Tal pai, tal filho

Meu pai tinha o dom muito especial: sempre que viajávamos, não importava pra onde, dava algum problema no carro: furava um pneu, ou dava lá uma pane qualquer. O fato de ele só ter carro velho contribuía para isso também. A gente tirava sarro, ficava em volta cornetando.

Nesses dias eu rodei o sertão da Bahia num carro alugado, zero problemas. Mas claro que meu pai não ia deixar de me visitar. Hoje inventei de ir ver um açude num povoado de Monte Santo chamado Tapera. Coloquei no Google Maps, dava 12 quilômetros. Pertinho, fui.

Saindo da cidade, pega-se um trecho de BR e a maior parte do trajeto é por estradas de terra. São boas estradas, então fui tranquilo. Só que uma hora o GPS mandou entrar numa estradinha mais estreita, irregular. Titubeei, mas tava tão perto, então fui.

Logo de cara, um buraco imenso na lateral da estradinha. Passei com muuuuito cuidado para não cair no buraco e fui adiante. Uns 100 metros depois, vi que a estrada ficava mais irregular ainda, e mais adiante nem tinha mais cara de estrada. Achei melhor voltar. Só que não havia espaço para manobrar, então fui voltando de ré. Tudo certo, tudo tranquilo, eu só precisava ir devagar, prestando atenção, e tomando cuidado pra não cair no-

PUFT

Só senti o solavanco e o carro parando. Acelerei mais, só ouvi barulho de areia. Engatei uma primeira, mas pra frente ele não ia também. Eu tinha caído no buraco. Claro que tinha.

Em outros tempos, eu ficaria irritado, xingando a mim mesmo. Depois de velho, passei a aceitar que as coisas são como são. Depois de ficar um tempinho admirando meu autocontrole e estoicismo, decidi procurar ajuda. Por sorte minha, o buraco ficava bem em frente a uma propriedade com uma casa lá no fundo, depois de duas porteiras. A primeira porteira não estava trancada, abri, andei até a outra, bati palmas, gritei o protocolar “ô, de casa!”, e nada. Voltei para o carro, peguei minha garrafa d’água para dar um gole (imaginem o calor do sertão perto do meio-dia), e comecei a pensar no que fazer. Sinal de celular, não tinha (aliás, hoje deu alguma pane na operadora, porque eu só fui ter sinal de celular uns 100 quilômetros adiante). Lembrei que tinha passado por um lugar onde trabalhavam com tratores. Depois, pensei que podia pegar umas pedras e tentar calçar a roda solta do carro. Foi eu pegar a primeira pedra, chegou um rapaz de moto. Era o dono da casa, ou trabalhava na propriedade. Nicácio.

Prontamente o Nicácio começou a me ajudar. Pegamos pedras, ele foi colocando atrás da roda, liguei o carro, engatei a ré… E nada. A roda continuava flutuando sobre o fundo do buraco, e não havia nada que se pudesse fazer.

Nicácio perguntou como eu tinha caído no buraco. Contei a história. Ele falou que a estrada não tinha saída, que o caminho para o açude era a estrada seguinte. E, além do mais, nem precisava dar aquela volta toda: o outro lado do açude ficava bem atrás das casas do povoado, quase na BR. Bom, paciência, já estava emburacado. Falei que tinha passado por um lugar onde alguns homens trabalhavam com tratores, sugeri chamá-los. “Precisa disso não, a gente tira. Vou chamar um amigo ali.”

Nicácio saiu e logo chegou com o amigo, cada um em sua moto. Era o Eduardo. Eduardo era mais engenhoso: deu a ideia de tentar levantar um lado do carro com o macaco (a ferramenta, não eu; bando de racista do caralho). Tentamos, não deu certo: não havia espaço para encaixar o macaco. Voltei a falar dos tratores. “Precisa não”. Nicácio perguntou se o carro tinha algum lugar onde fosse possível prender uma corda. Olhei embaixo. “Só se prender no eixo”, eu disse. Então no eixo seria. Eduardo saiu para buscar o carro. “Volto em uns 10 minutos”. Nicácio entrou na propriedade falando alguma coisa sobre uma raposa. Eu entrei no carro e fiquei aproveitando a brisa do sertão, que remédio?

Em bem menos de 10 minutos, Eduardo voltou com o carro dele, um gol branco com dois adesivos imensos do Lula no vidro traseiro, e umas cordas grossas. Nisso chegou um terceiro, o Ricardo. Eduardo achava que as cordas iam arrebentar. Eu e Nicácio garantimos que não. Ricardo preferiu não opinar. Por via das dúvidas, amarramos duas cordas no eixo traseiro do carro alugado, a outra ponta no engate do carro do Eduardo. Enquanto Eduardo amarrava as cordas, perguntou de onde eu era. Expliquei que era de São Paulo, mas meu pai e minha família toda eram de Monte Santo. Que sempre tinha sonhado em visitar a cidade, mas só agora tinha conseguido.

— E sua família é da cidade mesmo?

— Não, dá área rural. Da Silgueira.

—Da Siligueira? Eu tenho família na Siligueira, talvez nós até é parente!

— Meu avô era o Júlio…

Aí o rosto do Eduardo se iluminou:

— Neto de Júlio da SIligueira??? Rapaz, que satisfação! Teu avô é muito conhecido aqui, todo mundo falava bem dele.

Ali o negócio mudou. Os três estavam me ajudando, muito solícitos, como é o povo simples do Brasil. Mas ao falar o nome do meu avô, eu imediatamente me tornei um deles.

O carro já estava desatolado. Agradeci muito e falei:

— Se eu bem conheço o povo de Monte Santo, vocês não vão aceitar, mas eu tenho que oferecer. Não aceitam alguma coisa aí pelo trabalho?

Nicácio nem me deixou terminar:

— Eu mesmo não quero.

O Eduardo:

— Eu só quero que você seja muito feliz.

O Ricardo preferiu não opinar, mas ele já tinha aparecido no final e nem tinha feito nada.

Nos despedimos com abraços e trocas mútuas de “Deus abençoe”.

Transamos.

Não, mentira.

Voltei para a estrada de terra, mandei todos os açudes da Bahia tomarem no rabo, e segui viagem para Itapicuru. Essa parte eu conto depois.

Quebrar o carro é muito mais fácil sem gente cornetando. Mal aí, pai.

A resignação de um emburacado

2 comments

  1. Você está de parabéns pelo estoicismo. Irreconhecível. Euclides da Cunha ficaria feliz em escrever sobre a sua resignação, já que ele mesmo não era dia mais estóicos.

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