Walt Jabsco

O emoji “Man in Business Suit Levitating”

Foi ali, bem ali naquele balcão de bar, no fim de uma noite ruim, que Gustavo soube que estava apaixonado. Ela continuava com a história (“O nome dele é Walt Jabsco. Se você falar o nome, ele vai embora. Walt Jabsco. Não esquece.”), e ele fascinado mais pelo timbre da voz, pelo corte de cabelo assimétrico com uma mecha que caía sobre a testa e pendulava quando ela gesticulava, pelo nariz grande e um pouco torto para a esquerda, pelos olhos castanhos que brilhavam de álcool e entusiasmo pela lenda urbana do homem que flutuava.

— Você não tá nem escutando né, né?

— Claro que sim — disse Gustavo, só querendo que os lábios carnudos sem batom não parassem de se mover. — Esse cara… como é o nome?

— Walt Jabsco.

— Esse Walt aí, um cara branco, alto, de terno e gravata e chapéu fedora…

— Fedora não: pork pie. Igual o do Buster Keaton, mas de feltro.

— Esse cara de chapéu de Buster Keaton… Faz o quê? Visita as pessoas? Tipo uma Testemunha de Jeová? “Bom dia, você teria um minuto para a palavra de Walt?”.

— Você não leva a sério!

— Levo, claro que levo, Karina! Seriíssimo. Mas é que já bebi um pouco demais, estou com dificuldade de gravar os detalhes. Conta de novo.

— Esse cara. De chapéu pork pie. Terno completo. Óculos escuros. Meia branca, sapato preto. — ela enumerava cada item da descrição levantando um dedo da mão esquerda, e Gustavo se apaixonava mais — Walt Jabsco. Ok? Ele toma a forma que quiser.

— Tipo Super Gêmeos? “Forma de um balde de gelo!”

— Não, tipo… Forma de gente. Geralmente ele se apresenta como enfermeira, ou médico. Porque é assim que ele se alimenta, percebe? Escolhe um hospital e sai fazendo a ronda pelos quartos. Quando escolhe um paciente, ele fecha a porta e se transforma de volta em Walt Jabsco. Terno e gravata. Chapéu pork pie. Sapato preto, meia branca.

— Tipo Michael Jackson, mas em vez de fazer a inclinação antigravidade e Moonwalk, ele levita.

— Isso. E aí quando ele levita, pode esquecer. Se ele está levitando, é que não precisa mais se esconder de você. Chegou sua hora.

— O quê? A pessoa morre?

— Morre. Ele prefere pessoas não muito doentes, mas que também não levantem suspeitas. Todo mundo tem uma história assim, já reparou? “Minha mãe ficou dois meses no hospital, estava se recuperando, de repente teve uma piora de madrugada e morreu”. “Meu tio já estava bem, o médico falou que teria alta no dia seguinte. Infarto fulminante. Do nada.” Chamam isso de “a melhora da morte”. É como uma lâmpada daquelas antigas, incandescentes, que brilhavam mais forte logo antes de queimar. Mas não é isso. É…

— … Walt Disney.

— Jabsco.

— E por que ele pega esse pessoal e não quem já está mesmo nas últimas? Seria até um ato de misericórdia.

— Porque é disso que ele se alimenta, entende? Da… vitalidade da gente, eu acho. Pouca vitalidade, poucos nutrientes. O cara que está no hospital já se recuperando é comida de hospital: sem gosto, pouco calórica, mas nutritiva. O paciente desenganado, em coma, é um chuchu desidratado: não tem sustança. — Ela faz mesmo cara de quem mordeu um pedaço de chuchu seco, e o coração de Gustavo perde o compasso.

— Mas aí esse… esse SER aí passa a vida só na base da comida de hospital?

— Não lembro direito. É só uma lenda urbana, Gustavo. Eu só sei que tá muito barulho aqui e eu quero ir embora…

— Tá bom. Eu chamo um Uber pra você…

— Eu moro a duas quadras daqui. Você me acompanha até lá?

— Depende. Você vai me convidar para subir?

— Talvez… Mas não se empolga, tá? Tô bêbada e exausta. Vamos conversar mais um pouco e dormir. De acordo?

— Cem por cento.

Conversaram, sim, mais um pouco. E dormiram. Mas não só. Gustavo estava apaixonado e dormiu sorrindo. Acordou com o sol entrando pela janela. Virou-se para o lado. Estava só na cama.

— Karina?

— Aqui na cozinha! Você come ovos no café da manhã?

Preparando o café da manhã! Gustavo já imaginava os filhos que teriam. Levantou-se, vestiu as calças, foi até a cozinha.

— Eu normalmente acordo sem fome, mas hoje eu poderia comer um boi.

— Eu também. Falando em fome, lembrei o resto da história do Walt. Ele é tipo o Renfield… Cê leu Drácula? Ele é que nem o Renfield, que só come rato, mosca, aranha. Assim é o Walt com pacientes de hospital. Só que isso não basta, né? De vez em quando bate a fome de verdade, e ele precisa de uma refeição completa. Você já fez dieta? Sabe quando você tá há duas semanas só na saladinha de alface e peito de frango grelhado? De repente você PRECISA de um doce, ou de uma lasanha, ou de churrasco. E aí não tem quem te segure, e é por isso que dieta não funciona. Bom, é assim com o Jabsco. No dia que bate a fome, ele precisa encontrar uma refeição decente, daquelas para se esbaldar.

— A não ser que a pessoa fale o nome dele.

— Exato. Aí ele vai embora. A NÃO SER que ele já esteja levitando. Tarde demais. A família lamenta o morto. “Tão novo, morrer desse jeito…” E o Walt, depois de uma refeição dessa, fica igual uma sucuri que comeu um bezerro: passa uns dias só descansando, fazendo a digestão. Depois de um tempo bate uma fomezinha, ele escolhe um hospital e começa tudo de novo. Até o dia de furar a dieta.

— Esse papo tá me deixando com mais fome. Vou botar a mesa na sala enquanto você termina aí.

Gustavo pegou pratos, xícaras, talheres para levar até a sala. No caminho, deu um beijo na bochecha de Karina. Linda, linda.

— Minha barriga tá roncando, credo! — ele falou enquanto punha a mesa — tô parecendo o Michael Jackson assombrado depois de um mês de comida de hospital.

— Também tô morrendo de fome! — gritou Karina da cozinha. — Vem aqui ver se tá bom.

— Tô indo.

Gustavo foi até a porta e parou.

Um homem estava parado no meio da cozinha.

De terno e gravata. Um chapéu de aba curta e copa achatada, com uma fita em volta. Como o do Buster Keaton, só que de feltro preto. Sapatos pretos, meias brancas, óculos escuros.

— Muita fome…

A voz de Karina saiu da boca do homem. O homem. Como era o nome dele? Wagner? Walter? Um sobrenome eslavo ou coisa assim. Com G, ou J. Ou seria D? O nome dele. Gustavo precisava lembrar o nome dele.

— Wallter… Não, Walt! Walt… — à cabeça dele só vinha “Disney”.

Walt Jabsco sorriu e colou os braços aos lados do corpo. Pareceu crescer diante de Gustavo. Dois centímetros, cinco, dez. Não, não crescer.

Walt Jabsco estava levitando. E sorrindo.

(da história do emoji, contada aqui)

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