Para não esquecer

“Deus proverá” era a frase do meu pai. A frase é de Abraão, na verdade. Quando Javé pediu a ele que sacrificasse Isaque, seu único filho, Abraão nem piscou: acordou Isaque, disse que ia oferecer um sacrifício e os dois saíram de casa. No meio do caminho, meio desconfiado, Isaque perguntou onde estava o bicho que iam sacrificar. “Yahweh-yireh” foi a resposta de Abraão — Deus proverá. Yahweh-yireh é um dos nomes do Deus de Israel. Era esse o Deus do meu pai — não importava o quão difícil fosse a situação, não importava o beco sem saída em que a gente se metesse: o Deus dele sempre ia dar um jeito. E ele nem precisou ameaçar sacrificar um de nós.
Quando precisava correr, meu pai corria com a mão sobre o peito, para impedir que os documentos e o pente pulassem do bolso da camisa. É uma imagem recorrente nas minhas memórias mais antigas: meu pai correndo de mão no peito.
“O que que a gente faz agora, pai?”, eu perguntei quando minha avó materna morreu. “Eu não sei”, foi a resposta dele. Foi a primeira, talvez a única vez em que eu vi meu pai tão triste a ponto de não ter uma palavra de conforto para nós. Foi das poucas vezes em que o vi chorar, também.
Meu pai nunca teve um time. O engraçado é que ele gostava muito de futebol. Quando foi para a Congregação Cristã do Brasil, ele parou de ver televisão. Mas sempre que tinha um jogo passando ele parava um pouco na sala, comentava um lance qualquer, saía. Aos poucos essas paradas pra ver jogo foram aumentando: ele se sentava no braço do sofá para ver uma cobrança de falta, depois começou a ver replays, um tempo aqui, outro ali. Dizia que era ponta direita — “dos bons!” — do time da fazenda onde cresceu lá na Bahia. Eu acredito: depois da história do capoeirista, eu nunca mais ousei duvidar de nada que ele me dissesse.
Eu sempre tive insônia. Ficava na sala de madrugada vendo qualquer bosta na televisão. Lá pelas tantas, ouvia os passos do meu pai vindo do quarto. Ele entrava na sala de braços cruzados, meio encolhido de frio. “Dormir, Marco. Olha a hora.” “Já vou, pai.” Ele voltava para o quarto, eu ouvia os passos dele se afastando.
Meus irmãos nunca tiveram insônia. Dormiam no carro vindo da casa da minha avó, dormiam no sofá. Meu pai carregava eles pra cama. Lembro dele carregando minha irmã no colo quando ela tinha uns 12, 13 anos de idade, e quase o tamanho dele. Eu sentia um pouco de inveja: queria ter sono pro meu pai me carregar até a cama. Nunca tive.
Por volta dos 60 anos de idade, meu pai começou a usar óculos para leitura. Botava aqueles oclinhos pra ler a Bíblia. Quando estou na casa da minha mãe, entro no quarto dela e espero encontrá-lo sentado na cama de Bíblia no colo, encostado em um travesseiro apoiado na cabeceira, olhando pra mim por cima dos oclinhos.
Quando a gente era pequeno, meus pais compraram cobertores novos para mim e minha irmã (meu irmão nem era nascido, eu acho). Compraram e disseram que só iam dar os cobertores quando a gente se comportasse direitinho. Um dia eu combinei com a minha irmã de pedir a bênção aos dois antes de dormir. “Bença, mãe. Bença, pai.” Os dois se olharam, sorriram e nos entregaram os cobertores. Foi uma alegria imensa; alegria besta de criança. Fiquei com meu cobertor a vida inteira, trouxe ele comigo quando casei. Dia desses um cara tocou campainha aqui. Estava dormindo na rua com a esposa e um filhinho, queria saber se eu não tinha um cobertor. Dei meu cobertor a ele. É o que meu pai faria. Mas foi triste.
Meu pai caiu em muitos golpes, foi muito explorado por acreditar nas pessoas. E continuou acreditando. Inabalável.
Quando ia orar em voz alta na igreja, meu pai sempre começava a oração com “Santo Deus, Eterno Pai Celestial”. Depois de muitos anos, mudou para “Santo Deus, Eterno Pai Celeste”. Eu sempre quis perguntar o porquê da mudança; nunca perguntei. Achava mais bonita a métrica da primeira abertura.
Depois que meu pai saiu da igreja Batista, eu continuei. O pastor que me batizou, Obede, me contou uma história tempos depois. Havia um grupo formado por pessoas mais velhas da igreja que estavam descontentes com o pastor. Esse grupo andava se reunindo ora na casa de um, ora na casa de outro. Um dia foram se reunir na casa de um de meus tios e chamaram meu pai pra participar. Ele chegou, viu aquele pessoal lá, perguntou de que se tratava. “É sobre a igreja.” “E cadê o pastor?” “O pastor é parte do assunto.” “Então esperem aí que eu vou buscá-lo” (meu pai falava assim mesmo, “buscá-lo”). Ele foi até a casa do pastor, disse que havia uma reunião acontecendo e o levou até lá. Meu pai não suportava trairagem. Detalhe: de todos, ele devia ser o que mais discordava do pastor. Mas preferia falar isso na cara dele.
Ele sabia que não tinha nenhum controle sobre a própria vida. Quando alguém o convidava para qualquer coisa, por mais banal que fosse, a resposta do meu pai era sempre a mesma: “Se Deus preparar, estarei lá”. Quando fazia planos, terminava as frases com “mas Deus é quem sabe de todas as coisas”.

