Operários, de Tarsila do Amaral

Da primeira vez que ouvi a frase do título, ela veio atribuída ao Pelé. Depois descobri que era de um certo Robson, jogador do Fluminense. Robson estava num carro junto com dois brancos. Um casal negro atravessou a rua sem olhar, e os dois começaram a gritar impropérios racistas. Robson pediu aos companheiros que parassem, porque racismo era coisa séria: “Eu já fui preto, sei o que é isso”.

O jornalista Mário Filho conta essa história no livro “O Negro no Futebol”. Procure “eu já fui preto” no Google e vai encontrar várias citações do texto, a maior parte delas falando da questão social x racial, de como o preto deixaria de sofrer racismo ao ascender socialmente etc.

Este texto não é um desses.

Pretos são 8,86% da população brasileira. Pardos, 45,06%. 45,22% dos brasileiros se dizem brancos, e eu chutaria que metade são pardos em negação. Pretos e pardos formam o grande grupo dos negros. Eu sou pardo, esse borrão de cor indefinida na Aquarela do Brasil.

Existe todo tipo de pardo. Tem aquele que bota um aplique e começa a falar que é preto. Tem aquele que já é preto mas ainda não sabe. Tem aquele que passa tranquilamente por branco. Tem o que acha que é branco. Tem até pardo supremacista branco.

O Brasil é inacreditável.

Como eu ia dizendo, sou pardo. Então quando eu digo que já fui preto é porque já sofri uns racisminhos aí pela vida. Não o RACISMO, aquele da violência e do ódio, mas o racismo da confusão, das coisas que presumem sobre mim por causa da minha aparência.

(Já fui chamado de macaco uma vez, mas foi tão engraçado que eu nem conto como racismo. Eu tinha 18 anos e dava aula numa escolinha de informática. Tinha um aluno surdo-mudo que fazia barulho a aula inteira: batucava no teclado, na mesa, no monitor. Surdo não tem noção do barulho que faz. Um dia eu pedi pra ele parar, que estava atrapalhando. Aí ele virou de costas para mim e… Sei lá, eu acho que ele pensou que estava balbuciando. Mas falou MUITO ALTO e com aquele sotaque de surdo: MÃ-CÃ-COOO. Eu deixei barato, mas depois desse dia eu vivia falando “ê, surdo filho da puta…”; a sala ria, o surdo olhava em volta sem entender nada, ria também. A gente faz o que pode.)

O resto é bobagem, mal-entendido, confusão besta.

Numa festa de aniversário da minha sobrinha, o segurança do condomínio falou para eu “encostar lá atrás, pra descarregar”. Demorei a entender. Ele achou que eu fosse fornecedor, não convidado. Eu dirigia um Corsa, botei na conta do carro. Mas não era. Anos depois, já dirigindo o carro atual (SUV daqueles bem de paulista, bancos de couro, câmbio automático), várias vezes em vários lugares eu ouvi “veio buscar quem?”. “Vim buscar tua mãe, pra levar ela pra dar na Cracolândia”, eu penso. Trabalhei para uma emissora aqui em São Paulo por um tempo, e toda semana um segurança diferente (mas sempre mais escuro do que eu) me perguntava isso. Ou então estava no estacionamento esperando o carro, chegava um cliente e me entregava o ticket. Essas coisas. “Você está aqui, você é dessa cor, tem essa boca e esse nariz, portanto é manobrista.”

Em loja de sapato acontece muito. “Moço, tem número 37 desse aqui?” Vendedor de loja de sapato usa uniforme com o nome da loja bem destacado na camisa. Eu não uso uniforme, mas tenho cara de quem usa. Aí eu digo “Desculpe, não tem”. Ou “vou ver no estoque” e saio pela outra porta.

