O cara da kombi nunca vai esquecer da minha cara.
Tem uma frase que eu li no Insta semana passada: “Se 10 pessoas estão sentadas à mesa, chega um nazista e ninguém se levanta, há agora 11 nazistas sentados à mesa”. Era mais ou menos por aí, não lembro direito. Mas olha quantas profundidades se escondem por trás de uma frase simples, né? Simone de Beauvoir disse que o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos. Eu cansei de ser cúmplice faz tempo. Vocês sabem como eu sou, né? A Sandrinha e a Fê vivem dizendo que sou louca, que arrumo confusão. Mas o que eu vou fazer? Daqui do meu lugar de privilégio como mulher branca eu posso criar condições de combate à injustiça.
O cara de ontem, da kombi, que o diga.
Eu estava vindo da feirinha do MST, sabe aquela? Comprei berinjela, limão, alho… Tudo orgânico, pra fazer um babaganush mara. Coloquei na cestinha da bicicleta e estava indo para o Santa Luzia comprar pão sírio e tahine. Parei um pouco pra descansar e tirar fotos da pracinha. Fim de tarde, aquele pôr do sol maravilhoso de inverno, crianças brincando… É lindo aqui no bairro porque as crianças vão sozinhas brincar na praça. Ao mesmo tempo em que eu gosto de me sentir assim segura, fico pensando no nosso privilégio. É preciso reconhecer o privilégio todo dia. Nesse grupo, mesmo: eram, sei lá, sete ou oito crianças, e só um menino negro. Fiquei pensando se era filho de alguma empregada. E aí fiquei pensando no racismo estrutural que me fez pensar nisso. Ele podia ser de família rica também. Filho de algum jogador de futebol. Não que o negro só enriqueça jogando futebol. Esse é outro pré-conceito que a gente carrega e não percebe. O lugar do negro é onde ele quiser. Mas enfim, nem é essa a história.
De repente para uma kombi. Toda amassada, farol quebrado, uma chave-de-fenda segurando o vidro, um monte de ferrugem. Aí cês não vão acreditar: desce um cara todo esquisito, olhando desconfiado pros lados. Todo amarfanhado, barba desgrenhada. Careca-cabeludo, sabe? O cara é careca aqui em cima, aí em volta da cabeça é um ninho de cabelo. Muito esquisito. Não pela aparência, que eu nem reparo nessas coisas, mas pela atitude. Bem o jeitão de quem vai fazer alguma coisa errada.
Aí o cara pega e me abre aquela porta de correr da kombi, e lá dentro tem o quê? Um monte de doce, balões, brinquedos. Fiquei só olhando. As crianças, claro, foram chegando perto. O carequeludo… Quê? Carequeludo é o careca-cabeludo, ué. O carequeludo mudou de postura na hora! Ficou mais relax, sorridente. Eu não conseguia escutar o que ele dizia pras crianças, mas devia ser muito engraçado, porque elas riam cada vez mais alto. Ele dava doces, mostrava os brinquedos, brincava com elas.
E aí vocês não vão acreditar. O cara fez um gesto assim, de convite, e as crianças foram entrando na kombi. Duas subiram no banco da frente, as outras foram entrando atrás… Só uma criança não entrou, sabem qual? Bem o menino negro! O cara já estava contornando a kombi para sentar no banco do motorista, mas foi aí que eu intervim.
— Moço! Ô, moço! Ô, careq… — quase que eu falei, Fê! — Ô, da kombi!
Cês precisavam ver a cara de assustado dele. Machinho nunca espera ser confrontado por uma mulher, né? Ainda mais esse tipo. Ele ficou paralisado ali. Cheguei mais perto, peguei e falei assim:
— Cê tá louco?! — eu falei — Em plena luz do dia, acha que ninguém tá vendo? Doente!
Aí ele:
— Moça, eu s-só estava…
Aquilo me ferveu o sangue, menina! O cara ali gaguejando, suando. Não era o bonzão? Peguei o menino negro pela mão, perguntei o nome dele. Pior é que depois esqueci. Adilson, Róbson… Um nome desses, bem de… bem brasileiro. Não importa o nome, ali eu senti uma conexão forte com o Edmilson, ou Edilson. Trouxe ele pra pertinho de mim.
— Qual o seu problema com esse menino?
— Moça, problema nenhum…
— É porque ele é NEGRO, né? Porque você é um RACISTA.
— Moça, pelo amor de Deus…
Típico, né? “Deus”. Tem que trazer religião pra conversa. Fiquei só esperando ele falar que tinha família. Família tradicional, claro. Alguém tem dúvida de quem ele votou em 2018? Não, né? Cidadão de bem…Eu continuei falando, virada no jiraya, daquele jeito que cês sabem que eu fico:
— Qual o problema com ele, hein? Você acha que ele é diferente dos outros? Que ele é inferior?
E ele:
— Não é racismo, que absurdo! Eu tenho vários amigos negros, inclusive. Só que para o que eu quero é complicado, eles correm muito…
Cês acreditam?! Estereótipo assim, na minha cara! O sangue me subiu à cabeça dum jeito… Dei um murro na porta da kombi.
— Abre essa porra. ABRE!
O cara, todo amuado, abriu a porta. Coloquei o Róbson no banco e falei pra ele:
— Vai, filho. Vai passear com seus amiguinhos. Não deixa ninguém te dizer que você é diferente, tá?
Aí me veio… Gente, nem sei explicar. Uma emoção forte, uma vontade de chorar. Aquele sentimento de ter contribuído, sabe? De ter feito a diferença. Não sei o que me deu, mas falei pro menino:
— Eu te amo, Róbson.
Gente, um negócio que eu nunca falei pra ninguém! Pra macho nenhum, nem pra minha mãe tóxica, nem pro meu pai minion… E ali estava eu, falando para um negri… para uma criança que eu a amava. E era de verdade, um sentimento puro.
O menino começou a chorar, emocionado também, enquanto eu fechava a porta. Foi tão lindo, uma pena eu não ter lembrado de fotografar.
O carequeludo gaguejou umas desculpas; ignorei. Ele entrou na kombi, deu a partida, foi embora com as crianças. Ele nunca vai esquecer minha cara.