Seu Lindauro e o capoeirista


Monte Santo — o cenário

Monte Santo


Monte Santo é uma cidadezinha perdida lá no sertão da Bahia. Foi célebre em duas ocasiões: quando Gláuber Rocha filmou lá Deus e o Diabo na Terra do Sol, em 1964, e quando Tizuka Yamazaki fez a versão televisiva de O Pagador de Promessas, em 1988. E daí? Daí que lá nasceu meu pai, e foi lá que se passou a história que vou contar.
As origens da família se perdem numa curva lá atrás, no século XIX. Sei que meus avós nasceram em Monte Santo, assim como meus bisavós e, desconfio, os tataravós. Daí para trás nada mais se sabe. Eu arriscaria dizer que a família está na cidade desde os Neanderthais, não fossem estes, como sabemos, uns narizes empinados que não saíam da Europa por nada. Azar o deles: acabaram extintos. O Homo sapiens, por outro lado, arriscou migrar para Monte Santo e por lá prosperou: teve filhos, os filhos tiveram filhos, e assim sucessivamente até aparecer Mané, que gerou Júlio, que gerou Lindauro, que gerou o estrupício que vos fala, incapaz de manter uma linha narrativa. Mas retomo.
O negócio é que desde criança ouço histórias sobre a juventude de meu pai em Monte Santo. Quando menino, elas me encantavam. Tinha uma favorita: meu pai dizia que certa vez apareceu na cidade um capoeirista vindo de Salvador. Tocou o terror na cidade, comprou briga com todo mundo, um inferno. Até o dia em que bateu nos meus tios. Meu pai, emputecido, foi e deu uma surra no tal capoeirista, que sumiu da cidade de madrugada para nunca mais voltar.
Ah, a infância! Seu Lindauro me contava essa história e eu me empolgava, acreditando em cada detalhe vívido narrado por ele. Mas aí veio a puberdade e com ela a desgraça do ceticismo. Pronto: era meu pai começar com a história do capoeirista para eu revirar os olhos. Percebendo que eu o tomava por mentiroso, desistiu de contar a história.
E eis que em outubro de 1998 fui trabalhar numa empresa no Largo do Arouche. No mês seguinte, enquanto nos dirigíamos para o restaurante em que se daria a festa de fim de ano da empresa, o Márcio, que trabalhava na mesa ao lado da minha, comentou sobre seus planos para as Festas:
— Estou pensando em ir visitar a família em Monte Santo.
— Onde?
— Monte Santo, cê não conhece.
— Pior que conheço…
— Já sei, vai falar daquela Monte Santo de Minas…
— O cacete, com essa sua cara de baiano? Tô falando de Monte Santo mesmo, perto de Euclides da Cunha, sertãozão da Bahia.
— Eita! Como é que você conhece aquele fim de mundo?
— Pois meu pai é de lá, rapaz!
— Como é o nome do teu pai?
— Lindauro.
— Hum… Esse nome não me é estranho…
— Vixe. Ei, já pensou se formos parentes?
— Deus me livre!
— Não é difícil, não é difícil… Ali nego casa com a prima, acaba todo mundo sendo aparentado.
— Isso é. Vou ver com minha mãe se ela conhece sua família.
— Vou fazer o mesmo com meu pai.
Passou a festa, passou o Natal, o Ano Novo. Começo de ano, lembrei de perguntar ao Márcio:
— E aí, descobriu alguma coisa?
— Rapaz, o pior é que somos parentes mesmo.
— Pára com isso!
— É sério. Meu avô era primo do seu avô.
— Então nós somos…
— Primos em terceiro grau.
— Eita. Bom, nem é parentesco de verdade.
— Nem é. Mas o mais legal foi quando falei pro meu primo. — Acho que era primo, não me lembro.
— Por quê?
— Disse a ele, “Tô trabalhando com o filho do Lindauro, conhece?”.
— E ele?
— Arregalou os olhos. “Lindauro, aquele doido???”.
— Peraí. Doido? Meu pai? Meu pai é crente, Márcio.
— Ah, mas a fama dele é de doido. Esse meu primo viu seu pai dando um couro num capoeirista que andava infernizando o povo lá em Monte Santo. O tal valentão sumiu sem deixar rastro.
À noite, cheguei em casa já me preparando para a vergonha que seria dar a mão à palmatória do velho.
— Ô pai. Tô trabalhando com um sujeito que tem família lá em Monte Santo.
— Ah, é? Que beleza!
— Pois é, pois é… E ele tem um primo lá que disse que você é doido.
Rê-rêêê! Doido por quê?
— Porque você botou um cara lá pra correr…
— Ah, o capoeirista? — o velho mal conseguia disfarçar o sorriso de vitória — Aquilo não foi nada não. Mexeu com meus irmãos, queria o quê? Bati mesmo. Lógico!

