— Moisés, cadê você?
— T-tô a-aqui.
— Ôpa. Seguinte, puxa uma cadeira, que a conversa vai ser longa. Tenho que te passar umas leis aí.
— L-leis? M-mas já n-não ba-bastam os D-Dez M-M-MMandamentos?
— Claro que não! Esse monte de gente aí não se governa com só dez mandamentos não, Moisés. Tem que ter leis detalhadas, penas severas e bem definidas, tabus. Tem que botar medo nesse povo, muito medo. Ah, você aprende. Tá pronto pra ouvir?
— D-diz aí.
— Pois muito bem, vamos começar pelas leis a respeito dos escravos…
— E-escravos? Q-que e-escravos?
— Os escravos de vocês, oras. Lerê-lerê-Lerelereleiê, aquele negócio. Ô, mas cê tá burro hoje, hein?
— M-mas n-não é um pa-paradoxo a g-gente ter e-escravos? F-fomos e-escravos no E-Egito p-por ta-tanto tempo…
— Ah, Moisés, você não sabe de nada. A escravidão é necessária para o bom funcionamento de qualquer sociedade, entende? Mesmo em sociedades ditas livres, a escravidão existe. Percebe a sutileza da coisa? Oquêi, vamos em frente. Escravos, escravos… Olha só, por exemplo: Se um cara compra um escravo hebreu, esse escravo vai servir por seis anos, mas deverá ser libertado no sétimo.
— Q-quanta b-bondade…
— Como disse?
— N-nada.
— Hum. Então, o cara será livre depois de sete anos. Se entrou sozinho, sai sozinho; se entrou com a mulher, sai com a mulher. Agora, se entrou sozinho e o dono dele arrumou uma mulher pra ele, e tiveram filhos; quando ele for liberto se fode: Tem que deixar a mulher e os barrigudim na casa do dono. A não ser que o escravo diga que quer ficar com a mulher e os filhos: Nesse caso, o proprietário o levará na presença dos juízes, furará sua orelha com uma sovela, e ele será escravo pra sempre.
— Q-que s-sorte, não?
— Cê falou alguma coisa?
— E-eu? E-eu não…
— Tá. Então. Aí suponha que um cara venda a filha dele como escrava; ela não vai ter esse direito aí de ser libertada no sétimo ano.
— P-por quê?
— Ora, por quê… Porque sim, Moisés. Porque eu quero, e eu sou é deus. Oras. Então. Mas se o senhor dela não se agradar da menina, deverá permitir que ela seja resgatada pela família. É proibido vendê-la a algum povo estrangeiro. Só que tem o seguinte: Se o senhor resolver casá-la com um filho, deverá reconhecer seus direitos de filha. E se depois ele casar o filho com outra mulher, não poderá diminuir o mantimento da primeira, nem as roupas, nem os direitos conjugais. Se assim não fizer, ela sairá de graça. Hum. É, quanto aos escravos acho que é isso. Aí tem toda a parte pra quando uma pessoa matar a outra.
— M-mas p-precisa i-isso? C-cê já n-não fa-falou nos D-Dez M-Mandamentos que q-quem ma-matar se fo-fode?
— Falei, Moisés, falei. Mas não é tão simples assim. Veja só: Se um cara matar outro, pena de morte pra ele. Mas se não foi na deslealdade, se eu que tiver feito o cara cair nas mãos dele, então ele deverá fugir para um lugar que eu vou determinar depois. Aliás, deixa eu marcar isso no Palm pra não esquecer… Pronto. Que mais, que mais… Ah, quem agredir o pai ou a mãe, morre. Quem raptar um homem, se fodeu, morre. Quem amaldiçoar os pais, rá!, morre.
— P-porra, é p-pena de mo-morte pra t-tudo???
— Claro que não, Moisés. Não sou tão mau assim, já dizia Raul Seixas. Se dois caras brigarem e um cair de cama, mas depois de uns dias se recuperar, o outro não vai ser condenado à morte; só vai ter que pagar os dias de trabalho que o cara perdeu e ajudar no tratamento. Se alguém der umas chibatadas em seu escravo e ele morrer, será punido. Mas se o escravo fiacr vivo uns dois dias, fica por isso mesmo.
— C-como???
— Ué, Moisés! É só um escravo, propriedade do cara! Oras. Putz, agora perdi o fio da meada, deixa eu ver aqui… Muito bem. Se houver uma briga e uma mulher grávida for ferida e abortar, os caras que estavam brigando vão pagar uma multa no valor que o marido da mulher estipular. Mas se houver morte, ah… Peraí, que eu vou falar um negócio pra ficar gravado na cabeça de todo mundo: Vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por…
— … Fe-ferida p-por fe-ferida. T-tá, j-já sa-saquei.
— Certo. É bom mesmo. HUMPF. Ah, por falar em olho e dente, tem mais umas coisinhas aqui sobre escravos: Se um patrão ferir o olho ou tirar um dente de um escravo, o escravo será libertado por isso. E agora, leis sobre animais.
— A-animais??? Ô Ja-Javé, cê n-não t-tá e-exagerando c-com esse ne-negócio?
— Exagerando nada! Se você soubesse o que pode acontecer de confusão por causa de bicho… Por exemplo: Se um boi chifrar uma pessoa, e a pessoa morrer, o que você faz?
— Pu-puxa. N-nunca p-pensei nisso…
— Tá vendo? Eu tô te falando, Moisés, a lei tem que ser bem detalhada! Nesse caso aí: O boi vai ser apedrejado e jogado fora, mas o dono será absolvido. Agora, imagina a seguinte situação: O boi era bravo, vivia correndo atrás dos outros. O dono, advertido disso, não tomou nenhuma providência. Aí o boi chifrou uma pessoa e a pessoa morreu. Então sim, o dono e o boi serão mortos. A não ser que a família da vítima prefira indenização, nesse caso o dono do boi vai pagar o que a família quiser. Outro caso: Um boi mata um escravo. Aí o dono do escravo vai receber trinta siclos de prata e o boi será apedrejado. E então temos a situação oposta, que é quando o animal de alguém é morto. Digamos que alguém cave um buraco, deixe aberto, e o boi ou jumento ou outro animal caia no buraco e morra. Então o que cavou o buraco vai pagar o preço do animal ao dono, mas o animal morto será seu. Aliás, um bom jeito de se arrumar carne pra um churrasquinho. Deixa ver, o que mais pode acontecer com bichos? Ah, se o boi de alguém matar o boi de outra pessoa, o boi que ficou vivo será vendido. O dinheiro da venda do boi será repartido igualmente, assim como a carne do boi morto. A não ser, é claro, naquele caso que eu já disse: O boi era bravo, o dono sabia e não fez nada. Aí vai ter que pagar o preço do boi para o outro, e ficará com a carne do boi morto.
— É. E-essas l-leis para os a-animais pe-pelo m-menos são j-justas… E d-detalhistas t-também, pu-puta merda. T-tem mais a-alguma co-coisa?
— Se tem mais? Putz, nem comecei ainda! Pega uma cerveja ali na geladeira, que agora vamos falar sobre leis acerca da propriedade.
— A-ai meu s-saco…
— Não reclama. Vamos lá…