No hotel Unique, aqui em São Paulo, aconteceu outra. Eu escrevi o roteiro de um programa que ia ser transmitido de lá. “Você chega na porta e pergunta onde é o credenciamento da emissora, não tem erro”. Foi o que fiz. O cara que estava na porta me falou para voltar por onde eu tinha vindo, virar à esquerda, descer a rampa da garagem até o final. Achei um lugar meio escondido demais, mas fui. Cheguei lá e a primeira coisa que notei foi o tamanho da fila. A segunda foi o tom da pele das pessoas. “Essa fila é do credenciamento?”, perguntei a um rapaz, que confirmou, disse que ia trabalhar de garçom e perguntou o que eu ia fazer. A moça atrás de mim era da limpeza. Aquele monte de gente parecida comigo, todos iam passar a noite pegando pesado. Eu ia ler um roteiro com artistas na suíte de hotel de luxo e depois acompanhar uma transmissão de dentro de um caminhão com ar-condicionado. Talvez até tomar um uísque caro que uma daquelas pessoas ia servir.

Voltei à recepção. “Cara, eu não falei que era da TV? Onde é o credenciamento da TV?”. Era logo ali do lado. Muitas pessoas brancas.

Uma vez me botaram num hotel em São Conrado, bairro chique do Rio de Janeiro. Ali foi esquisito. Não fui destratado, não me olharam estranho. Encostei no balcão e o cara olhou através de mim. Falei “boa noite”, e ele como se nada. Era como se eu não estivesse ali; nunca tinha sentido isso depois de adulto, muito menos depois de gordo. Não dá pra não ver um gordo. Foi só depois de falar o nome da empresa que o cara me viu. Aí me atendeu, fez o check-in, mas ainda cabreiro. Subi para o quarto, deixei as coisas, desci para o bar do hotel para tomar uma cerveja. “Boa noite”, e nada. “Qual cerveja você tem”, e nada. Mostrei a chave do quarto e, de repente, me materializei. “Pois não, senhor”. “Senhor é o negão que arromba teu cu”, eu só pensei. O que eu disse foi: “Me dá uma Heineken”.

E por que eu tô contando isso? Pra ser coitadinho? Pra chamar atenção? Até pode ser, eu bem sei que sou filho da puta a esse ponto. Mas eu queria contar mesmo para falar uma coisa que tenho pensado muito nesses dias de tensão racial no mundo todo: se eu, um pardo num país de maioria parda (maioria sim, tô vendo vocês aí dizendo que são brancos), de vez em quando passo um perrengue… Imagine o preto. Imagine o preto pobre.

Na periferia de São Paulo, onde eu nasci, eu passo por quase branco, como canta o Caetano em Haiti. Aqui em Santana, onde moro hoje, nem tanto. Nos Jardins eu sou quase preto, e “todos sabem como se tratam os pretos”. Mas não, né? São racisminhos. Nunca me machuquei, nunca sofri humilhação. A polícia não matou ninguém da minha família. Não é o monstro do racismo. É o racisminho. Uma amostra grátis, a versão demo. É só pra ter uma ideia do que deve ser a vida do preto no Brasil.

Não parece legal.

O que mata o velho não é a velhice, é a inveja da juventude. Eu achava isso quando jovem, e ainda mais agora, que estou ficando velho e preciso resistir à tentação de criticar tudo de que os jovens gostam. Lembro de quando eu era jovem e os mais velhos criticavam as músicas que eu ouvia (barulho!), os livros que eu lia (analfabetismo!), as roupas que eu usava (achavam que eu estava virando punk, mas era só desleixo, que mantenho até hoje).

Consigo com relativo sucesso não implicar com as coisas dos jovens: escutei quase uma música inteira da Billie Eilish, fiquei inscrito por mais de meia hora num canal de YouTuber famoso, fingi que um meme era engraçadíssimo. Mas tem um limite que não consigo ultrapassar: os influenciadores. Não entendo a relevância, não aceito o alcance, não admito o destaque que recebem. E o que é isso, se não inveja da juventude?