47 comments

  1. HAHAHAHHAHAHAHAHAHAHAHA
    Quando meu pai contava histórias q ele fazia e acontecia eu na adolescencia tb não acreditava. Hoje em dia eu não duvido de nada. hehehehe

  2. Bem bacana essa história.A gente faz isso todo dia com os velhos da gente…
    Mas olha só:escrevo mais para comentar que conheço Monte Santo, Euclides da Cunha, Cançanção, Valente, toda aquela área, enfim.
    Sou fotojornalista e estive lá fazendo um trabalho que ficou bem interessante.
    Acabou que fiz um amigo lá, um cara que ficou de guia que, como todo bom baiano, veio me visitar e conhecer minha família.
    Povo bom esse povo de Monte Santo.
    Abraços para seu pai, corajoso que só a porra!!

  3. Marcorélio, se você pensa que me assusta com essa história, está muito enganado. Se pegar a minha saia vermelha de novo, te cubro de porrada outra vez, tá, biba ?

  4. Quantas vezes fazemos esse tipo de merda, de desdenhar das coisas importantes só porque são próximas! De achar que “o gramado do vizinho é mais verde”, sem ver o jardim onde pisamos!
    Marco, nem conheço você, quanto mais teu pai. Mas diz que eu mandei um abraço pra ele.

  5. Não é só na Bahia que primo se casa com prima. Eu mesmo, nascido em São Paulo e criado aqui em Londrina, sou casado com minha prima de Curitiba, provando que o presente é um jogo entre o que foi e o que será…

  6. Aconteceu algo semelhante comigo,foi com a minha santa avó Angelina.Um dia fui checar a veracidade em São Luís do Paraitinga, o causo envolvia uma casa de tolêrancia, e , claro, minha querida vovó…porra…éra verdade….sou um legítimo NETO DA PUTA !!!!

  7. A estória é ótima, e bem feito pelo vexame, já passei muitos desses também…
    Nenhuma vai superar a do ‘prestamento de confiança’.
    Adorei seu all star.

  8. Tem coisa melhor no mundo do que, um dia na vida, a gente voltar a ver nossos pais como nossos heróis?
    Tem não. Ou tem…tem…mas agora, nesse exato momento, não.

  9. Nunca duvidei muito do meu pai não, mesmo pq as histórias dele não tendem tão ao absurdo (pegando carona nos comentários q fizeram do filme Big Fish, fantástico por sinal). Já meu avô, vixe… este contava história. Era daqueles que dava conta de consertar um relógio, à meia noite, debaixo d’água, manja? [ ]’s

  10. Meu pai é muito pacifico. As mentiras dele se resumem a futebol. Não vem me dizer que alguem viu ele fazer aquele gol de bicicleta contra o Madureira que eu não acredito, ta bom?

