Da primeira vez que ouvi a frase do título, ela veio atribuída ao Pelé. Depois descobri que era de um certo Robson, jogador do Fluminense. Robson estava num carro junto com dois brancos. Um casal negro atravessou a rua sem olhar, e os dois começaram a gritar impropérios racistas. Robson pediu aos companheiros que parassem, porque racismo era coisa séria: “Eu já fui preto, sei o que é isso”.
O jornalista Mário Filho conta essa história no livro “O Negro no Futebol”. Procure “eu já fui preto” no Google e vai encontrar várias citações do texto, a maior parte delas falando da questão social x racial, de como o preto deixaria de sofrer racismo ao ascender socialmente etc.
Este texto não é um desses.
Pretos são 8,86% da população brasileira. Pardos, 45,06%. 45,22% dos brasileiros se dizem brancos, e eu chutaria que metade são pardos em negação. Pretos e pardos formam o grande grupo dos negros. Eu sou pardo, esse borrão de cor indefinida na Aquarela do Brasil.
Existe todo tipo de pardo. Tem aquele que bota um aplique e começa a falar que é preto. Tem aquele que já é preto mas ainda não sabe. Tem aquele que passa tranquilamente por branco. Tem o que acha que é branco. Tem até pardo supremacista branco.
O Brasil é inacreditável.
Como eu ia dizendo, sou pardo. Então quando eu digo que já fui preto é porque já sofri uns racisminhos aí pela vida. Não o RACISMO, aquele da violência e do ódio, mas o racismo da confusão, das coisas que presumem sobre mim por causa da minha aparência.
(Já fui chamado de macaco uma vez, mas foi tão engraçado que eu nem conto como racismo. Eu tinha 18 anos e dava aula numa escolinha de informática. Tinha um aluno surdo-mudo que fazia barulho a aula inteira: batucava no teclado, na mesa, no monitor. Surdo não tem noção do barulho que faz. Um dia eu pedi pra ele parar, que estava atrapalhando. Aí ele virou de costas para mim e… Sei lá, eu acho que ele pensou que estava balbuciando. Mas falou MUITO ALTO e com aquele sotaque de surdo: MÃ-CÃ-COOO. Eu deixei barato, mas depois desse dia eu vivia falando “ê, surdo filho da puta…”; a sala ria, o surdo olhava em volta sem entender nada, ria também. A gente faz o que pode.)
O resto é bobagem, mal-entendido, confusão besta.
Numa festa de aniversário da minha sobrinha, o segurança do condomínio falou para eu “encostar lá atrás, pra descarregar”. Demorei a entender. Ele achou que eu fosse fornecedor, não convidado. Eu dirigia um Corsa, botei na conta do carro. Mas não era. Anos depois, já dirigindo o carro atual (SUV daqueles bem de paulista, bancos de couro, câmbio automático), várias vezes em vários lugares eu ouvi “veio buscar quem?”. “Vim buscar tua mãe, pra levar ela pra dar na Cracolândia”, eu penso. Trabalhei para uma emissora aqui em São Paulo por um tempo, e toda semana um segurança diferente (mas sempre mais escuro do que eu) me perguntava isso. Ou então estava no estacionamento esperando o carro, chegava um cliente e me entregava o ticket. Essas coisas. “Você está aqui, você é dessa cor, tem essa boca e esse nariz, portanto é manobrista.”
Em loja de sapato acontece muito. “Moço, tem número 37 desse aqui?” Vendedor de loja de sapato usa uniforme com o nome da loja bem destacado na camisa. Eu não uso uniforme, mas tenho cara de quem usa. Aí eu digo “Desculpe, não tem”. Ou “vou ver no estoque” e saio pela outra porta.
No hotel Unique, aqui em São Paulo, aconteceu outra. Eu escrevi o roteiro de um programa que ia ser transmitido de lá. “Você chega na porta e pergunta onde é o credenciamento da emissora, não tem erro”. Foi o que fiz. O cara que estava na porta me falou para voltar por onde eu tinha vindo, virar à esquerda, descer a rampa da garagem até o final. Achei um lugar meio escondido demais, mas fui. Cheguei lá e a primeira coisa que notei foi o tamanho da fila. A segunda foi o tom da pele das pessoas. “Essa fila é do credenciamento?”, perguntei a um rapaz, que confirmou, disse que ia trabalhar de garçom e perguntou o que eu ia fazer. A moça atrás de mim era da limpeza. Aquele monte de gente parecida comigo, todos iam passar a noite pegando pesado. Eu ia ler um roteiro com artistas na suíte de hotel de luxo e depois acompanhar uma transmissão de dentro de um caminhão com ar-condicionado. Talvez até tomar um uísque caro que uma daquelas pessoas ia servir.
Voltei à recepção. “Cara, eu não falei que era da TV? Onde é o credenciamento da TV?”. Era logo ali do lado. Muitas pessoas brancas.
Uma vez me botaram num hotel em São Conrado, bairro chique do Rio de Janeiro. Ali foi esquisito. Não fui destratado, não me olharam estranho. Encostei no balcão e o cara olhou através de mim. Falei “boa noite”, e ele como se nada. Era como se eu não estivesse ali; nunca tinha sentido isso depois de adulto, muito menos depois de gordo. Não dá pra não ver um gordo. Foi só depois de falar o nome da empresa que o cara me viu. Aí me atendeu, fez o check-in, mas ainda cabreiro. Subi para o quarto, deixei as coisas, desci para o bar do hotel para tomar uma cerveja. “Boa noite”, e nada. “Qual cerveja você tem”, e nada. Mostrei a chave do quarto e, de repente, me materializei. “Pois não, senhor”. “Senhor é o negão que arromba teu cu”, eu só pensei. O que eu disse foi: “Me dá uma Heineken”.
E por que eu tô contando isso? Pra ser coitadinho? Pra chamar atenção? Até pode ser, eu bem sei que sou filho da puta a esse ponto. Mas eu queria contar mesmo para falar uma coisa que tenho pensado muito nesses dias de tensão racial no mundo todo: se eu, um pardo num país de maioria parda (maioria sim, tô vendo vocês aí dizendo que são brancos), de vez em quando passo um perrengue… Imagine o preto. Imagine o preto pobre.
Na periferia de São Paulo, onde eu nasci, eu passo por quase branco, como canta o Caetano em Haiti. Aqui em Santana, onde moro hoje, nem tanto. Nos Jardins eu sou quase preto, e “todos sabem como se tratam os pretos”. Mas não, né? São racisminhos. Nunca me machuquei, nunca sofri humilhação. A polícia não matou ninguém da minha família. Não é o monstro do racismo. É o racisminho. Uma amostra grátis, a versão demo. É só pra ter uma ideia do que deve ser a vida do preto no Brasil.
Não parece legal.
Pois é Marcurélio, eu como pardo já fui preto muitas vezes. Se for contar toda vez que alguém foi para o outro lado da rua quando me viu o da senhora que colocou a bolsa para o outro lado daria um livro, livro repetitivo e com o mesmo capítulo de sempre. No fim das contas prefiro que eles tenham medo de mim e não o contrário.