Então hoje eu decidi que vou dar uma chance a eles, mas eles têm que dar também uma chance a mim. Sou um velho tolerante, mas ainda preciso ver algum sentido nas coisas. Billie Eilish compõe com o irmão dela, produz as faixas, tem influência estética. Os youtubers produzem conteúdo, os memes são produto do zeitgeist. Mas e os influenciadores? O que fazem, além de receber e mostrar mercadorias? Quando foi que o ser humano começou a se contentar em ser vitrine? Eu, hein…

Demonstrem alguma utilidade, caros influencers! Minha sugestão: quando começarem a sair as primeiras tentativas de vacina para essa doença terrível, sejam pioneiros. Ofereçam-se para testar as vacinas.

Calma, não descartem a ideia sem ouvi-la inteira.

Cada influenciador receberia uma caixa bonitinha, forrada de veludo com uma camada intermediária de isopor. Dentro dela, as ampolas da vacina e uma linda seringa de vidro (é para uso individual, então não tem problema). Eles fariam vídeos mostrando esses recebidos tão valiosos, aplicando as vacinas, contando como tem sido a reação.

Depois de um tempo de testes, viriam os desafios: fazer live no pronto-socorro, beijar alguém que testou positivo para Covid-19, lamber um balaústre de ônibus. E aí veríamos qual vacina é mais eficaz.

Há vantagens e desvantagens nesse processo.

Os testes seriam transparentes, fáceis de acompanhar, os resultados sairiam mais rápido.

Alguns influenciadores morreriam.

Não consegui pensar em nenhuma desvantagem.

O que me dizem, influencers? Estão prontos a contribuir para a sociedade que os sustenta? Juro que dou like.

Piso firme no pedal, guiando rápido pela linha do ponto reto. A agulha é só um borrão. O motor da velha máquina mal lubrificada é barulhento. Em outros tempos, acordaria o prédio inteiro. Costuro. O gato dorme sobre a pilha de retalhos costurados uns aos outros. Pensa que é uma cama. Quando um novo retalho se junta à pilha, ele se levanta, espreguiça, dá uma volta, torna a se deitar.

Numa pausa do motor, ouço um barulho muito baixo, um farfalhar, mais uma sensação do que um som, vindo do apartamento de baixo. O gato levanta a cabeça. O morador anterior deve ter entrado na mesma roubada que eu: módica entrada, prestações baixas, pagamento em 30 anos. Tudo isso para abrigar uma família de morcegos. Imagino a fauna dos outros apartamentos. Ecossistemas inteiros nascendo num condomínio de classe média. Varandas gourmet para os ratos. Quartos de casal para os pombinhos. Cobertura para os urubus. O apartamento de baixo para os morcegos. Todo mundo tem onde morar, ninguém paga aluguel. É a utopia socialista filmada pelo Animal Planet.

Eu costuro. O gato dorme. Fora a máquina de costura, o único barulho é o das asas dos morc…

… e esse outro, mais grave, alto o bastante para se sobrepor ao ruído da máquina. Tiro o pé do pedal e escuto. Nada. Foi tão rápido que talvez nem tenha acontecido. Dou risada. Mas o gato acordou. “Paranoia”, penso. Acordou porque acordou, gato dorme e acorda quando quer. Paranoia.

Foi a paranoia que esvaziou o prédio. “Vai cair”, disse um. “Ouvi um barulho”, “Senti o chão tremer”. Vieram os homens da prefeitura. “Vai cair”, sentenciaram. A solução: evacuação voluntária. Quem topasse sair até determinado prazo, receberia uma indenização da construtora. Quem não topasse, que assinasse um termo de responsabilidade. Só eu assinei. Os outros foram saindo. Uma balbúrdia; não se podia usar o elevador porque todo dia era dia de mudança. Caras aflitas, móveis horrendos, correria.

