Itapicuru

No meu último dia em Monte Santo, Romana me mostra um áudio. “Oi, aqui é Maria, viúva de André, irmão do seu avô”. A Maria diz que gostava muito do meu pai e dos irmãos dele. Fico sabendo que Maria mora em Itapicuru, e decido que vou dar uma passada por lá no caminho para o aeroporto em Salvador. Combino tudo com o filho dela, Josuel, e tudo certo.

Ou quase.

Primeiro, descubro que Itapicuru é mais longe do que eu pensava, já quase perto da família dos meus avós maternos, em Sergipe.

E depois, porque perdi algum tempo emburacado em Monte Santo. Fui me enrolando, e quando vi já era de tarde. Acabou que cheguei a Itapicuru já às sete da noite, com todo mundo me esperando. Quando soube que eu precisava sair no mesmo dia para ir a Salvador, Maria ficou desenxabida: tinha preparado cama e tudo, pensava que eu ia pelo menos passar a noite lá. Alguma falha de comunicação entre ela, Josuel, Romana e eu.

Os valores de Maria parecem estar todos atrelados à religião: ou você é crente, o que é bom, ou não é, o que depende. Mesmo que você seja crente, precisa ver se segue a doutrina. E se é crente e segue a doutrina, tem que ver se não trocou de igreja, como fez meu pai (ela conta de uma censura que fez a ele por isso; eu ignoro). O primeiro casamento dela foi na igreja católica, então ela não considera. Quando meu tio-avô, então viúvo, a conheceu (numa igreja batista da Zona Leste aqui de São Paulo), perguntou se ela era viúva, ela disse que tinha se casado na igreja católica, não tinha mais marido, portanto era solteira.

André era 19 anos mais velho que Maria, e ela o chamava de “senhor”. Ela mostra as fotos do casamento em 1995. André se parecia muito com meu avô. Ela diz que ele era muito quieto, e ela o apelidou de Cacique. No primeiro casamento, André teve 6 filhos, 3 deles mudos.

— Deficientes auditivos, mãe! — corrige Josuel.

Eu digo que tudo bem, que ela não vai mudar agora, aos 80 anos. Ele diz que sempre corrige: eu não me ofendo, mas outros podem se ofender.

FIquei sabendo depois pelo Luís, irmão mais velho do meu pai, que Síria, primeira mulher de André, ficou grávida 22 vezes. Pelo que entendi, as crianças nasciam mortas, ou eram abortadas espontaneamente. Com esse histórico de mortes e deficiências, André não queria mais ter filhos.

— Ele sempre amou os filhos mudos…

— DEFICIENTES AUDITIVOS!

— … mas era muito trabalho, né? Ainda mais naquela época.

Maria, que já tinha filhos do primeiro casamento, não se importou em não ter mais. Pergunto o que aconteceu com o primeiro marido, ela desconversa. Insisto e ela diz que era “raparigueiro”.

— Viveu 93 anos! Quem dera o velho André tivesse vivido tanto quanto aquele troço ruim!

Pelo que entendo, André era caladão. Maria diz que os irmãos todos eram assim, e não sabe se herdaram isso de Ana ou de Salu, meus bisavós. “A família de Salu não se comunica, aí ninguém conhece ninguém”, ela diz. Por isso ninguém do meu lado da família foi ao casamento: ela só soube que havia todo um ramo da família por ali mesmo, na Zona Leste, depois de se casar.

As histórias de Maria são confusas. Não é que ela esteja senil nem nada, parece ser mesmo o jeito que a cabeça dela funciona. Ela conta uma história, pula para outra, depois volta. Estranhamente, em toda história dela aparece um homem lavando o carro. Talvez as pessoas lavem muito o carro em Itapicuru, sei lá. Ela conta que uma vez recebeu a visita de um filho de André, um dos mudos.

— Deficiente auditivo, mãe!

Ela ignora a correção de Josuel. Diz que o enteado chegou à cidade e conseguiu achar a casa dela, o que muito a impressionou. “Chegou ali em cima na casa de um rapaz que estava lavando o carro e ele, mesmo sem entender mudo, trouxe ele direitinho até aqui”.

Ela começa a me mostrar fotos naqueles slides dentro de monóculos. Diz que quer me mostrar o pai dela, os irmãos, os netos. Eu fico olhando e admirando por educação. Não estou interessado naquelas pessoas, honestamente, e o fervor religioso de Maria, que pontua tudo que ela diz, me incomoda. Não tanto pela religião, mas também porque ela joga veneno em muito do que fala dos outros, e nisso vejo o que me afastou da igreja: a hipocrisia dos religiosos.

Assim que possível, peço licença porque tenho um voo para pegar. Ela ainda quer me apresentar à vizinha, e eu vou, fazer o quê? Converso um pouco com a vizinha, depois vou até o carro. Ela me acompanha, ainda falando.

No caminho para Salvador, me pergunto se valeu a pena ir até Itapicuru. Dias depois, em São Paulo, falo dela para os meus tios, e não há muito entusiasmo em relação a ela. Parece ser uma nota de rodapé na família, alguém que nunca se encaixou direito. Ela me contou que os filhos de André nunca aprovaram o casamento, e um deles chegou a chamá-la de Dalila. Entendo que nunca vou saber tudo que essa mulher sofreu juntando o marido raparigueiro, o segundo casamento contra a vontade de tanta gente, as críticas que deviam ser constantes, e provavelmente permanecem até hoje.

Um pensamento, porém, me consola: pelo menos três dos filhos do meu tio-avô André nunca falaram mal dela…

Deixe uma resposta