Dona Silvana e Seu Júlio, meus avós paternos, iam a São Paulo em anos alternados. A viagem de ônibus levava três dias, imagino que havia todo um preparo psicológico para encarar, e mesmo sendo bianual eu já admiro a empreitada. Enfim, quando eles vinham, traziam tesouros no bagageiro do ônibus: marmelada, rapadura, doces de leite e de mamão. Mas o sucesso mesmo, o que reunia todos os netos em roda no quintal do tio mais velho, todos de colher na mão, não era nenhum doce: era a farofa. Hoje eu vi o making of da farofa.
Fui até a Silgueira, o povoado onde meu pai e meus tios nasceram, cresceram e viveram até a seca ir empurrando todos para o Sul, um a um. Quem mora lá hoje é a Romana, que é filha de um irmão da minha avó, e cuidou dos meus avós enquanto eles viveram em Monte Santo (1994 ou 1995, não sei bem; foram para São Paulo, minha avó viveu mais 4 ou 5 anos; com a morte dela, meu avô só queria ir também, e foi três meses depois).
Peguei o carro e fui. A Romana tinha me explicado como chegava, meu primo Edmilson tinha me dado as coordenadas no Google Maps, então saí confiante. São uns 6 ou 7 quilômetros de estrada de terra. Cheguei ao ponto das coordenadas e era só um lugar da estrada, sem casa nem porteira por perto. Fui um pouco adiante, vi uma senhora parada no quintal, perguntei se ali era a Silgueira. Confirmou. Perguntei onde morava a Romana. “Numa daquelas casas lá em cima”, ela apontou. Eu tinha passado, mas não muito. Voltei, parei na casa que achei que tinha mais cara de ser da Romana, bati palmas. Saíram a Romana e o irmão dela, Antônio, que não me conhecia. “Mas é o vô dele todinho!”, admirou-se.
Entrei. Uma casa simples, daquelas de filme nacional feita por gente rica do Sudeste com a vida mais confortável possível e um certo fetiche pela Caatinga. Tirei uma foto do quintal enquanto me balançava na rede:
Entrei e Romana já foi dizendo: “tô fazendo a farofa de vovó”. Apontou para uma bacia de alumínio já com farinha e alguns pedaços de galinha. Enquanto isso, fritava mais galinha numa frigideira grande. O segredo, ela me explicou, é fritar a galinha na própria gordura. Ela cozinha a galinha, depois despeja a gordura na frigideira e vai fritando os pedaços cozidos. O outro segredo é o corante que deixa a farofa avermelhada: urucum, que ela mesma colhe e tritura.
“Quem fazia essa farofa com ela era eu”, Romana me explicou. Ela e a irmã matavam as galinhas às vésperas da viagem de minha avó a São Paulo.
— Mataram seis galinha?! — se admirava meu avô. — Pra que tudo isso?
— Júlio, eu tenho é 9 filho, 23 neto!
— E tão passando fome?
— Tem ninguém passando fome, eles gosta da farofa. Júlio, vai pra roça, vai. Vai caçar o que fazer.
“Aí ele ia pro riacho dar o pé pras piaba beliscar”, contou a Romana. Gostei. Era literalmente o que ele fazia, mas é um baita expressão: “vai dar o pé pras piaba beliscar!”. Não é sonoro? Pois.
A farofa ficou pronta cedo, então Romana foi me mostrar a área. Um pouco para baixo ficava a casa dos meus avós, que foi demolida. Sobraram uma cacimba, um pedaço de alicerce, destroços de uma pia de cozinha e uns tijolos caídos aqui e ali. Existiu um lar ali. Agora mal existem ruínas, é só mato. O tempo, o mundo, a natureza eles tão nem aí para nós.
Fiz vários vídeos para não esquecer. A propriedade é muito maior do que eu pensava. O solo arenoso dá muitas plantas retorcidas, teimosas, espinhudas. Os trechos de caatinga são impenetráveis. Mais teimosas que as plantas, só as pessoas, que dão um jeito de tirar da terra o sustento delas e de seus bichos. Roças de pimentão, pimenta, coentro, milho, mandioca. Muito capim que Romana plantou para as ovelhas, que saem para pastar longe e obedecem ao comando dela na hora de voltar. No curral, um porco imenso, pachorrento. “Aqui é a roça do Lindauro”, ela diz. Fico surpreso ao ouvir a voz do meu pai. Parece que cada um dos filhos dos meus avós tinha sua própria roça. Mais tarde, meu tio me contou que na roça do meu pai tinha um tanque onde eles tomavam banho.
(Esse tio, José, me mandou um áudio assim: “Pra você saber como era antigamente, você vai ter que cagar no mato, limpar o cu com folha de malva, tomar banho no tanque, ao ar livre, jogando água no corpo com as mãos ou com uma canequinha”. É doido receber um áudio com a voz e o sotaque tão parecidos com o do meu pai. Respondi a ele que tomo esse banho aí tranquilamente, mas cagar no mato, nem que me paguem)
Fomos andando pelo mato e Romana me contando: o lado de lá era do meu avô, mas ele vendeu antes de se mudar para São Paulo. Ele queria vender tudo, não vendeu porque minha avó não deixou. Imagino que não queria deixar Romana desamparada. Os filhos deles vieram para São Paulo há 60 anos, casaram, construíram suas casas, tiveram filhos, netos. Ninguém pensa em voltar a Monte Santo. Fiquei sabendo que existe um acordo entre todos eles para deixar as terras para Romana. Ela trabalha numa escola da cidade, cuida dos bichos e da plantação, da casa e da vida. É muita coisa.
Quando voltamos, Romana disse que ia terminar de preparar o almoço e perguntou se eu gostava de rede. “Sua vovó amava uma rede”. Pois eu também. Depois de tanto andar no calor do sertão, eu estava suado e soprava uma brisa boa na varanda. Deitei na rede e fiquei lá, bundando, às vezes tirando uma foto:
Depois de uns minutos, Romana me chamou para almoçar. Arroz, feijão, tomates colhidos do quintal e a farofa de minha avó, com o sabor que eu me lembro da infância e não provava há 30 anos. Para beber, um suco de maracujá do mato. É um maracujazinho menor, verde, de polpa também verde, menos ácido do que aquele que a gente conhece. O suco é suave, como o de caju. Tomei um copo só porque sou envergonhado, mas a vontade era virar a jarra toda.
É difícil explicar o que é estar aqui em Monte Santo, esta terra onde nunca havia pisado antes, mas me dá a sensação de estar em casa. É como se eu tivesse prendido a respiração por 49 anos e, chegando aqui, soltasse o ar, aliviado.
*Sim, eu sei que o “making of” já contém a preposição. Me deixa.