Hoje eu comecei o dia católico e terminei batista. Mas antes de contar essa experiência mística complexa, preciso falar do meu avô.
Meu avô, Júlio, era um cabra bruto do sertão baiano. Nascido e criado no povoado Silgueira, a 6 quilômetros do centro de Monte Santo, tinha a pele que chamam de “curtida pelo sol”. Não sabemos muito sobre os antepassados dele. Dizem que há negros que foram escravizados. Dizem que há indígenas. Meu teste de DNA confirma a presença dessa gente toda no meu sangue; mas é impossível saber quem foram os indivíduos.
Quando meu avô ia a São Paulo, nos aterrorizava com a brincadeira do caranguejo. “O caranguejo vai te pegar!”, ele dizia, com os dedos indicador e médio dobrados, fazendo movimento de pinça. E ai do neto que achasse que era só uma brincadeira inofensiva: quando o caranguejo pegava, beliscava pra valer. Seu Júlio não era dado a delicadezas.
Eu disse no primeiro post da série que tinha comprado uma caneta verde porque me lembrava meu avô, mas achava que podia ser uma memória inventada. Pois hoje Romana me confirmou: Seu Júlio só usava caneta verde. As canetas estouravam no bolso da camisa, que ficavam manchadas de verde para sempre. Ela, Romana, deu a ele uma Bic 4 Cores. Adiantou nada: ele logo gastou a tinta verde, as outras três seguiram intactas.
A memória da gente é uma coisa doida, olha o tipo de coisa que resolve lembrar.
Sempre que chego a algum lugar aqui em Monte Santo, as pessoas (primos do meu pai, normalmente) exclamam variações de “mas é a cara do vô!”. Quando me despeço, a conversa também é a mesma: “quando vier de novo, não gaste com hotel, fique aqui, o que não falta é lugar”.
Meu avô era crente, numa cidade qeu foi erguida e funciona em função do catolicismo. Achava as romarias ao alto da Serra da Santa Cruz uma “ignorância do povo”. Pois hoje, lá fui eu subir a serra.
A Serra da Santa Cruz se chamava Serra do Piquaraçá, até que um frei italiano chegou na região no século 18 (veio catequizar os índios, claro), achou o monte parecido com o Calvário e decidiu erguer estações da Paixão de Cristo e uma capela. Decidir é fácil, mas quem ergueu mesmo foram os escravos. Dizem que as muradas da escadaria que vai até a primeira capela, de Nossa Senhora das Dores, foram rebocadas por Antônio Conselheiro. É muito muro, não foi à toa que o bicho revoltou-se.
Comecei a subir a serra às 8h15 da manhã. Ao longo do caminho, há 25 capelas. Eu achava que fossem 12, e ainda bem que achava: se soubesse que eram 25, talvez tivesse desistido no meio. A subida é difícil, e a única companhia constante (para quem não tem fé, pelo menos) são os calangos tricolores. O começo é um calçamento de pedras irregulares, com degraus a certos intervalos.
No meio dessa subida, eu decidi que ia rezar quando chegasse lá em cima.
Numa segunda parte, o caminho tem só as formações rochosas da montanha mesmo, de quartzito liso. Esse trecho é mais plano e fácil de subir. Tem até uma descida no meio, de pedra e areia que faz fuish-fuish a cada passo. Já perto da capela principal, voltam os degraus, a subida íngreme, a falta de ar.
Cheguei às 10 em ponto, 1h45min de subida. A capela do século 18 é simples, com teto de ripas de madeira em arco, e grandes imagens de Nossa Senhora e São João Evangelista. Na lateral, a sala de ex-votos, onde as pessoas deixam representações das graças alcançadas, geralmente esculpidas em madeira: casas, motos, pernas, cabeças, seios. Muitas muletas de quem não precisa mais delas e atribui isso a um milagre.
Não rezei. Até tentei, mas não me pareceu correto. Acho que a fé começa com a verdade, e eu estaria mentindo se rezasse. Não senti nenhuma presença divina, nenhuma revelação espiritual. Então, em vez de rezar, fiquei pensando em tudo que me trouxe até aqui. No meu pai, na minha mãe, na minha mulher que me entende e me apoia em tudo, nos irmãos, nos sobrinhos. Foi um sentimento de gratidão muito grande. No livro de visitas da capela, pedem o nome, cidade de origem e o que foi pedir. Eu ia deixar em branco, mas vi que muitas pessoas antes de mim tinham preenchido esse campo com a palavra “gratidão”. Fiz o mesmo, resistindo à tentação de incluir uma hashtag.
O resto do dia foi visitando parentes, numa história que conto depois. À noite, lembrei que era domingo e pensei em ir ao culto na Primeira Igreja Batista de Monte Santo, onde Seu Júlio congregava. Achei a igreja, tinha uma moça cantando no púlpito. Culto já começado, eu de bermuda e chinelo, decidi voltar para o hotel. Mas parei o carro na praça e continuava aquela vontade de ir à igreja. Achei que dessa vez pudesse ser um chamado divino mesmo, uma onda espiritual querendo me levar aos braços de Deus. Então dei meia-volta, fui à igreja e…
Nada, claro. Apenas um culto batista, como muitos que assisti na minha infância e adolescência. Alguns hinos familiares, o estilo da pregação também. Na saída, o pastor me cumprimentou e eu disse que meu avô tinha sido membro da igreja. Quando falei o nome dele, o rosto do pastor Rosaldo se iluminou: “Júlio! E a esposa dele, Silvana! Gostava muito dele, um homem especial. Fiz muitos cultos na casa dele lá na Silgueira”.
Talvez seja essa minha experiência espiritual. As coisas às vezes são muito simples.
Esse negócio de fazer capela no alto do morro tem muita história. Em Portugal, não tem uma cidadezinha que não aproveite seu morro, por menor que seja, para botar uma igreja/capela/santuário lá em cima, as mais chiques com capelinhas na subida, desse jeitinho que você descreveu.