Não, o post não é sobre a casa daquele seu primo.
Você sabe de quem eu tô falando.
“Uma vez eu passei um mês na casa de farinha”, dizia meu pai, e não explicava nada depois. Uma das várias formas que Seu Lindauro encontrava de ser irritante era deixar a conversa entrar em loop.
— O que é casa de farinha?
— É onde faz a farinha.
— E por que você ficou um mês na casa de farinha?
— Pra fazer farinha.
— …
— Ué. É cada uma…
Hoje eu entendi.
Fui a uma casa de farinha no Salgado, vilarejo próximo da Silgueira, onde meu pai cresceu. Os dois vilarejos protagonizam há décadas um clássico do futebol local. Bom, talvez não seja um clássico, porque o Salgado sempre ganha, mas sei lá de futebol.
Fui lá na casa de farinha. Logo na porta, muitas mulheres, umas vinte, sentadas no alpendre descascando o que parece ser um número infinito de mandiocas. Braços e roupas cobertos de mandioca, as que usam óculos têm os óculos cheios de resquício. Eu tinha chegado procurando o Leôncio, mas ele não estava. Fui recebido pelo afilhado dele, Isaías, um rapaz com camisa da Argentina (do Messi, claro). Ele foi me explicando como as coisas funcionavam, mas não queria aparecer em vídeo. “Quem faz vídeo é meu padrinho, ele que é o chefe”.
A casa de farinha é uma linha de produção com processos e papéis bem definidos. O caminhão (ou caminhões, quando a safra é boa) descarrega as mandiocas que as mulheres descascam. Elas são precisas e hábeis com as facas afiadas: com elas, decepam de um golpe só a ponta da mandioca e depois vão descascando (ou “raspando”, como elas dizem). Os homens pegam as caixas de plástico ou balaios de palha cheios de mandiocas descascadas e levam para dentro. Lá, os lotes de mandiocas são despejados numa máquina que ceva, ou tritura, a mandioca. Triturada, ela é uma massa úmida que contém mandioca, água e fécula, que é o que se usa para fazer tapioca. Outro grupo de mulheres mistura água nessa massa e espreme em panos. A água que sai dessa operação contém a tapioca, só precisa deixar assentar. Depois de assentada, ela é lavada para deixar branquinha, e levada para uma chapa de ferro quente em outro espaço, aquecida sobre um forno a lenha, onde elas fazem o beiju (que é o que nós em São Paulo chamamos de tapioca). O beiju que sai fresquinho e quente da casa de farinha é delicioso puro mesmo. Elas fazem beijus grandes, que são para consumo e venda, e uns pequenos, de 100 gramas, que são vendidos para a merenda das escolas.
Depois de extraída a tapioca, a massa é levada para uma prensa, onde dois ou três homens empurram uma alavanca que move o parafuso que aperta as chapas que prensam a mandioca, extraindo dela quase todo o líquido. A massa, já quase seca, é levada de volta ao cevador, que é movido para outro cocho. A mandioca que sai ali é mais fina e seca, e já lembra a farinha. Mas ainda falta um processo: o forno. Na verdade é um grande tacho metálico, também aquecido por forno a lenha, com um conjunto de pás que giram a farinha, que assim vai ficando seca e torrada.
Quando está no ponto, a farinha é tirada do forno e levada para uma peneira automática. O que sai já é farinha pronta para o consumo. O que sobra na peneira é levado de volta ao cevador e ao forno.
Nada se perde: as mulheres levam para casa as cascas que tiraram, que é usada como alimento para os animais (elas também recebem cada uma um balde de tapioca). Leôncio aproveita até as folhas e caules, que ele tritura e deixa fermentando em um tonel. Quando a seca é braba e a ração acaba, é essa ração de caules e folhas que alimenta os bichos de criação.
Entendi por que meu pai passou um mês inteiro na casa de farinha. A mandioca, Leôncio me explica, é como defunto: depois de um dia, no máximo dois, não presta mais. Agora imagine esse processo todo numa época sem energia elétrica. A ceva era manual, dois homens precisavam ficar mexendo a farinha no forno com rodos, mulheres peneiravam a farinha torrada. Famílias passavam semanas, meses até, fazendo suas farinhadas para não perder a safra.
A farinhada, que é esse processo todo, é uma atividade comunitária. As famílias vão às casas de farinha umas das outras para ajudar. Meu avô, diz o Leôncio, era dos que mais trabalhavam nisso. Tinha terras boas que davam muita mandioca, era trabalhador, esperto, e muito querido na região.
Digo às mulheres que só elas trabalham na farinhada. Lá dentro, quase todo o trabalho dos homens é feito por máquinas, mas a raspagem e a tapioca ainda são feitas manualmente. Elas riem, concordam. Leôncio e os outros ficam meio contrariados. Já existe uma máquina que faz a tapioca, Leôncio diz (e me mostra depois), mas as mulheres não querem. Talvez o negócio ali não seja produzir farinha, a farinha é só um acaso. O que conta é o senso de comunidade. Isaías definiu bem: “isso aqui é minha terapia”
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