Oséias, rei de Israel, entra no palácio real egípcio. Foi uma longa viagem. Ele talvez pensaria no caminho contrário feito por seus antepassados guiados por Moisés, mas tirando alguns sacerdotes e profetas meio amalucados, ninguém mais fala dessas lendas antigas nas Dez Tribos do Norte. Bom, Dez Tribos é forma de dizer: graças à incompetência do rei anterior, Peca, a Assíria já havia anexado boa parte do território. Israel era agora pouco mais do que a capital, Samaria, e as terras em volta. Oséias liderou uma revolta contra o rei enfraquecido, foi vitorioso e assumiu o trono. Corre o boato por Israel e pelas terras vizinhas de que ele teria sido colocado ali pelo próprio Tiglate Pileser, soberano assírio. Ele não confirma nem nega. Só quer livrar o próprio rabo. Então está ali, batendo as sandálias num degrau para tirar o grosso da poeira, sem pensar em Moisés, em Mar Vermelho, apenas na sede que tem e na missão que o traz aqui. Ele vê um homem passando. Negro retinto, alto, a cabeça raspada.
— Ô, rapaz!
O homem o ignora.
— Xiu! Negão! Ô, negão!
Nada. Oséias se lembra de uma velha piada egípcia.
— Ôôô… MÚMIA DE FITA ISOLANTE!
O homem se vira lentamente e dá de cara com aquele homem sujo de poeira, descabelado, os lábios rachados. Um mendigo? Um louco?
— Como disse?
— O escutador de samba tá quebrado?
— Hein?!
— TÁ SURDO, NEGÃO? Vim aqui falar com o rei… como é mesmo o nome dele?
— Sô.
— É o quê?
— O nome do rei, Sô.
— “O nome do rei, sô…” Cê é mineiro?
— O rei se chama Sô.
— Sô? Só Sô?
— Eu sou só Sô.
— Agora cê já tá falando língua de africano. Não sou da sua tribo não, filho. Cadê o rei… Sô? É de quê esse “Sô”? “Solange”?
— Pergunte a ele.
— Eu perguntaria se conseguisse saber onde encontro o corno.
— “O corno” sou eu.
Pela primeira vez Oséias nota de verdade o homem. As roupas dele são reluzentes. Muito ouro, pedras preciosas. É a primeira vez também que Oséias se dá conta da própria aparência. Talvez o negro tivesse o direito de tratá-lo mal, mas não o contrário. É evidente que é o rei que está na frente dele. Oséias cai de joelhos.
— VOSSA CRIOULÊNCIA! Perdoe este seu servo. Não sabia que o rei era afro-egípcio.
Oséias não sabia (nem eu, até ontem) que a 25ª dinastia egípcia foi formada por reis etíopes. Algumas traduções da Bíblia falam em Etiópia, outras de Cuxe (que era o nome de um dos filhos de Cam, filho de Noé, que seria o antepassado de todos os negros), outras ainda de Núbia. Não se trata da Etiópia atual, mas um pedaço de terra que corresponde mais ou menos ao atual Sudão. A terra de Cuxe tinha sido parte do império egípcio, mas conquistou a independência em 1.100 a.C. e foi se tornando um reino cada vez mais poderoso. A capital era a cidade de Napata, perto de onde fica hoje a cidade sudanesa de Karima. Em 732 a.C, enquanto os assírios estavam ocupados com a Síria e Israel, os etíopes conquistaram partes do Delta do Nilo. 1
Mas voltando à cena, está lá Oséias de cara no chão, tentando consertar e pensando “puta que pariu, eu que caguei na entrada”. Sô não tem tempo para salamaleques:
— Levanta daí, maluco. Quem é você? O que você quer?
— Sou Oséias, rei de Israel.
— Rei? Você é o rei de Israel? Eu sabia que Israel ia mal das pernas, mas nem tanto. Se o rei tá nesse estado, imagino o povo…
— Foi uma longa viagem, Vossa Negritude. Mas não vem ao caso. Estou aqui para pedir sua ajuda contra os Assírios.
— Ah, eles estão cercando Samaria, né? Tô ligado, mano. Cês são sangue ruim mesmo. O maior império do mundo cercando ali, e vocês firme. Foda.
— Pois é, mas não sei quanto tempo isso ainda dura. O poder deles é infinito, e nós somos só um pequeno reino.
— Peraí. Seu nome é Oséias, não é? Não era você que quebrava os dentes se o Tiglate Pileser levasse um chute no saco? Cê não era boneco do Pul? Que houve?
