sentar no banco do motorista, mas foi aí que eu intervim.
— Moço! Ô, moço! Ô, careq… — quase que eu falei, Fê! — Ô, da kombi!
Cês precisavam ver a cara de assustado dele. Machinho nunca espera ser confrontado por uma mulher, né? Ainda mais esse tipo. Ele ficou paralisado ali. Cheguei mais perto, peguei e falei assim:
— Cê tá louco?! — eu falei — Em plena luz do dia, acha que ninguém tá vendo? Doente!
Aí ele:
— Moça, eu s-só estava…
Aquilo me ferveu o sangue, menina! O cara ali gaguejando, suando. Não era o bonzão? Peguei o menino negro pela mão, perguntei o nome dele. Pior é que depois esqueci. Adilson, Róbson… Um nome desses, bem de… bem brasileiro. Não importa o nome, ali eu senti uma conexão forte com o Edmilson, ou Edilson. Trouxe ele pra pertinho de mim.
— Qual o seu problema com esse menino?
— Moça, problema nenhum…
— É porque ele é NEGRO, né? Porque você é um RACISTA.
— Moça, pelo amor de Deus…
Típico, né? “Deus”. Tem que trazer religião pra conversa. Fiquei só esperando ele falar que tinha família. Família tradicional, claro. Alguém tem dúvida de quem ele votou em 2018? Não, né? Cidadão de bem…Eu continuei falando, virada no jiraya, daquele jeito que cês sabem que eu fico:
— Qual o problema com ele, hein? Você acha que ele é diferente dos outros? Que ele é inferior?
E ele:
— Não é racismo, que absurdo! Eu tenho vários amigos negros, inclusive. Só que para o que eu quero é complicado, eles correm muito…
Cês acreditam?! Estereótipo assim, na minha cara! O sangue me subiu à cabeça dum jeito… Dei um murro na porta da kombi.
— Abre essa porra. ABRE!
O cara, todo amuado, abriu a porta. Coloquei o Róbson no banco e falei pra ele:
— Vai, filho. Vai passear com seus amiguinhos. Não deixa ninguém te dizer que você é diferente, tá?
Aí me veio… Gente, nem sei explicar. Uma emoção forte, uma vontade de chorar. Aquele sentimento de ter contribuído, sabe? De ter feito a diferença. Não sei o que me deu, mas falei pro menino:
— Eu te amo, Róbson.
Gente, um negócio que eu nunca falei pra ninguém! Pra macho nenhum, nem pra minha mãe tóxica, nem pro meu pai minion… E ali estava eu, falando para um negri… para uma criança que eu a amava. E era de verdade, um sentimento puro.
O menino começou a chorar, emocionado também, enquanto eu fechava a porta. Foi tão lindo, uma pena eu não ter lembrado de fotografar.
O carequeludo gaguejou umas desculpas; ignorei. Ele entrou na kombi, deu a partida, foi embora com as crianças. Ele nunca vai esquecer minha cara.
Trancados no supermercado de prateleiras já vazias, esperamos o fim. Todo dia alguém faz a escolha entre ficar aqui e morrer de fome ou sair e se juntar aos mortos lá fora, ser mais um morto-vivo confuso e faminto por carne, mais um defunto a quem foi negado o descanso.
Eu ainda não decidi. Passo meus dias deitado sobre uma pilha de embalagens vazias, recapitulando o que nos trouxe até aqui. A epidemia. A doença espalhada sem controle. Os mortos sem conta, e depois a decisão de não contá-los. As primeiras notícias sobre os que se levantavam, contrariados por terem sua realidade negada. No começo virou piada. Boataria, fake news, sensacionalismo para dar clique.
Até o dia em que o morto mordeu o governador.
De repente estava ali, na nossa frente. Era um adolescente negro, magrinho. A pele ressecada tinha textura de pergaminho e cor de papelão molhado. Lembro de notar a terra no cabelo crespo e na roupa esfarrapada e pensar “mas nem pra tomar um banho” antes de me dar conta do que estava acontecendo. Ele mordeu o governador no topo da cabeça, como uma criança mordendo o maior pirulito do mundo. O tiro pegou bem no meio da cabeça do morto-vivo, mas era tarde. A transformação do governador foi imediata. Num momento estava fazendo duras críticas ao presidente que até tão pouco tempo atrás era seu aliado. No outro, era um ser de olhar vazio que rosnava. Ele ainda teve tempo de morder três repórteres antes de também ser alvejado.
(uma coisa é atirar num negrinho, coisa cotidiana, outra muito diferente é atirar no governador)
Mas aí já era o caos, a gritaria, uma orgia de mortos mordendo e criando outros mortos que mordiam e assim por diante.
Deixar de contar os mortos foi um erro. Tornados fantasia, exagero dos alarmistas, estatística falha, eles se rebelaram. Se a morte era mentira, então não ficariam deitadões esperando os bichos. Voltaram, fizeram esse estrago todo lá fora. Foi um erro, mas nem temos a quem responsabilizar. Segundo as últimas notícias que chegaram antes da internet cair de vez, o presidente era um morto vagando sozinho (nem mortos nem vivos queriam nada com ele) pelas ruínas de Brasília, comendo calangos e rosnando coisas sem sentido (certas coisas não mudam).
Olho lá fora e, de trás da porta de vidro, ela me olha. Uma menina que não deve ter mais de seis anos. Olhos fundos nas órbitas, dentes expostos pela boca já sem lábios, a cabeça com só alguns tufos de cabelo aqui e ali. Um coelhinho de pelúcia sujo abraçado com mãos ossudas sobre o peito.
— Está com fome, filha?
Ela me olha fixo. Sinto pena. Pobre mortinha que não pode descansar.
“Facada mal dada do caralho”, eu penso enquanto abro a porta.