Cidade catótica

Há quem diga que, por conter tantas culturas e identidades diferentes, São Paulo é uma cidade sem identidade. Pura bobagem. Tudo bem, é verdade que não há comida típica paulistana, nem música popular paulistana, nem folclore paulistano. Mas há — e isso ninguém pode nos tirar — um comportamento profundamente arraigado entre os habitantes de São Paulo, e que pode ser considerado a grande característica comum: o ato de tirar catota no trânsito.

Se você que lê estas linhas está agora ao volante, solicito encarecidamente que PARE DE LER e preste atenção na porra do trânsito. Caso contrário, peço que dê uma olnose_pickinghada para o lado da próxima vez que parar num semáforo. Arrisco dizer que há sete ou oito chances em dez de que seu vizinho de trânsito esteja com pelo menos a falangeta dentro de pelo menos uma narina. Uma colega gaúcha diz que os catoteiros foram seu maior choque ao trocar as ruas de Porto Alegre pelas da terra da garoa. Certa feita, disse a um sujeito de Nova Iorque que o povo de São Paulo era adepto do nose picking. Ele disse que isso era louvável. Só depois, quando o cara já tinha voltado para a civilização, me dei conta de que, graças à minha pronúncia maravilhosa, ele tinha entendido no speaking. Deve estar até hoje contando aos amigos sobre a admirável introspecção dos paulistanos.

Muito bem, alguns podem dizer, torcendo (ou cutucando) o nariz, que a sondagem dígito-nasal não é privilégio exclusivo dos paulistanos. É verdade. Mas pessoas de outras plagas são mais discretas: retiram-se da vista alheia para praticar o ato, ou pelo menos o fazem disfarçadamente, aproveitam aquela coçadinha no nariz e tal. Os motoristas paulistanos, por sua vez, catoteiam com empáfia, quase com orgulho. Deve ter alguma coisa a ver com a poluição, é verdade. Imagine a quantidade de fuligem que nos entra pelas narinas após uma hora e meia de tráfego intenso na Marginal Tietê. Aquela sujeira toda irrita as vias respiratórias, se mistura com o muco nasal e… Bom, acho que não preciso explicar em detalhes.

Não podemos, no entanto, botar a culpa somente no ar imundo da cidade. Eu diria que a causa maior é a relação que o paulistano tem com o carro. Para nós, o automóvel não é só um meio de transporte: é extensão de nosso lar, é nosso domínio, nosso habitat, nosso reino sobre quatro rodas. Sentimo-nos totalmente à vontade dentro de nossas máquinas: cantamos, batucamos no painel, falamos sozinhos, soltamos gases e — claro — catamos catota. O interior do carro nos dá a ilusão de privacidade, e é muito fácil esquecer que estamos cercados por vidro translúcido.

E assim, à vontade, vão os paulistanos catoteando pela vida. Uns são recicladores conscientes, e tratam de consumir imediatamente tudo o que tiram do nariz. Outros têm vocação para decorador, e distribuem suas catotas em belos padrões pelo painel do carro, no volante, no teto. Há aqueles que são tímidos e escondem seu produto sob o banco (se as lojas de carros usados dessem 10 reais de desconto por catota encontrada sob o banco do motorista, estariam todas falidas). Existem também aqueles desapegados, que se desfazem de suas bolinhas com um jeitoso piparote. E nem olham para trás.

Já prevejo a reação de alguns cidadãos indignados da metrópole, prontos a me atirarem pedras (ou catotas). Antes que o façam, porém, peço que reflitam por um momento. Finalmente nós, os paulistanos (que somos baianos, paranaenses, japoneses, portugueses, italianos, lituanos, coreanos, judeus, acreanos, libaneses), temos algo que nos une. Isso há de valer alguma coisa, não?

Esse texto foi originalmente publicado no Pândega, blog daquele projeto.

21 comments

  1. uma coisa sempre me intrigou: aqui em BSB,quando estou dirigindo e vejo um carro buzinando o tempo todo posso ter certeza, é só olhar a placa que o cidadão é de São Paulo.Agora sei que o motivo não é uma simples impaciencia.O que acontece é que ELES ESTÃO LIMPANDO CATOTA NO VOLANTE!!!!nojentos!!!!

