(I Reis 22)
— Pois vejam, majestades, que a guerra é como um tabuleiro de xadrez.
— Hum…
— Só que as peças são brócolis e os jogadores vêm assim, viram pro outro lado e fazem um negócio desse jeito com os dedos da mão direita. Assim, ó. Aí jogam azeite em cima. Então um enfia a mão no bolso e tira uma coisa que é como se fosse uma caneta, mas não tem nada a ver, e joga pra cima. É justo?
— …
— …
— Bem, vejamos. DE QUE DIABO VOCÊ ESTÁ FALANDO?
— Hermenêutica, majestade.
— Hermenêutica?
— Sim. Hermenêutica.
— Você ao menos sabe que PORRA é hermenêutica?
— Hermenêutica?
— Sim. Hermenêutica.
— …
— Você é profeta mesmo, rapaz?
— Profetíssimo!
— É merda nenhuma. Fora daqui!
— Mas…
— FORA!
Nota-se que não é o primeiro profeta a se apresentar perante os reis Acabe, de Israel, e Josafá, de Judá. Sessenta anos depois da divisão do reino, os dois haviam forjado uma aliança para juntos atacarem um inimigo comum, a Síria. Era difícil pensar em duas personalidades mais diferentes: grandiloqüente e passional, Acabe sofria constantes variações de humor, chegando a ficar prostrado por qualquer contrariedade. Josafá, pelo contrário, era discreto e tranqüilo, e gostava de pensar antes de dar cada passo. Acabe, em boa parte influenciado por sua esposa Jezebel, provocara a ira de Javé contra o reino do Norte com sua política de incentivos às antigas religiões cananéias, especialmente às diversas formas de culto a Baal, e com a perseguição aos profetas da religião estabelecida, principalmente Elias, o maior deles. Josafá era fiel à religião de seus antepassados, e acabara com a prostituição sagrada nos altares que vinham dos tempos do seu pai, Asa. Não era, porém, um fanático: tolerante, fazia vista grossa a outras manifestações religiosas. A maior diferença entre os dois, no entanto, era percebida quando abriam a boca: Acabe tinha uma voz grave e tonitruante, que subia duas oitavas quando ele se irritava. Josafá, pobre coitado, tinha a voz aguda de um castrato.
Já havia dois anos que as relações entre Israel e a Síria eram pacíficas. Existia um ponto pendente, porém: Ramote Gileade, cidade situada no que hoje se chama Cisjordânia. A idéia de retomar a cidade partira de Acabe, que propusera a aliança a Josafá. Para seu desespero, o rei de Judá aceitara a proposta, mas com uma condição:
— Vamos consultar Javé primeiro.
Acabe ficou vermelho de raiva, sapateou, rangeu os dentes, fez ameaças, mas Josafá permanecia sereno: ou pediam orientação a Javé, ou nada feito. Vendo que seria inútil insistir, Acabe esmurrou a parede (o que lhe rendeu dois dedos quebrados) e mandou convocar todos os profetas de Israel.
Não são muitos os profetas, e também não são grande coisa. A perseguição incansável de Jezebel tornara em cabritos assustados aqueles que antes eram os orgulhosos mensageiros do Senhor dos Exércitos. Reunidos perante os dois reis, que se apresentam em suas roupas mais luxuosas na praça principal de Samaria, eles dão os prognósticos mais animadores.
— Guerra contra a Síria? Ixe, já é! Deus manda dizer que tá tudo pela ordem.
— Diz o Senhor: ide-vos e lutai-lhe-vos contra os sírios, e eu te-lhes darei-vos a vitória. Lhe. Vos. Por aí.
— A Síria é como um punhado de areia dentro de um copo daqueles de plástico, só que com um buraquinho no fundo, e em cima de um monte de pedras. Aí vem o gato e…
— EU JÁ MANDEI VOCÊ SUMIR DAQUI!
— Tá bom, tá bom! Saco.
— Acabe, não tem nenhum outro profeta por aí não?
— Hum. Tem um sim.
