Sessenta anos atrás essa canção mudou a música brasileira para sempre.
Ela começa em ré menor, parecendo ser mais uma daquelas músicas de dor-de-cotovelo da época: “Vai, minha tristeza, e diz a ela que sem ela não pode ser…” Mas lá pela metade vem a mudança, o tom muda para maior e a música fica otimista: “Mas se ela voltar, se ela voltar, que coisa linda! Que coisa louca!”. E no final ela fica assertiva: “Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim”. A revolução começa aí, na música de Tom Jobim e na letra de Vinicius de Moraes. Mas a verdadeira reviravolta está no baiano que gravou a música tocando violão e cantando como nunca antes se tinha visto.
No selo do compacto que tinha “Bim Bom” do outro lado, de 1958, “Chega de Saudade” era identificada como chorinho. Podia até ser quando Tom Jobim a compôs. Mas depois de passar pelo violão e pela voz de João Gilberto, “Chega de Saudade” nunca mais foi a mesma, a música nunca mais foi a mesma, o Brasil nunca mais foi o mesmo.
Em 1959, quando a música saiu no LP “Chega de Saudade”, Caetano Veloso e Gilberto Gil tinham 17 anos. Gal Costa, 14. Chico Buarque tinha 15. Edu Lobo, 16. Roberto Carlos, 18. Todos esses e muitos outros contam da mudança que aconteceu na vida deles, ainda adolescentes, quando ouviram “Chega de Saudade”. Essa influência sobre artistas tão diferentes fica clara no começo da carreira. Ouça o primeiro disco de Caetano e Gal, os primeiros do Chico, os primeiros compactos do Roberto, e você vai notar que é uma molecada imitando João Gilberto.
Os grandes compositores e intérpretes do Brasil nasceram de João. E não só isso: ele deu uma nova vida à música brasileira antiga. Todos os grandes compositores dos anos 30 e 40 estão presentes na discografia de João. É como se toda a informação musical do Brasil se condensasse num só ponto, João, que então explode para todos os lados, dando origem a um novo universo musical aqui e no mundo.
João Gilberto é o Big Bang.
João não foi só “uma pessoa conhecida”, como disse o imbecil-mor quando da morte dele, em julho. João Gilberto é a visão de um Brasil ideal, capaz de beleza, de perfeição, de poesia.
Eu conheci João em 1991, aos 16 anos. Fiquei obcecado por ele. Decidi aprender a tocar violão só para ver se um dia conseguia tocar “Chega de Saudade”. Consegui.
Quatro anos depois de começar as aulas de piano, eu ainda não estava pronto para tocar “minha” música. Sei o quanto ela é complicada. Mas aí João fez essa besteira de morrer, e eu precisava homenageá-lo. Então escolhi “Chega de Saudade” para tocar na audição de fim de ano.
Foi a primeira vez nesses quatro anos que a professora Cristina Simalha ficou com dó de mim. Ela foi escrevendo o arranjo e entregando pra mim aos poucos, quase que pedindo desculpas.
(Era muito, muito difícil. Eu sentava na frente do piano, olhava para a partitura e desistia. Quando tentava tocar, não saía nada. Eu me irritava, saía, ia dormir. Contei isso, e a Cris: “Será que você não está com depressão?” Fui investigar e, de fato, estava com depressão. Comecei a me cuidar. Depois disso, a música foi saindo. Vejam vocês: a paixão por João Gilberto e a sensibilidade da minha professora fizeram eu me tratar. Isso fez — e tem feito — toda a diferença.)
Bom, ontem foi dia de tocar a música em público. Ela estava saindo muito melhor do que isso em casa, mas ponho na conta do nervosismo. Errei muito, mas não ligo. Fiz o que aprendi com João: o melhor que eu podia.
Obrigado, Cris. Obrigado, João.
Muito bom!
Parabéns!
Além do DOM de escrever você tem TALENTO para tocar!!!! Parabéns 👏👏👏
Heh… Me fez lembrar do Balde de Gelo… 😀
Peitudo você, hein?
Não sei ao certo o que é mais antigo: o tempo que te “sigo” ou o tempo que tenho vontade de tocar piano. Nunca comecei as aulas e não sei bem o porquê, apenas vou adiando até ficar velho demais para começar…
-Primeiro comentário da página de 2020!!!
– E daí?
Que lindo, Marco!