*   *   *

Desde que meu pai morreu, meu maior medo é esquecer de como ele era. Coisas assim me ajudam a lembrar.

27 comments

  1. Tenho certeza de que nunca se esquecerá de seu pai, Marco. Fico feliz de ler seus textos novamente, sejam eles engraçados ou emocionantes como esse.
    Abraço!

  2. Muito bonito isso, Marcurélio!
    Tenha certeza que nunca vai esquecê-lo!
    Dia 29 de janeiro completaram 30 anos que meu avô faleceu, e acredita que sinto o cheiro dele até hoje! Sabe, aquele cheiro de avô?

  3. Marco,
    Recentemente (fim de Março) fez três anos que a minha mãe morreu em um acidente de trânsito. Foi uma morte estúpida – ela estava no lugar errado na hora errada.
    Depois de muita dor e uma saudade que até hoje me acompanha, posso dizer para você que o que vai permanecer contigo mesmo são essas lembranças. Os grãos de areia sem fim de tudo que ele fez nessa vida e marcaram você e todos que o conheceram.
    Isso é bom, cara. Só uma grande pessoa é lembrada assim.
    Um grande abraço!

  4. Marco, meu velho, você faz humor como ninguém. Mas também tem um talento ímpar para falar das coisas que realmente importam.
    É muito bonito ver essa admiração pelos pais, hoje coisa fora de moda.
    Um tempinho atrás também escrevi algo para o meu, o engraçado é que algumas coisas se assemelham com o seu, talvez pelo fato de ambos serem evangélicos ou por passarmos sufoco.
    De qualquer forma, depois dá uma lida:
    http://mundobede.wordpress.com/2011/03/14/para-meu-big-fish/
    Abraços

  5. Parabéns Marco…
    Gosto demais de todos os seus textos.
    Mas nesse realmente me senti tocado…
    Uma vez eu vi um texto, chamado Deus, Devagar. Acho que esse texto mostra muito isso. A sutulidade do agir de Deus nas nossas vidas. Numa era de de super-ciencia, super-religiões e super-crentes, a vezes nos esquecemos do agir de Deus nas coisas simples e nas pessoas.
    Que Deus ilumine a sua vida, sempre… sempre… e que Deus toque sempre a seu coreção dessa maneira sutil e marcante.
    nEle

  6. Perdi minha mãe há quase 10 anos (ela tinha acabado de completar 65) e o meu pai há 5. Eu não me esqueço de nada deles não, mas mesmo assim adoro lembrar os ‘causos’, as histórias, as tiradas bem humoradas, os ensinamentos, adoro ver as fotos e assistir aos vídeos. Cada vez que faço isso, sinto os dois pertinho de mim de novo. Belo texto, belíssimo texto, seu pai com certeza era uma pessoa muito especial. Se você pudesse me ver agora, ia ver que eu tou aqui na frente do computador fungando…

  7. A gente fica sem palavras pra dizer em momentos como esse, xará.Fica minha torcida sincera pra que vc sempre se recorde dos bons momentos ao lado de teu pai, com saudade mas não com tristeza.
    Um abraço

  8. cara, belo texto! fiquei emocionado pra caramba!
    lembre-se que “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus”… vai que você consegue encontrar sua fé novamente por causa dessa situação? 🙂
    abraço, e Deus te dê graça pra passar por isso tudo.

  9. Sem palavras, Marco: o meu se foi em 2000 e eu o tenho aqui comigo…lindo texto….vc escreveu coisas que a gente sente e não consegue expressar…Parabens e Força sempre. bjs Mazé

  10. Cara, fiquei muito feliz quando descobri que reativaste o blog.
    Entendo a tua perda e até parei de te perturbar pedindo os PDF´s da Bíblia Sacaneada porque achei muito nobre o motivo pelo qual paraste de escrever, toda a situação, a saudade que sentias do teu pai, etc.
    Sou teu fã, vou ler sempre o teu blog.
    Agora, por favor, atualize os links paras os arquivos PDF´s.
    Por exemplo, links como http://www.jesusmechicoteia.com.br/imagens/chicoteia_deuteronomio.pdf não estão funcionando.
    []´s

  11. Que coisa bonita querer segurar na memória os detalhes de alguém tão querido…não venho de uma família funcional, não tenho boas lembranças para guardar, mas me enterneço quando vejo alguém que pôde crescer ao lado de quem amava!

