Solano

Eu lembro do dia que o Solano perdeu o medo da morte.

Já fazia um tempo que o Solano vinha uma conversa esquisita, um negócio até meio perigoso. Numa sociedade que preza a rotina, a ideia de Solano era um desatino. Um desvario. Uma safadeza.

Mas sempre tem aqueles né? Aqueles. Uns gostam de novidade. Outros são desajustados mesmo, não se encaixam. E outros ainda querem mais é ver o circo pegar fogo, bater palma para maluco dançar. Ou cantar, no caso de Solano. Entre novidadeiros, esquisitões e incendiários do aplauso, Solano foi ganhando seus adeptos.

Nesse dia, Solano conseguiu reunir um grupo bom, até. Duas operárias daquelas que o Chico Buarque cantava nos anos 70, que já não produziam como antes. Uma outra daquela música do Ney Matogrosso, que só reclama da fraqueza. Uns três velhos roucos, uns frangos. Até gato pingado tinha nesse dia. Solano falava, os outros concordavam. Quanto mais concordavam, mais Solano danava a falar.

— Quando nossos patrões tinham uma rotina fixa, concordo, precisávamos tê-la também. Mas agora?! Agora estão entocados, com medo. Os homens ficam dias sem tomar banho. As mulheres deixam o cabelo seguir a natureza, e nem sabem mais onde guardaram os sutiãs. As crianças gritam, correm, choram e os pais, anestesiados pelo medo e pela cachaça, deixam. Ora, se a vida deles é o caos, por que a nossa tem que seguir sendo a ordem?

Solano se empertigava, estufava o peito, andava de um lado para o outro. O público ia aumentando.

— Chega de bater ponto! A gente pega cedo no batente, e sabem o que nossos patrões estão fazendo esse tempo todo? DORMINDO! É hora de mudar, de repensar os horários. Aquele rapaz da cidade lá, como é o nome dele? Aquele ator meio marrom? Marcos, Marco, Marcelo, coisa assim. A que horas ele acorda? Na hora do almoço, o vagabundo. Então pra que a gente vai ficar acordando seis, cinco, quatro da manhã? Eu não sei vocês, mas eu cansei de cantar por nada. A partir de hoje, canto às onze da manhã. E quem achar ruim, que venha aqui tirar satisfações comigo.

O público, alarmado, foi se dispersando. Aí já era demais. “É doido”, dizia um. “Vagabundo”, comentava outro.

Sozinho no poleiro, Solano não desanima. Está empolgado com sua ideia. É um novo tempo, de novas oportunidades, de novos horizontes. Enche o peito, levanta o bico para o céu e capricha no cocoricó.

Lá da casa, uma janela se abre com estrondo. É Marcos, ou Marco, ou Márcio, com os cabelos em revolta, uma medusa de terracota.

— CALA A BOCA, GALO FILHO DA PUTA!

Solano para, suspira, desolado. É um gênio à frente do seu tempo.

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