— Então, ouvi falar de um tal Elias que…
— NÃO ME FALE NESSE SUJEITO!
— Tudo bem, sem problema. Mas não tem nenhum outro não? Cá pra nós, estou achando esse pessoal meio fraco, parece que cursaram profecia na Uninove.
— Bom. Tem um cara aí, um tal de Micaías. Mas ele nunca profetiza nada que preste pra mim, só merda. Tenho ódio dele. Ódio. ÓDIOÓDIOÓDIOGAH.
— Acabe, controle-se. Pega mal um rei portar-se assim na frente dos seus súditos.
— Ah, é? E essa voz de moça, pega bem?
— Não adianta, meu caro, não vou entrar nessa sua provocação barata. Mande chamar o tal Micaías, só para termos certeza.
Contrariado, o rei mandou um oficial chamar seu desafeto. Enquanto isso, o desfile de profetas continua, todos eles garantindo que a campanha de retomada de Ramote Gileade será um absoluto sucesso. Um deles, de nome Zedequias, vem empunhando um par de chifres de ferro.
— Majestade, Javé manda dizer: “Com estes chifres você lutará contra os sírios e acabará com a raça deles”.
— Corno é teu pai!
— …
— Cadê o Micaías, Acabe?
— Sossega, Garoto Juca, que ele já vem.
Já vem mesmo: o oficial encontrou o profeta ali por perto, e vem escoltando o homem. Enquanto caminham, conversam.
— Rapaz, seus colegas tão tudo dizendo que essa guerra vai ser porreta.
— E eu com isso?
— Ora! O melhor que você faz é falar a mesma coisa, filho duma égua.
— Eu falo o que Javé me mandar falar, nada mais, nada menos.
— Eita. Então tá, ué.
Chegando defronte aos reis, porém, Micaías se esquece de seu orgulho de profeta. Ríspido, Acabe pergunta se ele e Josafá devem marchar contra Ramote Gileade.
— Claro, majestade, claro! Javé vai lhes dar a vitória.
— Micaías…
— Sim, majestade?
— Você deve achar que eu sou algum débil mental, não?
— …
— Estou vendo nessa sua cara de mané que você está mentindo. Pode parar com isso, filho da puta. Quando você vier falar comigo em nome de Javé, diga a verdade.
— É que o senhor fica bravo quando eu falo…
— NÃO IMPORTA! QUERO A VERDADE!
— Hum. Bom. O senhor pediu. Preparado?
— DESEMBUCHA!
— O que eu vejo são soldados de Israel espalhados pelas montanhas do deserto, como ovelhas sem pastor. E Javé diz assim: “Eita, que esses aí estão fodidos. Que voltem para casa em paz”.
— Não falei que esse veado só profetiza o que não presta?
— Deixa o homem falar, Acabe. Prossiga, Micaías.
— Prossigo, prossigo sim! Porque eu vi Javé sentado em seu trono no céu, com os anjos todos em volta. Ele perguntou: “Alguém aí quer descer para enganar Acabe para que ele ataque Ramote e seja morto por lá?”. Foi uma bagunça do cão entre os anjos, cada um dizendo uma coisa diferente. Aí um espírito se levantou e disse: “Xacomigo, Javé, eu vou”. “O que você vai fazer”, Javé perguntou, e ele explicou seu plano. Disse que enganaria os profetas para que fizessem profecias erradas para o rei. Então Javé o autorizou, e cá estamos nessa situação ridícula, com chifres de ferro e não sei mais o quê.
Antes que o rei conseguisse formular uma reação, Zedequias saltou na frente de Micaías e sentou-lhe um sopapo.
— Tá louco, feladaputa? Quando foi que o espírito de Deus saiu de mim e entrou em você?
— Você vai saber quando estiver todo encolhidinho num buraco, tentando se esconder dos sírios.
