Meu grito contra o preconceito

I’ve got a mind that can steer me to your house
And a heart that can bring you red flowers
My intentions are good and earnest and true
But under my hood is internal combustion power
(Cake, Satan Is My Motor)

Eu, Marco Aurélio, 45 anos, sou uma pessoa trans

Foram anos, desde a adolescência (pelo menos!), me escondendo. O medo do que iam pensar, do que iam dizer, da reação da família, tudo isso me mantinha trancado num lugar onde não estou confortável, atrás de uma fachada que não me representa. Décadas sufocado, escondido, aterrorizado. Talvez você que está lendo esteja passando por isso. Deixa eu dizer uma coisa: não vale a pena. Você merece ser feliz do jeito que você é.

Se você nunca passou por isso, já parou para pensar se causou essa dor a outra pessoa? É hora de encarar seu próprio preconceito. É hora de rever suas convicções. E peço a você que leia este texto (se é que leu até agora) de mente aberta.

Por fora eu sou um homem pardo, gordo, calvo e de barba. Mas isso, minha aparência, não diz nada sobre minha real identidade. Porque por dentro eu sou outra coisa.

Por dentro eu sou um Jeep Willys 51.

Eu sou uma pessoa trans.

Transformer.

Ah, nem precisa dizer nada, já sinto seu julgamento daqui… Que feio, sua mente aberta durou menos de um minuto! Você não está preparado para abraçar o diferente. Que pena. Continue lendo, se quiser, mas já adianto que o que vem depois vai chocar ainda mais a sua sensibilidade burguesa.

Como eu disse, é algo que carrego comigo desde a adolescência, e só consegui carregar porque sou um veículo robusto, com tração nas quatro rodas, que encara qualquer terreno. E tenho uma história de batalhas, claro. Fosse eu um Corsa 1.0, sabe lá se teria suportado. Provavelmente teria fundido o motor antes da vida adulta.

Como sou forte, sobrevivi. Aos 25 anos, descobri a comunidade transformer na internet. Somos muitos! Se você nunca ouviu falar, é porque o Brasil é um país muito atrasado. Mas marcamos presença aqui, sim. Em São Paulo, onde moro, há um grupo pequeno, mas fiel, formado por pessoas que se identificam como carros de passeio, utilitários, motocicletas. Tem até um microônibus e um senhor simpático que se descobriu recentemente um Gordini 1965.

Em outros países, nossa comunidade é mais forte e organizada. Nos Estados Unidos há um rally anual só para pessoas transformers. Em Praga há faixas exclusivas para nós. Na Rússia, o Dr. Dimitri Ivanovitch Kolinov abraçou a comunidade e é hoje o maior especialista em cirurgias de transição de transformers no mundo.

Só no Brasil que é essa vergonha. Eu já tentei e recorri várias vezes ao Detran, e nada de aceitarem meu apelo por um número de chassis e um Renavam. Desconfio que há um tanto de etarismo aí também: como sou um modelo antigo, estaria isento de IPVA. Se eu fosse um Renegade 2019, certeza que as coisas seriam mais fáceis. Nem precisa tanto. Até se eu fosse um Celta mais novo. Se bem que há muito preconceito de classe também, até mesmo entre nós. Tem um Porsche Carrera do Rio de Janeiro que não fala com ninguém, se acha melhor que os outros. Pior é que é um fodido, de família falida. Aquele senhor que eu falei, o Gordini 65, sempre diz do Porsche (não na cara dele, claro): “Esse aí bebe etanol batizado e arrota gasolina azul.”

Eu não sei o que vão achar dessa minha revelação. Minha mulher, meus irmãos, minha mãe, meus amigos e colegas de trabalho: todos vão ficar chocados (mas nem todos surpresos). Tudo bem, é algo que tenho que enfrentar, e sem esquentar demais o motor com isso. Como disse Henry Ford (ele é tipo um deus na comunidade transformer), “A preocupação é o maior desperdício de energia que existe”.

A partir de agora, vou me ocupar da minha felicidade. Já tenho algum dinheiro guardado para minha transformação. A primeira etapa vai ser por aqui mesmo. Quero instalar um santo antônio, faróis de milha, talvez um reboque. Depois, se tudo der certo, vou viajar à Rússia para me consultar com o Dr. Kolinov. Lá poderei trocar meus membros desajeitados por rodas e pneus, do jeito que era para ser. O Dr. Kolinov avançou muito em suas pesquisas, e vai avançar mais. Está em teste uma substituição do sistema digestivo humano por um de injeção eletrônica. Há boatos de um transformer ucraniano com uma bomba de combustível no lugar do coração. De um angolano que instalou blindagem e lagartas, e entrou para o exército de seu país como veículo de combate anfíbio (é um excelente nadador). De uma italiana que se identifica como Romi-Isetta e está fazendo 12 quilômetros por litro. Na cidade!

Essas histórias me enchem de esperança, e deveria nos encher a todos. Há muita gente por aí ainda no armário (ou na garagem, como gostamos de dizer na comunidade). Eu só quero ser feliz do jeito que eu nasci para ser. E não é o que todos queremos?

Deixe uma resposta