  12. Marco, te acompanho ali, o que? desde 2001, talvez 2002. Estamos velhos, meu velho. Texto despretenciosamente foda. Tocante, honesto, humano de doer. Frágil em todas as linhas, épico por isso. Me desculpa te pedir pra ler isso. Mas é que escrevo também e não vejo outro forma nem outra oportunidade de te mostrar estas linhas do que nesta circustâncias. Um grande abraço. Que não seque sua memória, para que as histórias não fiquem ralas. Vida longa a você e ao cão. http://www.oruminante.com.br/2011/04/25/para-que-eu-nao-morra-invisivel/

  13. Gostei mais da métrica da segunda abertura. Além do número de sílabas iguais na primeira e terceira palavra, elas tem a mesma tônica com o mesmo “é”, e mais algumas semelhanças sonoras. Acho que a segunda abertura também tira ênfase do adjetivo, não?

  14. Sinto saudades do seu pai, me lembro sempre dele com carinho e saudades, qdo entro na casa dele parece que vou vê-lo a qualquer momento. Não tenho palavras.

  15. Oi Marco, lembra de mim né?
    Este seu texto me fez lembrar a morte do pai de uma amiga minha. Também da Congregação, a fé para este homem era coisa séria, coisa que influenciava seu modo de ser de fato, diferente da maioria hipócrita que diz uma coisa e faz outra.
    Este senhor morreu muito novo (45 anos) no leito de um hospital confortando seus familiares, olhando a morte de uma maneira romântica, incentivando seus filhos a permanecem fieis à bíblia.
    A maneira como ele se foi me emocionou bastante, apesar de eu não ser mais religioso, acredito que este foi um caso de fé e amor genuínos, raros atualmente.
    Continue sempre exercitando a memória de seu pai, pois esta é a única forma que restou de relacionamento entre você e ele!
    Um Abraço cara!

  16. Então, tem coisa que é difícil mesmo. Tipo, meu pai morreu há uns treze anos, meu filho mais novo, agora com vinte e seis, do nada, durante uma conversa em que a mulher tava elogiando os sogros, como na cas não se vê briga, me solta um “Ah! Tu precisava é ter conhecido meu avô, firmeza que nem ele não tinha”. E ele se viam só umas duas ou três vezes por ano!

  17. Seu pai lembra muito meu avô, apesar de eles serem diferentes em muitos aspectos..inclusive na crença religiosa…mesmo assim..já tem alguns anos que não me emociono assim…obrigado.

  18. Realmente lindo seu texto, meu pai ainda é vivo (Graças a Deus), mas estou bem longe, e ler suas palavras me fez sentir muito a sua falta….

  19. Rapaz.
    Li seu post, o nó na garganta subiu. Eu escrevo justamente por isso: medo de esquecer. E porque, mesmo com medo, estou esquecendo. Então, um dia, quando der vontade de conversar com outra pessoa na mesma situação, quando o peso nos ombros e o desamparo te fizer sentar à beira do caminho e achar que está sozinho nessa dor, saiba: não está. Meu pai tinha os dedos amarelados de nicotina. Meu pai tinha um calo no dedão porque ele o mordia enquanto pensava. Meu pai dizia que era ateu, graças a Deus. E não se conformava nunca com as missas não serem mais em latim. Não foi um justo. Foi só um homem. Um homem, cheio de defeitos, cheio de qualidades. Cheirando a Carlton sem filtro. Meu pai.

  20. Marco Aurélio;
    Foi numa noite, silenciosa com hoje, que, navegando sem rumo na Internet, fiz a primeira visita ao seu blog. Era 2002, talvez 2003, eu vivia um relacionamento neurótico, trabalhava em uma empresa que sugava todas as minhas energias e, embora cheio de dinheiro estava particularmente infeliz. Daí fugia, nas noites, para este universo paralelo. 2003 foi um ano de ócio e renovação. Parece um tempo distante do que sou hoje, mas à mim, é como se tivesse sido ontem.
    Perdi meu pai quando eu tinha 11 anos e tenho muito poucas lembranças dele, a maior parte das histórias, ouvi de minha mãe, de parentes e amigos – que até hoje nutrem grande admiração por ele. De lá para cá tive muitas outras perdas…
    Em 2003 eu talvez tivesse sido atraído ao seu blog pela sua inteligência, seu humor grosseiro e pela sua capacidade de atrair pessoas com um jeitão simples. Àquele tempo certamente era uma inveja. Hoje, ao ler este post, confesso ter ficado verdadeiramente com inveja: de não ter vivido com meu pai, o tanto que vc viveu com o seu e de não ter escrito (como vc fez) das perdas que tive desde então.
    Velociraptor

Deixe uma resposta para Wagner chagas Cancelar resposta