— Chega! Podem parar, os dois! Cadê o oficial que trouxe esse desgranhento pra cá? Ah, olha você aí. Seguinte: você vai levar esse sujeito até Amom, o governador da cidade, e ao príncipe Joás, com um recado meu. Diga a eles que é pra jogarem esse Micaías na cadeia. Que ele passe a pão e água enquanto eu não voltar são e salvo.
— Vixe. Haja pão é água.
— O QUE VOCÊ DISSE, MICAÍAS!
— Majestade, se o senhor voltar são e salvo, então não foi Javé que falou através de mim. Disso eu duvido, infelizmente. Que todos se lembrem do que eu disse.
No fim das contas, ficou decidido por 400 votos contra um que Judá e Israel atacariam Ramote Gileade. Acabe ainda estava preocupado com o que Micaías dissera, então foi conversar com Josafá:
— Pensei num negócio aqui pra gente confundir os sírios. Em vez de irmos os dois como reis, você vai todo paramentado e eu vou disfarçado de soldado comum.
— Hum. E pra quê?
— Pra confundir os sírios, Josafá! Prestenção!
— Mas isso não faz sentido nenhum, Acabe.
— Confie em mim!
— Tudo bem, pode ser. Negócio esquisito…
Acabe saiu esfregando as mãos. Sabia que os capitães do exército da Síria tinham ordens de não atacar ninguém a não ser o rei de Israel. Judá era uma bostinha no mapa, ninguém sequer lembrava de sua existência. Quando vissem Josafá todo engalanado sobre seu carro, feito um Clóvis Bornay narigudinho, pensariam que era o rei de Israel. Enquanto isso, Acabe daria um jeito de ficar meio que na retaguarda, andando pra lá e pra cá, evitando a refrega. Não tinha como dar errado.
Bom, tinha. Porque os capitães sírios chegaram até a cercar o rei de Judá. Ordenaram que jogasse suas armas no chão, e se preparavam para trucidá-lo quando ele gritou. Gritou do único jeito que sabia: com aquela voz esganiçada que tinha. Imediatamente os oficiais inimigos perceberam que não se tratava do rei de Israel. Josafá explicou que era o rei de Judá, um país menorzinho mais ao sul, e que Acabe lhe propusera o plano de um só rei visível na batalha.
Até aí, nada de mais. Os sírios deixaram Josafá em paz, e Acabe continuava seguro em seu disfarce. No entanto, enquanto corria de um lado para outro, o rei sentiu uma fisgada entre as juntas da armadura. Um soldado sírio atirara uma flecha ao acaso, e ela — provavelmente guiada pela vingativa mão de Javé — foi alojar-se no corpo do rei que tanto fizera para não ser notado. Imediatamente ele pediu ao condutor de seu carro que desse meia-volta e o levasse para fora da batalha.
O ferimento não parecia sério, e não pegava bem um rei abandonar o campo de batalha. A briga esquentava, e a presença real fazia-se necessária para instigar o moral dos soldados. Então os oficiais de Acabe mantiveram-no em pé até a tarde, de frente para os sírios, sem perceberem o sangue que escorria para o fundo do carro. Ao pôr-do-sol, o rei morreu e o exército israelita recebeu ordem de retirada.
O corpo do rei Acabe foi levado para Samaria e enterrado ali na capital do reino do Norte. Enquanto os soldados lavavam seu carro na represa da cidade, onde as prostitutas iam tomar banho, os cachorros lamberam o sangue que escorria para a água. Javé dissera que os cães beberiam o sangue de Acabe, e ali cumpria-se a profecia.
— Que profecia? Quando foi que Javé disse isso?
Eu sei lá, porra!
Com a morte de Acabe, seu filho Acazias subiu ao trono. Acazias foi um mau soberano, cujo reinado durou apenas dois anos. Ele deu continuidade aos cultos de Baal em Israel, para profunda irritação de Javé.