Um mês depois, estou aqui. Posso ouvir música alta, dançar, chorar. E costurar. É terapêutico. Pedaços soltos, tudo do avesso, parece que vai dar errado e no final dá certo. Ou errado. Quem se importa? É como a vida. A tira aumenta, a cama do gato fica mais macia.

Quarenta e cinco anos para conseguir comprar um apartamento financiado até a morte. E vou largar isso por causa de paranoia alheia? “Nunca!”, eu digo para o gato. Ele lambe uma pata e passa na cara. Eu continuo pagando as prestações, retalhos do sonho da casa própria.

O barulho de novo, agora mais alto. O gato eriça os pelos das costas. E é impressão minha ou o chão tremeu? Parece que ouvi um barulho de janelas batendo. Serão os morcegos? Os ratos? O prédio caindo?

“Caindo o caralho”, eu digo em voz alta, e me assusto com minha voz. Ridículo. Dou risada. E costuro.

Outro barulho. Piso mais fundo para fugir dele. Outro, mais alto. Abro uma playlist de pagode. “Se eu deixar de me amar, o mundo cai em cima de mim”, canta o Art Popular. O amor próprio me manteve aqui. Continuo vivendo, costurando, pagando prestações.

O mundo não vai cair em cima de mim. O prédio não v

— Sabe o que é isso aqui? — Mateus tira o nariz vermelho da gaveta e o mostra para a própria imagem no espelho — É a menor máscara do mundo.

Ele põe o nariz e sorri. Faz cara de choro. Faz careta. A maquiagem está ótima.

— Quem eu sou, o que eu penso. Meu CPF, minhas dívidas, meus vícios. Tudo isso escondido atrás dessa bolinha vermelha. Engraçado, né?

O reflexo olha. Pituco tomou o lugar de Mateus.

— Já volto — diz Pituco. — Vou buscar o Treze.

Ele sai. É uma manhã nublada, triste. Mas o palhaço tem compromissos. Uma festa infantil. Locução e palhaçadas na porta de uma loja no Centro. E… só. As pessoas não buscam mais os palhaços como antigamente. “Muita gente hoje em dia tem medo de palhaço”, ele pensa, e suspira.

A festa é aquilo de sempre. Cambalhotas. Mágicas. Doces. Nem sinal do Treze. A festa termina, Pituco recebe seu dinheiro, agradece. Entra no carro. Na esquina seguinte, para num semáforo. O motorista do carro ao lado pergunta onde estão os outros.

— Que outros?

— Palhaços, pô! Carro de palhaço, deve ter pelo menos uns quinze aí dentro, né não?

Pituco dá uma risada falsa. Olha para o carro. Um carro daqueles populares, como o de Mateus, como tantos outros. Todos igualmente sem graça. No banco de trás, um menino de uns 7 anos. Ele nota que Pituco olha e mostra o dedo do meio. Pituco sorri. É o Treze.

O coração do palhaço dispara. “Calma”, ele pensa. “Muita calma”. Respira fundo, faz uma breve oração pedindo calma. Tira o nariz por um instante para enxugar o suor,

[não pituco por favor não não não]

põe o nariz de volta. Mateus covarde. O sinal abre, o carro ao lado avança com uma buzinadinha camarada. Pituco acena, conta até três, vai atrás.

Está com sorte. O carro embica numa casa duas quadras à frente. O portão é baixo. Bom. Casa térrea. Melhor ainda. Pituco manobra, vai embora. Ainda é cedo. Além do mais, ele tem outro compromisso. E mais tarde tem que passar em casa. Limpar o quartinho, verificar as correntes e o isolamento acústico, alimentar o Doze.

Amolar as facas.

O Doze… Amanhã ele será história, uma lembrança que foge rapidamente, um fardo com pedras nos bolsos no fundo de um rio. Ele já imagina os próximos dias com o Treze. E sorri.

