Achado

21 de dezembro

Faz um mês que nos mudamos, não é justo.

A colher já está em brasa.

23 de novembro

Nos mudamos hoje. Para quem morava num apartamento de 60 metros quadrados com duas crianças e um cachorro, a nova casa é um palácio. As crianças exploram, riem a cada novo cômodo, surpresas com o tamanho da casa, uma matrioska inesgotável. O cachorro está tentando entender o conceito de quintal. Corre até os fundos, fareja, faz xixi, corre de volta até a porta, percorre o perímetro, bebe água para poder fazer mais xixi. Mal pode acreditar que é tudo dele, e quer garantir marcando bem o território.

Celina está radiante como não a via há anos. Enquanto abre janelas e mais janelas para arejar a casa, parece que abre janelas por dentro dela também, e se areja. Se ela está feliz, eu também estou.

29 de novembro

Mudança é um processo lento. Quase uma semana depois, ainda há caixas a abrir. Ignorávamos tantas posses, tanta tralha. O processo fica mais lento ainda quando a memória entra no jogo. Um brinquedo, uma foto, uma quinquilharia qualquer desempacotada pode ser o dominó que desencadeará a reação em cadeia das reminescências. Essa boneca você ganhou quando quebrou o braço jogando futebol, essa foto a gente tirou no dia do assalto em Buenos Aires, e isso aqui é o quê?, “você não lembra?, não, Arraial D’Ajuda, o hippie que vendia erva pra gente queria empurrar o artesanato também…, ah, é, aí eu comprei pra ele parar de encher, que erva pai?, erva-mate.

30 de novembro

Tinha um cofre embaixo da escada da edícola. Eu bem desconfiei que aquele espaço podia ser um armário, por isso fui fuçar. O painel de madeira se abriu, e atrás dele uma porta de aço verde, com um disco de números. A porta é quadrada, 90 por 90 centímetros.

No mesmo instante em que anuncio o achado, a família se divide da forma de sempre. Aline, a mais nova, é aventureira como eu, e quer saber como vamos abrir o cofre, imagina o que tem dentro, será que é dinheiro, pai? Celina e Artur acham melhor eu me livrar dele, sabe Deus o que tem aí, pode ser coisa roubada, pode ser uma arma, pode ser antraz (Artur lê muito, andou lendo sobre bioterrorismo, está impressionado). Eu garanto que vou tomar todos os cuidados, se não querem que eu abra, não abro.

Mais tarde, Aline me pergunta se não vou tentar abrir mesmo. Ela me conhece bem. Pesquisamos juntos na internet e descobrimos que o cofre é da marca Aço Brasil, que fechou em 1976. A empresa fabricava cofres sob medida para a alta classe paulistana. Nossa casa é grande mas nunca foi da alta classe. O cofre se torna um mistério maior ainda. Quem mandou fazer o trambolho? O que tem dentro dele?

Encontramos também um tutorial de como abrir cofres desse tipo. Envolve uma série de passos complicados, um gráfico cartesiano e um estetoscópio. Será verdade, parece coisa de filme, não custa tentar, isso é. Entro no site de uma loja de suprimentos médicos e compro um estetoscópio. Diz que chega em dois dias.

02 de dezembro

Eu e Aline passamos o dia acompanhando o tutorial, girando a roda do cofre, nos revezando ao estetoscópio, discutindo, tudo sob o olhar dos cautelosos da casa. Não funcionou. Claro que não, onde é que eu estava com a cabeça? Estetoscópio…

Na hora do jantar, minha filha e eu fomos objeto de chacota. Fazer o quê? Foi ridículo, tivemos que engolir.

03 de dezembro

Meu filho é a pessoa mais transparente que conheço. Ele não precisa dizer nada, todo mundo sabe quando há algo de errado. Pergunto o que há, nada, pai. Não insisto.

No fim do dia ele se aproxima, olha para os lados. Me mostra uma foto no celular. Uma sequência de números e letras gravados em madeira.

03D — 52E — 66D — 95E — 19D

Onde você achou isso?, embaixo de um taco solto no quarto, será que é?, deve ser, amanhã vou testar, toma cuidado.

Ele sempre quer que todo mundo tome cuidado.

04 de dezembro

Acordei cedo, chamei Aline e descemos. Ainda estávamos na metade da sequência numérica quando Celina e Artur também desceram. 3 para a direita, 52 para a esquerda, 66 para a direita etc. No último giro do disco, o clique. A maçaneta gira depois de alguma força. Abro o cofre e… decepção. Que boneca feia, parece o demônio, o pescoço tá quebrado, pra que guardar isso num cofre?, eu sei lá.

Uma boneca e uma caixa de madeira com cadeado. Parece piada.

08 de dezembro

Esta é a casa mais triste do mundo. Não tivemos tempo de criar memórias nela, mas a todo momento ouço a voz de Celina, ou vejo seu rosto.

Minha mulher, minha namorada. Um acidente estúpido na escada, o voo no vazio, o pescoço quebrado. O que eu faço, meu Deus?

11 de dezembro

Nós, os sobreviventes, somos três fantasmas assombrando a casa. Comemos quando precisamos, dormimos a qualquer hora. Na maior parte do tempo, sentamos no sofá em frente à TV ligada, sem ver nada. A ausência de Celina é um peso nos ombros. Estamos exaustos de tristeza. Impossível viver assim.

12 de dezembro

Hoje decidi dar um trato no quintal, levar o cachorro para passear, preparei o café-da-manhã das crianças. A vida não vai voltar ao normal, mas alguma aparência de normalidade é necessária. Senão, enlouquecemos.

Lembrei do cofre. A caixa continuava lá com seu cadeado. O cadeado era sólido, mas a madeira estava podre. Forcei um pouco com a chave-de-fenda, e a coisa toda se arrebentou. Quase morro de susto. Duas bonecas queimadas. Fechei a caixa como deu, joguei de volta dentro do cofre, tranquei.

15 de dezembro

Ninguém imagina um dia perder os filhos num incêndio.

18 de dezembro

Quanto álcool o corpo humano pode suportar antes de sucumbir? Pretendo descobrir em breve.

20 de dezembro

O cofre. Desci lá, queimei e enterrei as bonecas (que diferença faz agora?). Peguei o martelo pra arrebentar tudo.

Claro que o cofre tinha um fundo falso. Óbvio. Por que as surpresas acabariam, se ainda estou vivo?

Atrás do fundo falso, outra boneca. Sem olhos.

Decidi que não vou esperar. Se é para acontecer, que pelo menos eu tenha algum controle. Uma garrafa de uísque para dar coragem e anestesiar, uma colher quente. Resolvo tudo e o cofre fica contente.

Abri o portão e deixei o cachorro sair. Que tenha melhor sorte do que eu.

21 de dezembro

Faz um mês que nos mudamos, não é justo.

A colher já está em brasa.

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