  11. Vai duvidar do pai, vai… o meu é faixa preta de karatê e, dizem, foi o melhor discípulo do sensei japa que introduziu a arte aqui em Minas. Não tinha pra ninguém, paulista, carioca, mineiro ou baiano, entrava na frente dele o couro comia…

  12. as histórias q vc conta sobre o seu pai são ótimas! adoro qd tem post sobre ele… 🙂
    sempre fica um tom de “tá vendo? esse é meu pai!”… lindo ver o amor q vc sente por ele…
    ah, o post do “prestamento de confiança” me fez chorar qd eu li o seu arquivo… e agora de novo… 😛
    eh uma das coisas mais lindas q eu li no seu blog…

  13. Putz cara, quem esta se deliciando com essas historias sou eu! Adoro esses episodios antigos, passados de geracao em geracao, ainda mais no seu caso, que voce esta contando o caso e o atualizando, com um fato ocorrido com voce, e agora o conto vai ser contado da sua versao, que vai mostrar a historia original e mais a sua, ai os seus filhos e, por ai vai… hehehehe Imaginei um pouco…
    Abracao Marco, continue passando pra frente estes ensinamentos =)

  14. Eu tenho uma história parecida com meu pai. Até contaria, mas é longa. A única diferença é que eu nunca duvidei da briga em si, porque meu pai sempre foi bem esquentado… eu duvidava de que ele tivesse sido dono de um bar em plena boca do lixo, na década de 60…

  15. O tal do Lindauro não tá com nada. Cabra mentiroso. Ele que pagou o Márcio para confirmar a estória. E você acreditou.
    Ele nunca me bateu…

  16. Em três semanas (provavelmente menos do que isso) esse blog alcança a marca de 800.000 visitantes. Vai ter presente pro visitante n° 800.000?

  17. Não sei do que gostei mais.
    Se dos parágrafos iniciais, onde você inicia o história (morri de rir). Ou se da história, propriamente dita (simpática).
    Talvez o melhor mesmo seja os talentos que você desperta entre seus leitores. O comment sobre o NETO DA PUTA está me matando de rir toda vez que eu me lembro dele.

  18. Oi Marcurélio, lembra de mim? Pois é, ando quietinha mas continuo lendo seus textos.
    Sabe, o que eu achei mais legal nisso tudo foi você conhecer o Márcio e saber da veracidade dessa história enquanto seu pai ainda é vivo, poder dar a mão a palmatória e ver o sorriso de vitória dele.
    Já pensou se você só descobre isso depois que o véio já partiu?
    Dessa vez, pelo menos, o acaso não te sacaneou.
    Bjs
    Elacoelha

  19. Pô cara tu é filho do Lindauro??? Aquele desgraçado me deu uma surra no sertão da bahia à um tempo atrás! Tudo só pq eu dei uns sopapos nos viadnhos dos irmãos dele! Ah mas se eu pego o Lindauro hoje em dia… Olha que eu ainda treino capoeira hem!! =P

  20. Putz,encontrar mais um perdido de Monte Santo no mundo.Nasci em Itiuba,seu pai provavelmente conhece.Ele é conhecido da minha familia.Pergunta pra ele se ele lembra do coronel Aristides de Itiuba.

  21. Rapaz, reli a história do capoeirista do Seu Linduro após uns 3 anos… e, tal qual da 1 vez, me arrepiei ( a história é mto boa, assim como forma q eh narrada). Mas o que mais me chama atenção é que me vc lembra o Ratinho, Carlos Massa. Hein? Eu me orgulhava todo de falar que “conhecia” o Ratinho desde o Programa ” Cadeia”, na antiga CNT, de Curitiba, bem antes de ele ir para Record, SBT, etc.. O gordo taí, com mais de 150 milhoes de dólares de patrimônio e, bem ou mal, famoso que só o capeta. Agora tenho o orgulho de falar que ” conheço” o Marco Aurélio, redator do CQC, desde 2002, qdo conheci esta bagaça aqui. Bom, que se foda isso, né. Só queria dar a vc os parabéns, pq sempre pensava ” esse Marco escreve bem pra caralho, mas tá sempre sem grana “. Agora, se nao tá rico, pelo menos caminha para isso e, melhor, as portas se abriram. abç

  22. Já levei uma dessas (risos). Meu pai era o craque da bola, segundo ele. Mas achava um exagero danado até que um daqueles primos bem distantes ir em casa e começar a comentar sobre as partidas de futebol… Fiquei com o queixo caído (até porque eu era um tremendo perna de pau…).

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