Eu lembro do dia que o Solano perdeu o medo da morte.

Já fazia um tempo que o Solano vinha uma conversa esquisita, um negócio até meio perigoso. Numa sociedade que preza a rotina, a ideia de Solano era um desatino. Um desvario. Uma safadeza.

Mas sempre tem aqueles né? Aqueles. Uns gostam de novidade. Outros são desajustados mesmo, não se encaixam. E outros ainda querem mais é ver o circo pegar fogo, bater palma para maluco dançar. Ou cantar, no caso de Solano. Entre novidadeiros, esquisitões e incendiários do aplauso, Solano foi ganhando seus adeptos.

Nesse dia, Solano conseguiu reunir um grupo bom, até. Duas operárias daquelas que o Chico Buarque cantava nos anos 70, que já não produziam como antes. Uma outra daquela música do Ney Matogrosso, que só reclama da fraqueza. Uns três velhos roucos, uns frangos. Até gato pingado tinha nesse dia. Solano falava, os outros concordavam. Quanto mais concordavam, mais Solano danava a falar.

— Quando nossos patrões tinham uma rotina fixa, concordo, precisávamos tê-la também. Mas agora?! Agora estão entocados, com medo. Os homens ficam dias sem tomar banho. As mulheres deixam o cabelo seguir a natureza, e nem sabem mais onde guardaram os sutiãs. As crianças gritam, correm, choram e os pais, anestesiados pelo medo e pela cachaça, deixam. Ora, se a vida deles é o caos, por que a nossa tem que seguir sendo a ordem?

Solano se empertigava, estufava o peito, andava de um lado para o outro. O público ia aumentando.

— Chega de bater ponto! A gente pega cedo no batente, e sabem o que nossos patrões estão fazendo esse tempo todo? DORMINDO! É hora de mudar, de repensar os horários. Aquele rapaz da cidade lá, como é o nome dele? Aquele ator meio marrom? Marcos, Marco, Marcelo, coisa assim. A que horas ele acorda? Na hora do almoço, o vagabundo. Então pra que a gente vai ficar acordando seis, cinco, quatro da manhã? Eu não sei vocês, mas eu cansei de cantar por nada. A partir de hoje, canto às onze da manhã. E quem achar ruim, que venha aqui tirar satisfações comigo.

O público, alarmado, foi se dispersando. Aí já era demais. “É doido”, dizia um. “Vagabundo”, comentava outro.

Sozinho no poleiro, Solano não desanima. Está empolgado com sua ideia. É um novo tempo, de novas oportunidades, de novos horizontes. Enche o peito, levanta o bico para o céu e capricha no cocoricó.

Lá da casa, uma janela se abre com estrondo. É Marcos, ou Marco, ou Márcio, com os cabelos em revolta, uma medusa de terracota.

— CALA A BOCA, GALO FILHO DA PUTA!

Solano para, suspira, desolado. É um gênio à frente do seu tempo.

Hoje (25 de maio de 2020), sei lá por quê, me lembrei desse texto que escrevi mais de dez anos atrás, em fevereiro de 2010. Deve ser o tédio da quarentena. Não importa. O negócio é: falei merda.
Primeiro, porque não sei o que é ser gay no Brasil, em São Paulo, no Largo do Arouche. Deduzi uma coisa baseada no lugar em que morava, o que é uma bobagem. Evidência anedótica da pior qualidade.
Depois, a segunda parte do texto é coisa típica de cabeça de planilha. As contas estão certas, mas em cima de premissas erradas. Quando se fala do assassinato de gays, ou de feminicídio, esses grupos estão falando de crimes de ódio: gays mortos por serem gays, mulheres mortas por serem mulheres.
Eu pensei em apagar o texto, mas achei melhor deixá-lo aqui, para exibir minha ignorância de dez anos atrás.
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Sessenta anos atrás essa canção mudou a música brasileira para sempre.

