A morte negada

Trancados no supermercado de prateleiras já vazias, esperamos o fim. Todo dia alguém faz a escolha entre ficar aqui e morrer de fome ou sair e se juntar aos mortos lá fora, ser mais um morto-vivo confuso e faminto por carne, mais um defunto a quem foi negado o descanso.

Eu ainda não decidi. Passo meus dias deitado sobre uma pilha de embalagens vazias, recapitulando o que nos trouxe até aqui. A epidemia. A doença espalhada sem controle. Os mortos sem conta, e depois a decisão de não contá-los. As primeiras notícias sobre os que se levantavam, contrariados por terem sua realidade negada. No começo virou piada. Boataria, fake news, sensacionalismo para dar clique.

Até o dia em que o morto mordeu o governador.

De repente estava ali, na nossa frente. Era um adolescente negro, magrinho. A pele ressecada tinha textura de pergaminho e cor de papelão molhado. Lembro de notar a terra no cabelo crespo e na roupa esfarrapada e pensar “mas nem pra tomar um banho” antes de me dar conta do que estava acontecendo. Ele mordeu o governador no topo da cabeça, como uma criança mordendo o maior pirulito do mundo. O tiro pegou bem no meio da cabeça do morto-vivo, mas era tarde. A transformação do governador foi imediata. Num momento estava fazendo duras críticas ao presidente que até tão pouco tempo atrás era seu aliado. No outro, era um ser de olhar vazio que rosnava. Ele ainda teve tempo de morder três repórteres antes de também ser alvejado.

(uma coisa é atirar num negrinho, coisa cotidiana, outra muito diferente é atirar no governador)

Mas aí já era o caos, a gritaria, uma orgia de mortos mordendo e criando outros mortos que mordiam e assim por diante.

Deixar de contar os mortos foi um erro. Tornados fantasia, exagero dos alarmistas, estatística falha, eles se rebelaram. Se a morte era mentira, então não ficariam deitadões esperando os bichos. Voltaram, fizeram esse estrago todo lá fora. Foi um erro, mas nem temos a quem responsabilizar. Segundo as últimas notícias que chegaram antes da internet cair de vez, o presidente era um morto vagando sozinho (nem mortos nem vivos queriam nada com ele) pelas ruínas de Brasília, comendo calangos e rosnando coisas sem sentido (certas coisas não mudam).

Olho lá fora e, de trás da porta de vidro, ela me olha. Uma menina que não deve ter mais de seis anos. Olhos fundos nas órbitas, dentes expostos pela boca já sem lábios, a cabeça com só alguns tufos de cabelo aqui e ali. Um coelhinho de pelúcia sujo abraçado com mãos ossudas sobre o peito.

— Está com fome, filha?

Ela me olha fixo. Sinto pena. Pobre mortinha que não pode descansar.

“Facada mal dada do caralho”, eu penso enquanto abro a porta.

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