Cheio de paixão

Depois de cinco meses morando no centro de São Paulo, finalmente eu começo a explorar detalhes das redondezas. Eis outro benefício trazido por São CPAP: agora eu acordo mais cedo e com disposição para bundear por aí. Hoje acordei às sete da manhã e fui dar uma volta pelo Largo do Arouche. Antes não o tivesse feito.
A prefeitura tem um projeto chamado Adote uma Obra Artística. A Votorantim adotou várias esculturas do Largo do Arouche e o índio veado da Vieira de Carvalho. Cada obra adotada foi cercada por um tapume com informações sobre a escultura e seu autor. No Largo do Arouche, três obras passam por restauração. Então hoje de manhã, caminhando por ali, notei um busto numa das laterais da praça. Antes imperceptível, ele agora se destaca por ser a única escultura exposta. De longe já vi que o busto estava maltratado, coberto de musgo, com um pardal usando a cabeça do homenageado como banheiro, mesmo destino dado ao pedestal por cães e mendigos. Cheguei perto para ver quem era o pobre coitado excluído de tão louvável iniciativa de restauração.
Pois bem, o nome do sujeito é Luiz Gama. Tirei uma foto:

"Homenagem dos pretos do Brazil"

'Homenagem dos pretos do Brazil'


Luiz Gama, um negão cheio de paixão, nasceu na Bahia em junho de 1830. Era filho de um fidalgo português com uma escrava, e nasceu como homem livre. Aos 10 anos, porém, o pai o vendeu como escravo para pagar dívidas de jogo. Aos dezoito, ele conseguiu fugir do cativeiro e se alistou na Exército. Chegou a cabo, mas acabou expulso por insubordinação. Veio morar em São Paulo, trabalhou em repartições, acabou formando-se advogado. Dedicou-se à defesa dos pretos, e nos tribunais conseguiu libertar mais de 500 escravos. Escreveu versos satíricos de crítica social (achei esse, leiam que vale a pena). Abolicionista de primeira hora (também porque lhe convinha, convenhamos), conviveu com Castro Alves, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, aquela patota toda. Morreu em 1882, seis anos antes da Abolição.
Hoje, o busto que homenageia Luiz Gama está jogado num canto qualquer do Arouche, sem qualquer placa que lhe identifique o autor ou informe a data da obra*. E sem direito a restauração.
Vida de preto é difícil. Até quando vira estauta.

* Mas para isso serve o Google. Yolando Mallozzi esculpiu o busto, que foi inaugurado oficialmente em novembro de 1931. O busto está em processo de tombamento desde 1992. Parece também que o local original da escultura era nas proximidades da Igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no Largo do Paissandu. Depois o negão foi para o Arouche; não sei quando nem como. Insubordinação, provavelmente.

6 comments

  1. Só ele ficou de fora da restauração?
    Será válida a máxima “tinha que ser preto”???
    (Mas uma coisa ainda me intriga… o que o negão estava a fazer no Largo do Arouche???)

Deixe uma resposta para Cris Cancelar resposta