Josafá, que se tornara rei de Judá no quarto ano de reinado de Acabe, já governava havia dezessete anos. Durante esse período, realizou grandes feitos. Sob seu cetro, o país de Edom tornou-se colônia de Judá. Já depois da morte de Acabe, Josafá mandou construir grandes navios para trazerem ouro da misteriosa terra de Ofir, mas as embarcações quebraram antes mesmo da primeira viagem. Vendo o pouco conhecimento em engenharia naval de seu vizinho, Acazias ofereceu ajuda, que não foi aceita pelo rei de Judá. Depois que Josafá morreu e foi enterrado no túmulo da família de Davi, seu filho Jeorão reinou em seu lugar.
— Ei! E o Micaías?
Sei lá do Micaías! Deve estar comendo pão e água até hoje.
AI…ai, nada melhor que acordar no dia de seu aniversário e ver que tem capítulo novo.
Perguntas importantes:
No salário dos profetas estava incluso periculosidade?
Qual a estimativa de vida de um profeta?
Pelo menos o Micaías fez uma boa dieta… eu acho…
Aêêêê, capítulo novo!!!!!
Muito bom, como sempre!!!
antes tarde do que mais tarde ainda…
“— Só que as peças são brócolis e os jogadores vêm assim, viram pro outro lado e fazem um negócio desse jeito com os dedos da mão direita. Assim, ó. Aí jogam azeite em cima. Então um enfia a mão no bolso e tira uma coisa que é como se fosse uma caneta, mas não tem nada a ver, e joga pra cima. É justo?”
HAHAHAHAAHAHAHAHAAHAHAHAHAH…
Bom, os meus comentários acerca dessa patifaria divina já foram feitos pessoalmente.
Caralho, Marcão! Vc tá ficando cada vez melhor nesse negócio!
Só uma coisa: Se o profeta realmente fosse formado na Uninove, ele estaria prevendo o futuro de formigas saúvas do norte paquistanês, cuja única ocupação é amontoar uma CARALHADA de comida para o inferno. E a cigarra? Bom a cigarra que se foda, porque isso é a Bíblia e não conto infantil.
E o bambu? Ah… Enfia no cu!
Mas falando sério: O que significa signo na comunicação exatamente? Ainda não entendi. Huh!
Abraços, fio duma égua!
“E o meu povo come o teu povo, e os meus cavalos come os teus cavalos”. 22:4
Então… Gostaria de saber porque meus amigos paulistas iniciam frases com “então”…
Considerando que Cid Moreira vende narrações bíblicas, vislumbro uma ótima oportunidade:
A versão Marcaurelística interpretada por Tutinha (aka Djalma Jorge)!
Fico imaginando todos aqueles “lhes”. Seria perfeito. Ou não.
O curso da Uninove é tão ruim assim?
Os alunos de profecia lá tem eleição para o diretório acadêmico?
Marco, sejamos justos: vá tomar no meio do seu cu, seu viado filho da puta do caralho! Vá escrever assim na puta que te pariu, seu bosta, seu merda, seu cuzão, miserável, sacripanta, herege, pústula, biltre, safardana, maldito, corno, cretino.
Tu merecia um elogio grosseiro umas dez vezes maior que esse, mas tô no meio de uma aula de linux chata pra caralho e me escapam os adjetivos ao ver que o professor escreveu “aminézia” no último projeto que passou pra gente.
Beijos na bunda! E, cara, se o preço a pagar por um texto fodão desses é um hiato de um mês entre um post e outro, acho justo e certo que as coisas fiquem assim.
Porra, até que enfim! Quase tive um troço quando, finalmente, vi que vc ainda tem fôlego pra sacanear a Bíblia… rsrsrsrsr Valeu MESMO, adorei ler o novo capítulo do povinho mais filho da puta do planeta! rsrsrsrsrsr Vc continua escrevendo, como sempre, muuuuito bem. E veja, seu desgraçado, se não mata a gente de jejum, ok? Escreve logo outro capítulo!!! (confesso, mulher é tudo exigente… sempre quer mais, nunca estamos satisfeitas!)
Beijos!! Maria Lia
Cara, estou de acordo com o Pedro, este Marco é do caralho…Vai escrever bem assim na casa do cacete!