“Você precisa ir ver o Leôncio”, disse meu tio José, e depois minha tia Zenaide. Leôncio é primo do meu pai (o pai dele era irmão da minha avó), e nos desencontramos muitas vezes nos últimos dias. Hoje eu estava na casa de farinha (depois conto da casa de farinha), soube que ele estava em casa e, para evitar novo desencontro, fui até lá. E aí entendi por que queriam tanto que eu conhecesse o cara.
Leôncio é um líder comunitário. Bem na porta da casa dele tem um adesivo de uma candidata a vereadora pelo PT. Ele fundou uma cooperativa de agricultores familiares, uma outra associação, mas o grande orgulho dele é a escola agrícola.
Leôncio me contou que a escola veio de uma ideia que começou na França. Assim como aqui, as crianças francesas da área rural iam estudar para aprender coisas da cidade. Assim que o moleque tinha idade para isso, se empirulitava pra cidade. Chegou uma hora que o governo francês percebeu que isso ia dar merda: se a área rural se esvaziasse, o que o povo da cidade ia comer? E o povo que ficasse na área rural, ia viver do quê? Aí começaram os projetos de escolas agrícolas. (Tudo isso segundo o Leôncio, não pretendo verificar a informação).
Aqui acontecia igualzinho. Na família do meu pai, os 9 irmãos se mandaram para São Paulo assim que possível. “Não só eles!”, diz o Leôncio. Ele nasceu em 1963, mesmo ano em que meu pai foi embora. Em 1983, aos 20 anos, ele também foi. Um dia, vendo o Jornal Nacional, viu que ia passar uma notícia sobre Monte Santo. Ninguém falava de Monte Santo, nem telefone havia na cidade. Ele ficou empolgado para escutar notícias de sua terra no principal telejornal do país. Só que as notícias não eram boas: segundo um levantamento daquela época, Monte Santo era o município onde mais morriam crianças antes de completar 1 ano de idade.
A notícia comoveu Leôncio, e não só ele: organizações estrangeiras, nacionais, a igreja católica, todo mundo se descambou pra Monte Santo pra tentar resolver aquela tragédia. Não sei direito o que aconteceu, mas a taxa de mortalidade infantil melhorou muito. Faltava o problema da evasão dos jovens. “Aquilo que aconteceu com seu pai nos anos 60, continuou nos anos 70, 80, 90…”
Em 1990, Leôncio voltou a Monte Santo. Tinha aqui a casa do pai dele, construiu a própria casa, tudo lá no povoado Salgado, zona rural. Depois de um tempo, conheceu um paulistano filho de franceses que conhecia o que tinham feito na França e queria fazer o mesmo no sertão baiano (“ser tão baiano” é algo muito mal visto em São Paulo). Em 1998, Leôncio foi um dos fundadores da Escola Agrícola. Perguntei se era ali no povoado, mas é mais longe ainda. A Silgueira, onde meu pai cresceu, fica a 6 quilômetros da cidade. O Salgado, onde mora Leôncio, fica a 8. A escola fica a 20 quilômetros da cidade.
A escola agrícola oferece ensino fundamental e depois o médio, que é escola técnica. No primeiro ano do ensino médio, os alunos vão fazer estágio em seus respectivos povoados, conhecer a economia do lugar. No segundo e no terceiro, estagiam em outros povoados. Com isso, têm uma visão mais ampla
(Lembro do meu pai dizendo que tinha vontade de fazer uma faculdade para ter uma visão mais ampla do mundo. Quando falava “ampla”, ele colocava os dedos indicador e médio de cada mão nas têmporas e depois abria os braços num semicírculo. “Aaaaampla”, ele dizia, enquanto os braços se afastavam.)
uma visão mais ampla da economia da zona rural de Monte Santo. Porque cada povoado tem sua economia própria: há lugares onde se planta mandioca, em outros se cria gado, em outros o negócio é sisal, e por aí vai.
A escola foi dando resultados, formando alunos e, quatro anos depois, Lula foi eleito presidente. Ou, como diz o Leôncio: “Lula ganhou na política”. O Luz Para Todos foi uma revolução na zona rural de Monte Santo, que entrara no século 21 sem energia elétrica. A água encanada ainda está chegando
(no Salgado, as casas já têm aquele cavalete pronto, só esperando o relógio da companhai de água; na Silgueira, ainda não há previsão. A Romana me conta que os homens diziam que se vestiriam de mulher no dia em que a luz chegasse à Silgueira; pois a luz chegou e ninguém se travestiu, nem sempre o sertanejo tem palavra)
Chegou a energia elétrica, veio o Bolsa Família, que exige como contrapartida que as crianças estejam na escola. A vida foi melhorando. Hoje, diz Leôncio, na casa dele tem tudo que tem na cidade: energia elétrica, TV, internet com Wi-Fi. Os jovens hoje saem da cidade para ir cursar a universidade em Euclides da Cunha, Feira de Santana ou Salvador, mas voltam. Leôncio, um agricultor do sertão da Bahia, tem duas filhas. Uma está na faculdade em Euclides da Cunha. A outra foi para Curitiba, formou-se em Direito, já saiu da faculdade empregada, fez mestrado e está fazendo doutorado.
Ontem fui a Juazeiro e vi um grande shopping center, mas também pessoas morando em casas de pallet na beira da estrada. Em Monte Santo não se vê nem a miséria nem a riqueza ostensiva. Talvez seja essa a tal distribuição de renda.