— Miguel! Ô, Miguel! Dá um jeito aqui. Não agüento mais ouvir a choradeira desses caras lá no Egito.
— Choradeira? Que choradeira, Gabriel?
— Bota o fone de ouvido um pouquinho. Tá escutando?
— ARGH! Que gritaria é essa?
— São os hebreus lamentando a escravidão.
— Escravidão? Peraí, não são os caras daquela família?
— Sim, os próprios. Deus prometeu mundos e fundos pra essa família, que seriam uma grande nação e não sei mais o quê.
— Ué, então ele não devia ir lá ajudar os caras?
— Devia, mas tá num sono pesado…
— Há quanto tempo?
— Em tempo terrestre? Sei lá… Que horas são?
— Quatro e vinte.
— Ah, deixa eu ver… Hum… Ele foi dormir estressado por causa daquela história de Jacó não querer ir pro Egito. Isso foi há… Quinhentos anos.
— COMO???
— É. Ele tá dormindo há quinhentos anos.
— Porra, precisamos acordar o velho.
— “Precisamos” o cacete! Eu já tenho que ficar aqui com essa porra de fone de ouvido monitorando a merda toda lá embaixo. Você acorda ele, Miguel.
— De jeito nenhum! Você que é o melhor amigo dele!
— Melhor amigo dele??? Porra, você lembra o que ele fez com o melhor amigo?
— Ah, é verdade… Bom, vamos os dois então?
— Vamos.
Que coisa feia, não? Dois arcanjos das ordens celestes superiores se cagando de medo do mau humor matinal de deus. Lá foram os dois, cu na mão, acordar o velho.
— Seu Jeová… Seu Jeová… Tá na hora…
— Hum? Hein? Hein?
— Somos nós, deus. Miguel e Gabriel. Viemos acordar o senhor.
— PORRA! Quantas vezes eu vou ter que dizer que não quero que vocês me acordem? Eu já botei o rádio-relógio pra despertar, na hora que essa merda tocar eu acordo! Tenho sono leve, vocês sabem! AGORA DÊEM O FORA DAQUI, ANTES QUE EU RESOLVA MANDÁ-LOS PRA CASA DO CAPETA!
— Er… Seu Jeová? Desculpe o mau jeito, mas é que o rádio-relógio já tocou.
— Já tocou??? E como eu não ouvi?
— Ele toca a cada nove anos. Aí o senhor aperta o botão snooze e volta a dormir.
— Puta que pariu… UAAAAAAAAAAAAAAAAH. Hum. Mas e aí, aconteceu alguma coisa enquanto eu dormia?
— De certa forma. Aquela família que o senhor escolheu, lembra?
— Ora, claro que lembro! A família do velho Abraão! Prometi a ele e sua descendência que seriam uma grande nação e coisa e tal. Aí depois veio aquele filho dele, como era o nome?
— Isaque.
— Esse aí. Não ia muito com a minha cara. Aí teve o filho dele, Israel. Saí na mão com ele uma vez, no vale do Rio Jaboque, já contei essa história?
— Algumas vezes, senhor.
— Então. Agora tem esse menino aí, filho dele, meio viado. José. É, José. Governador do Egito, coisa fina. Mas e aí, como é que o velho Israel está se saindo no Egito? A família cresceu?
— Ahn… Jacó já morreu.
— Morreu??? Faz muito tempo?
— Uns quinhentos anos.
— Cáspita! E a família?
— A família se tornou uma grande nação.
— Rá! Eu não disse? Eu sou foda! Eu sou é deus, tão me ouvindo? Deus!
— É, sem dúvida. Mas tem um detalhe. Eles são escravos no Egito…
— ESCRAVOS??? Como?
— Sabe como é, seu Jeová. O tempo passa, as gerações atuais não estudam história, não lêem o Jesus, me chicoteia!, não sabem de nada… Acabou acontecendo isso. E agora o povo de Israel passa os dias e as noites lamentando sua condição.
— E o que vocês fizeram a respeito?
— …
— PUTA QUE PARIU! Será possível que eu tenho que fazer tudo aqui nessa joça? Porra. Saiam daqui, vou dar uma mijada, escovar os dentes, trocar de roupa e daqui a pouco estou lá na sala de controle. Cadê meu chinelo, porra???