Ela começa em ré menor, parecendo ser mais uma daquelas músicas de dor-de-cotovelo da época: “Vai, minha tristeza, e diz a ela que sem ela não pode ser…” Mas lá pela metade vem a mudança, o tom muda para maior e a música fica otimista: “Mas se ela voltar, se ela voltar, que coisa linda! Que coisa louca!”. E no final ela fica assertiva: “Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim”. A revolução começa aí, na música de Tom Jobim e na letra de Vinicius de Moraes. Mas a verdadeira reviravolta está no baiano que gravou a música tocando violão e cantando como nunca antes se tinha visto.

No selo do compacto que tinha “Bim Bom” do outro lado, de 1958, “Chega de Saudade” era identificada como chorinho. Podia até ser quando Tom Jobim a compôs. Mas depois de passar pelo violão e pela voz de João Gilberto, “Chega de Saudade” nunca mais foi a mesma, a música nunca mais foi a mesma, o Brasil nunca mais foi o mesmo.

Em 1959, quando a música saiu no LP “Chega de Saudade”, Caetano Veloso e Gilberto Gil tinham 17 anos. Gal Costa, 14. Chico Buarque tinha 15. Edu Lobo, 16. Roberto Carlos, 18. Todos esses e muitos outros contam da mudança que aconteceu na vida deles, ainda adolescentes, quando ouviram “Chega de Saudade”. Essa influência sobre artistas tão diferentes fica clara no começo da carreira. Ouça o primeiro disco de Caetano e Gal, os primeiros do Chico, os primeiros compactos do Roberto, e você vai notar que é uma molecada imitando João Gilberto.

Os grandes compositores e intérpretes do Brasil nasceram de João. E não só isso: ele deu uma nova vida à música brasileira antiga. Todos os grandes compositores dos anos 30 e 40 estão presentes na discografia de João. É como se toda a informação musical do Brasil se condensasse num só ponto, João, que então explode para todos os lados, dando origem a um novo universo musical aqui e no mundo.

João Gilberto é o Big Bang.

João não foi só “uma pessoa conhecida”, como disse o imbecil-mor quando da morte dele, em julho. João Gilberto é a visão de um Brasil ideal, capaz de beleza, de perfeição, de poesia.

Eu conheci João em 1991, aos 16 anos. Fiquei obcecado por ele. Decidi aprender a tocar violão só para ver se um dia conseguia tocar “Chega de Saudade”. Consegui.

Quatro anos depois de começar as aulas de piano, eu ainda não estava pronto para tocar “minha” música. Sei o quanto ela é complicada. Mas aí João fez essa besteira de morrer, e eu precisava homenageá-lo. Então escolhi “Chega de Saudade” para tocar na audição de fim de ano.

Foi a primeira vez nesses quatro anos que a professora Cristina Simalha ficou com dó de mim. Ela foi escrevendo o arranjo e entregando pra mim aos poucos, quase que pedindo desculpas.

(Era muito, muito difícil. Eu sentava na frente do piano, olhava para a partitura e desistia. Quando tentava tocar, não saía nada. Eu me irritava, saía, ia dormir. Contei isso, e a Cris: “Será que você não está com depressão?” Fui investigar e, de fato, estava com depressão. Comecei a me cuidar. Depois disso, a música foi saindo. Vejam vocês: a paixão por João Gilberto e a sensibilidade da minha professora fizeram eu me tratar. Isso fez — e tem feito — toda a diferença.)

Bom, ontem foi dia de tocar a música em público. Ela estava saindo muito melhor do que isso em casa, mas ponho na conta do nervosismo. Errei muito, mas não ligo. Fiz o que aprendi com João: o melhor que eu podia.

Obrigado, Cris. Obrigado, João.

