— Moisés! Ô, Moisés! Lembra da Zípora?
— Z-Zípora? N-não…
— Sua mulher, porra!
— M-mu-mu-mulher???
— É, Moisés. Mulher. Cê é casado, esqueceu?
— P-puta q-que pariu! P-por que c-cê f-foi l-lembrar da-daquela me-megera a-a-aaaaaaagora, A-AAArão?
— Calma, calma.. Cê fica nervoso e a gagueira piora. Lembrei dela por acaso. Tava pensando nos bons tempos da nossa juventude e tal, e lembrei do seu casamento. Ah, aí aconteceu um negócio engraçado: Seu sogro, o Jetro, veio até aqui porque ficou sabendo de tudo o que aconteceu no Egito, as pragas, o episódio do Mar Vermelho e tudo mais. Tá aí fora, com sua esposa e seus filhos.
— A-A-A-AAAAAAAARGH! Ô! P-Peraí. F-fi-filhos? Só l-lembro do G-Gérson.
— Quando cê saiu de casa, Zípora estava grávida. O moleque nasceu, chama-se Eliezer, que significa deus ajuda.
— E-eu sei o q-que si-significa, A-A-AArão.
— Ah, é. Bom. Mas é isso. O Jetro tá aí, veio te devolver sua mulher. Olhe pelo lado bom, Moisés: Seus filhos são adultos, podem cuidar de você na velhice.
— V-vai à m-merda. Bom, v-vamos a-aacabar lo-logo com i-isso.
Assim dizendo, Moisés saiu ao encontro de Jetro. Cumprimentou-o na maior alegria, como se sua chegada fosse a melhor notícia em anos. Convidou-o a entrar na tenda e resolveu sacanear o sogro: Começou a contar tudo o que acontecera desde que voltara ao Egito. E Jetro naquela situação: Querendo fugir para qualquer lugar, qualquer um, só para não ter que passar pela tortura de ouvir uma história comprida contada por um gago; mas tendo que ser cordial, ou Moisés seria capaz de mandar Zípora e os filhos de volta com ele. Então agüentou firme. Até deu umas cochiladas aqui e ali, mas Moisés não notou, tão empolgado estava com a narrativa de seus feitos.
— … E f-foi a-a-assim q-que de-derrotamos os a-a-aaaaamalequitas. C-com a va-vara de J-Javé e-erguida. Je-Jetro, cê t-tá me o-ouvindo?
— Hum? Ah. Claro, claro! A vara de Javé. Grande vara de Javé. Não há vara maior nesse mundo. U-hu. Viva Javé.
No dia seguinte, Moisés se sentou numa pedra pra julgar o povo, aquela gente toda em pé esperando a vez. Vendo aquilo, Jetro ficou encucado e foi perguntar a Arão do que se tratava. Bom, na verdade ele foi perguntar a Moisés. Mas vocês querem mais um diálogo de Jetro com Moisés, com aquela gagueira irritante? Não, né? Então não reclamem se troco ele por Arão. Dá na mesma. Bom. Jetro perguntou a Arão que porra era aquela, e Arão respondeu:
— Ah, Moisés faz isso aí uma vez por semana. Quando há discussões, questões de propriedade, essas coisas todas, o povo vem aqui para que Moisés consulte deus a respeito e decida quem está com a razão.
— Porra, mas que lusíada esse Moisés! Não vê que assim ele se acaba, e o povo também? Ele porque já está velho e não pode passar por esse perrengue toda semana, o povo por ficar em pé embaixo desse sol do deserto. Não, esse trabalho é muito pesado! Ele tem que aliviar isso aí para poder cuidar de outras coisas mais importantes.
— Tá, mas de que jeito?
— Te digo de que jeito: Fala pra ele escolher uns líderes do povo. Líderes de grupos de dez pessoas, de cinqüenta, de cem e de mil. Ele ensina as leis pra esses caras. Então quando dois caras brigarem, irão até o líder do grupo de dez pessoas dos quais eles fazem parte. Se o cara não resolver, a questão sobe um degrau na hierarquia, para o líder de cinqüenta. E assim por diante, de modo que só causas mais graves cheguem a Moisés.
— Porra, Jetro, que idéia bestial! Vou levá-la agora mesmo ao conhecimento de Moisés.
Moisés ouviu a idéia, gostou e tratou logo de pô-la (pôla!) em prática. E viu que, de fato, sua vida ficou bem mais sossegada. Jetro, feliz por ser o criador do primeiro Tribunal de Pequenas Causas, voltou para sua terra. E, para desespero de Moisés, não levou a filha junto.