  2. A Cláudia mora em…. em… BackStreetBoys?
    A maioria dos mineiros (e não só os Belo Horizontinos) se orgulha ao dizer “uai”, principalmente quando estão conversando com algum não-mineiro. É uma expressão que nos une enquanto conterrâneos. Nada mais justo que os paulistanos também poderem se orgulhar de fazer algo que os identifique, assim, explicitamente…

  3. Como bom paulistano que sou, sofro de uma constrangedora corisa, reultante da poluição urbana, rinite alérgica congênita e um maço e meio de cigarros diário. Fosse no trânsito, fosse nos jantares de família, lá vinha aquela coceirinha sobre os lábios anunciando o percurso do córrego.
    Tentei de tudo, de lata de rapé a reza brava. Quase viro sócio da Kleenex, de tanto lenço de papel que gastava. Ambientalistas me acusavam de patrocinar largamente o desmatamento amazônico, sem jamais se comoverem com meu problema de saneamento básico orgânico.
    Perdi namoradas, empregos, meus amigos me davam apelidos cruéis. Minha vida tinha se transformado num pesadelo Kafkiano verde e gosmento. Tudo parecia perdido, até que fui iluminado em uma aula de geografia.
    O professor discorria sobre erosão, sobre como a vegetação impedia que o barro levasse tudo pro brejo. Foi uma epifania! No mesmo dia, joguei fora o prestobarba e decidi virar um homem feliz!
    Desde então cultivo portentoso bigode, que me serve de barricada ao fluxo mucoso intermitente, tanto no inverno quanto no verão. Ganhei apelidos legais, como “Nietszche” e “Morsa” e “Salvador Dalí”, e carrego sob o nariz a formação capilar mais lustrosa da vizinhança. E, de quebra, as garotas adoram o gosto salgadinho do meu beijo.
    Nunca mais comprei Coristina!

  4. A cultura paulistana se resume a isso. Poluição e trânsito. Os gases tóxicos e a fuligem industrial entram pelo nariz e se transformam nessa forma de expressão.
    Engraçado é q todos têm cara de :
    – Ai q saco!
    qdo fazem isso.
    O q leva a crer q o paulistano é um eterno insatisfeito com o mundo a seu redor. Um crítico.
    Pena q essa clareza qto às mazelas do mundo virem apenas catota.

  5. Sou Gaucho e moro em SP, vou começar a tirar Catota do nariz também…no carro…metro…trem…onibus…rua…vou ser o maior catoteiro desta Cidade

  6. Ai que nojooo
    O comentário do bigode é ainda pior!
    Nós do Rio Grande do Sul temos hinos orgulhosos para cada ato heróico da nosso história.
    Teriam os paulistas algum sobre esse vínculo tão apreciável?
    Quando fui aí realmente senti falta de trazer algum caco, um lembrancinha tradicional tão comum em outros Estados.
    O que teriam como lembrancinha, não é?
    Que beleza….

  7. Dica: só praticar este ato quando o carro estiver a mais de 60Km/h. Assim acontecerão duas coisas: menos pessoas perceberão, e as que perceberem vão achar que você não é de São Paulo. Mas há riscos: dirigir com apenas um mamão (trocadilho voluntário e sem graça proposital) no volante é perigoso e é uma infração de trânsito.

  8. bobmacjack,
    Que isso companheiro, amo o meu Rio Grande mas não posso deixar de gostar de SP que me acolheu tão bem… Não conseguiu uma lembrança?? Não seja por isso quando for para ai te levo uma Catota de lembrança….ehehehehe

  9. Como diria minha mãe, todo mundo “limpando o salão”. Proponho um novo tema para post. Pense, calor de 33 graus em SP, preso no congestionamento (não o nasal, mas o de carros) da marginal por uma hora e meia. Evoco novamente minha santa mãe com sua belíssima frase: “O cú deve estar espumando”. Que tal falarmos sobre o cheiro dos assentos veiculares?????

  10. Nossa, pior que é verdade!
    Aqui no Rio também rola um pouco isso, mas parei pra pensar e vi que sempre vejo muito essa cena na Barra, bairro que vem sendo ocupado por montes e montes de… Paulistanos!

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