No começo deste ano, o Twitter suspendeu minha conta, @marcurelio. A conta tinha mais de 30 mil seguidores. Era importante para o meu trabalho: gente que queria me contratar podia entrar lá e ver o conteúdo que eu postava e decidir se eu servia para o trabalho. O número de seguidores também pesava, eu imagino: o cara entrava lá e pensava “é chato, é sem graça, mas pelo menos é influente”, e me contratava. Servia também como exercício de brevidade na escrita. Para quem vive de escrever, isso é ouro.

E aí o Twitter suspendeu essa conta. Sem aviso, sem motivo. Pedi informações e disseram que eu estava propagando discurso ameaçador ou violento. Bom, vocês me conhecem. Eu sou ranzinza, sou chato, mas violento não sou.

O negócio é que o Twitter suspendeu, e a suspensão é permanente. Criei outra conta, @chicoteiajesus (em homenagem ao meu velho blog), e vida que segue. Entrei com uma ação contra o Twitter no Juizado Especial Cível, pedindo o restabelecimento da conta e os motivos para a suspensão. Na audiência de conciliação, os advogados da empresa disseram que não podiam fazer nada, porque nem para eles o Twitter falava o motivo. Veio o julgamento, ganhei a causa, o Twitter recorreu, e agora é esperar.

(“Ah, mas é uma empresa privada, ela faz o que quiser”. Diga isso quando você tiver um problema com as Casas Bahia.)

No domingo, o Twitter suspendeu minha nova conta. Parece que tem uma regra que proíbe quem foi banido de voltar com outra conta. Recorri de novo e recebi essa resposta aí. A empresa me acusa de ter várias contas “com o propósito de propagação do ódio”.

Propagação do ódio é meu ovo

Uma acusação séria dessas, bicho. Zero prova.

É meio que uma bênção disfarçada também, porque eu estava viciado no Twitter. Enquanto o caso não se desenrola na justiça, vou combatendo minhas crises de abstinência com a metadona do Facebook.

Peço a vocês que compartilhem este post. Vou ficar feliz se tiver mais gente com raiva do Twitter por aí.

Crescer na periferia de São Paulo nos anos 80 era muito bom para quem gostava de brincar na rua. Empinar pipa, jogar bola, descer a rua num carrinho de rolimã…

Eu odiava essa merda toda.

Parte por temperamento, parte por ter sido condicionado a isso. Mas as razões eu deixo pro consultório da psicanalista. O fato é que brincar na rua não me interessava, então minha infância foi um tédio… até eu aprender a ler.

Ler era muito bom quando você era uma criança da periferia de São Paulo nos anos 80. Internet não existia, nossa casa não tinha videocassete nem discos para tocar na vitrola, nossa única opção de entretenimento era a TV. Quando eu descobri os livros e as histórias em quadrinhos, um mundo novo e muito mais interessante se abriu para mim. Dos 5 até mais ou menos os 14 anos, minha vida era com o nariz enfiado num livro. Eu lia os gibis do meu tio, ia na casa da vizinha ler os livros do filho dela, lia o jornal e a Bíblia em casa. Lia, lia, lia. Era um nerd, mas era feliz demais. Não me arrependo.

Uma parte importante dessa história foi a biblioteca da escola onde eu estudava, a EMPG Amadeu Amaral. Foi lá que conheci a obra de João Carlos Marinho. O Gênio do Crime, Caneco de Prata, Sangue Fresco… Li e reli tudo que ele escreveu. Voltei a ler depois de adulto, e é melhor ainda. O jeito dele escrever faz o ato parecer fácil. É como João Gilberto ou Fred Astaire. Ele foi um dos responsáveis por eu decidir que, além de ler, queria escrever também.

Deus foi bom pra mim, e ontem eu conheci João Carlos pessoalmente. Saí do estande da Bienal comovido, tive que parar um pouco para respirar fundo.

Quem cresceu na periferia de São Paulo nos anos 80 nem imagina que um dia vai conhecer seus ídolos. Estou muito feliz.

João Carlos Marinho e eu