— Porra, esses boatos… O negócio foi o seguinte…
* * *
O rei anterior, Peca, tinha sido um desastre. Sob seu comando, Israel perdera boa parte de seu território. Então Oséias comandou uma revolta, matou o rei e tomou seu lugar. Isso foi em 732 a.C., quando Acaz já era rei de Judá havia doze anos. Oséias subiu ao trono e tratou logo de ficar pianinho com o Império Assírio. Pagava impostos, mandava presentes, enviava mensagens de bom dia no WhatsApp. Era tanta bajulação que logo o povo desconfiou que ali havia coisa. E com razão: documentos assírios da época dizem que Oséias tinha sido escolhido por Pul. Então tudo ia bem, daquele jeito.
Só que Pul morreu em 726 a.C. e Oséias achou que era uma boa oportunidade para revoltar-se. O cara quando é chegado numa conspiração, ninguém segura. E não foi só ele: muitas nações sob domínio assírio aproveitaram a transição para tentar a sorte — inclusive a Babilônia, cada vez mais poderosa. Só que o filho de Pul (chamado pelos revoltosos de filho da pulta), Salmaneser, não estava para brincadeira. Foi com seu exército até Samaria, cercou a cidade. Quando encontrou com Oséias, ele se fez de besta.
— Eeeeeu? Revooooolta? Magina, meu rei! Tô aqui de boínhas. Quê? O imposto não chegou? É esse Bradesco que é uma merda, majestade. O senhor tem conta em outro banco? Aceita Paypal? A gente dá um jeito nisso. Posso te fazer um cheque? Só não quero que a gente fique mal. Somos parceiros há tanto tempo! Seu pai foi um grande amigo, eu amo a Assíria, passo férias lá… Como prova de minha lealdade, lhe entrego esse presente.
— Hum. Que é isso?
— É uma garrafa com areia colorida formando uma paisagem. Linda, né? Obra de arte de muito valor…
— Isso aqui é uma quinquilharia.
— Bom, com o que a gente paga de imposto não sobra muito pra comprar presente…
— COMO É?
— É simples, mas é de coração. Aceite, por favor.
— Olha aqui, Ozônio…
— Oséias.
— OLHA AQUI, OZÔNIO…
— Eu mesmo, seu criado…
— Tem muito povo importante se revoltando império afora. Perto da Babilônia, Israel é um apêndice supurado, um siso cariado. Eu vou deixar passar, porque tenho coisas mais importantes e urgentes para resolver. Mas fique avisado: se eu desconfiar que você está tramando alguma coisa pelas minhas costas, eu vou EXTRAIR Israel do mapa. Entendido?
— Tramando? Pelas suas costas? Majestade! Sou seu servo fiel, estou aqui para apoiá-lo no que precisar. Pode contar comigo.
Salmaneser não ficou para suportar a lambeção de Oséias. Tinha mesmo problemas mais urgentes para resolver. E, assim que ele virou as costas, Oséias se empirulitou para o Egito. Ia pedir a ajuda de Sô.
* * *
— Bom, então você mentiu para o rei da Assíria.
— Digamos que omiti algumas informações estratégicas…
— Mentiu. E fez muito bem. Pode contar com minha ajuda, Oséias. Mas apenas financeira. Eu não vou me meter em conflito direto com esse Salmaneser aí, não. Não sei ainda qual é a dele, e aqui no Egito tá tudo tranqüilo. Não vou arrumar sarna pra me coçar. Tá bom pra você?
— Tá ótimo, meu rei de ébano… De quanto estamos falando mesmo?
* * *
De volta a Samaria com o bolso cheio de dinheiro, Oséias está confiante. Não vai mais pagar imposto nenhum à Assíria. Salmaneser que se lasque. O negócio agora é equipar o exército, reforçar as muralhas e…
— Rei Oséias?
— Quem é?
— Exército do Império Assírio. O senhor está preso por traição.
— Traição? Eeeeeu? Eu jamais trairia meu grande soberan…
— Calaboca.
— Pois não.
A notícia sobre a visita de Oséias ao Egito tinha corrido rápido, e Salmaneser logo tomou providências. Oséias foi levado para a prisão e Samaria foi cercada. Se Oséias tinha esperança numa intervenção do rei do Egito, podia esperar sentado. Vários outros povos tinham pedido ajuda ao Egito naquela época. Interessava ao Egito conter os avanços do Império Assírio, mas só nos bastidores, com agitação e financiamento. Quando o bicho pegava mesmo, não vinha do Nilo ajuda nenhuma. Ou seja: o faraó fazia a egípicia.
A intenção era resolver logo o problema, mas uma combinação de teimosia com dinheiro egípcio fez o cerco durar três anos. O que foi um problema para Salmaneser: desgastado por levar tanto tempo para subjugar um reino minúsculo e enfraquecido, ele foi assassinado. O usurpardor, Sargão II, mandou parar de frescura, cerco, guerra psicológica e não sei mais o quê: a ordem era invadir na força bruta, matar quem resistisse e deportar quem sobrasse.
Uma vez decidida, a ação foi rápida. Vinte e sete mil israelitas foram deportados para partes distintas do Império Assírio. Ficou em Samaria apenas a ralé, sem ânimo nem condições de resistir ao domínio estrangeiro.
* * *
E assim, pouco mais de duzentos anos depois da revolta de Jeroboão que dividiu o reino em dois, chegava ao fim o reino de Israel. De lá para cá, muitas lendas surgiram sobre o destino das Dez Tribos perdidas de Israel. Em 2005, Israel reconheceu um pequeno grupo do nordeste da Índia, chamado Bnei Menashe, que se identificava com a tribo de Manassés. Os 7200 integrantes da Bnei Menashe receberam vistos de entrada em Israel.
Existem lendas entre os pshtuns, grupo étnico do Afeganistão, de que eles seriam os remanescentes da tribo de Efraim. Cientistas começaram um estudo genético em 2010 para estabelecer esse vínculo. Não houve resultados conclusivos.
A comunidade tradicional judaica de Bene Israel (“filhos de Israel”), na Índia, também alega ser descendente de uma das dez tribos. Nunca foi reconhecida por Israel.
A comunidade Beta Israel (“casa de Israel”), da Etiópia, acredita ser descendente da tribo de Dan
Os Judeus Igbo, da Nigéria, dizem ser descendentes de várias tribos: Efraim, Naftáli, Manassés, Levi (a tribo dos sacerdotes!), Zebulom e Gade. Até aí, eu também posso dizer que sou neto do Chuck Berry. Só que eu não posso provar. Eles também não, então não receberam nenhum reconhecimento.
Além desses grupos, há teorias malucas: as Dez Tribos perdidas de Israel teriam originado os índios americanos, os ingleses e até os japoneses. O mais provável, porém, é que eles tenham sido assimilados. Como diz Isaac Asimov, o incrível não é que as Dez Tribos tenham desaparecido, mas sim que as duas tribos que formavam o reino de Judá, tão pequeninas, tenham resistido à assimilação e chegado até os dias de hoje.
* * *
Toda essa história está nos primeiros seis versículos do capítulo 17 do segundo livro dos Reis. Os versículos de 7 a 23 são uma recapitulação: contam que Israel adorou outros deuses, desobedeceu a lei de Javé, e por isso foi destruído. Acredita-se que os livros de Josué, Juízes, I Samuel, II Samuel, I Reis e II Reis tenham sido escritos na volta do exílio de Judá, 47 anos depois da conquista babilônia em 586 a.C. Trechos como esse, então, serviam de alerta: ou vocês seguem a religião direitinho, ou o bicho vai pegar de um jeito pior da próxima vez, como aconteceu com o reino de Israel.
— Reino de Israel? Que é isso?
— Exatamente — diz Javé, que ficou o capítulo inteiro sumido.
- Segundo Isaac Asimov no Asimov’s Guide To The Bible, livro importantíssimo para a história deste blog, foi isso aí que aconteceu. A 22ª Dinastia, da Líbia, estava no fim. No Delta, dois reis egípcios da gema formaram a breve 24ª Dinastia. Enquanto isso, uma linhagem de reis “etíopes” começava a 25ª Dinastia, no sul. Na verdade não é tão simples. Não existe registro de um rei chamado Sô. Segundo Asimov, registros assírios da época falam de um rei chamado Shab’i, que ele deduz ser o faró etíope Shabaka. Só que Shabaka começou a reinar em 705 a.C., dezessete anos depois da morte de Oséias. Esse verbete da Wikipedia (baseado no livro Who’s Who in the Bible, de Richard Coggins) diz que alguns estudiosos dizem que Sô seria na verdade a cidade de Sais, e que o monarca ali seria Tefnakht, rei entre 732 e 725 a.C. na breve 24ª Dinastia. Só que a principal cidade do Egito nessa época era Tanis, então o rei com quem Oséias foi se encontrar poderia ser Osorkon IV, da Dinastia Líbia (22ª), que reinou de 730 a 715 a.C. Sim, as dinastias são contemporâneas, é uma zona da porra. Segundo Coggins, o registro assírio mencionado por Asimov seria de um comandante chamado Siebe. Se Asimov estiver correto (o que parece improvável), o rei que recebeu Oséias foi Piye, o primeiro da Dinastia Etíope. E por que eu decidi adotar essa versão? Dois motivos. Primeiro, que tenho carinho pelo livrão do Asimov, que me acompanha por aqui desde 2002. E segundo que é muito mais engraçado imaginar o rei israelita chegando ao palácio e encontrando um faraó preto.
Legal demais. O retorno da recapitulação bíblica veio em um nível superior. Good job, man!
Com o tempo que este fariseu aqui gasta trabalhando para paga impostos não sobra muito para vir aqui dar umas chicotadas, então segue algo simples mas de coração: vai escrever bem assim lá no reino de Israel, Marcão!
Muito bom, Marcurelho!!!
Você nem imagina como faz bem seus textos!
Sucesso sempre!