A guerra contra a Síria

(I Reis 20)
Sentado na principal sala de reuniões de seu palácio, Ben-Hadade, rei da Síria, mal conseguia disfarçar o tédio e a impaciência. Para um homem de ação como ele, só havia algo pior do que reuniões: reuniões com consultores. Ao seu redor na mesa, empertigados e com expressões de profundo saber e autoridade, eles se revezavam na apresentação. Começavam dizendo o nome, mas se não o fizessem daria no mesmo: eram todos iguais. O primeiro começara falando da empresa:
— Nós, da Siriana…
— Siriana?
— Sim, majestade.
— Com George Clooney e tal?
— Er… Não exatamente, majestade. Siriana é o nome de nossa companhia.
— Nome idiota.
— Senhor, com todo o devido respeito, levamos meses para chegar a esse nome. A definição envolveu pesquisas de mercado, análises de tendências, estudos de branding…
— Foda-se. Deu tudo num nome idiota de filme esquerdinha. O que é que vocês da Siririca…
— Siriana, senhor.
— Tanto faz. O que vocês têm a me dizer?
— Bem, majestade. Temos uma metodologia que foi desenvolvida por nossos sócios-fundadores e tem sido utilizada com sucesso há seis anos em diversos projetos. A metodologia é dividida em três pilares: pessoas, processos e tecnologia. Dentro desse pilar de pessoas, podemos destacar que a guerra contra Israel foi…
O rei já não prestava atenção. Fazia já três meses que aqueles almofadinhas percorriam a Síria coletando informações, discutindo entre si, realizando longas conferências e workshops. O Projeto Samaria, que era como eles chamavam o servicinho porco que desenvolviam, fora previsto para um mês, no máximo. Malditos consultores. E maldito Acabe, que o forçara a chegar a tal ponto.
Acabe… O rei de Israel era o mais bunda mole dos reis, disso ninguém duvidava. Mandado pela mulher e assombrado por um profeta casca-dura que desaparecera há muito tempo no deserto, Acabe era motivo de chacota em toda a região. Seu país era, portanto, alvo fácil. Isso, pelo menos, era o que pensavam Ben-Hadade e outros trinta e dois reis que haviam decidido apoiá-lo na campanha contra Israel um ano antes. Haviam subido às montanhas próximas a Samaria com seus cavalos e carros, cercando a cidade.
— … como resultado do que chamamos de gap analysis.
— Guépi o quê?
Gap analysis, majestade. Levantamos toda a situação atual com entrevistas e questionários entregues aos tomadores de decisão, e definimos, conversando com o senhor e seus assessores, qual seria a situação ideal. A partir disso, e sempre aplicando um conjunto de best practices, traçamos o caminho entre o que temos agora e o maior nível de maturidade possível, que é o nível 5. O relatório que apresentaremos hoje mostra os passos para atingir a zona de conforto de cada um dos níveis de maturidade, até o platô de sucesso do patamar mais alto. Em cada nível passaremos por um ciclo de conscientização, negação, frustração, aceitação…
Aceitação, pois sim! Era inaceitável a derrota para Acabe. Ben-Hadade ainda guardava os bilhetes trocados entre eles. Começara como uma espécie de trote; nem ele nem seus companheiros acreditavam muito que aquilo daria em guerra de verdade.

Acabe,
Sem delongas: toda prata e ouro que você tiver por aí, suas mulheres e seus filhos. Tudo meu.
B-H

A resposta de Acabe era patética, mas com um toque de malandragem:

Meu patrão Ben-Hadade,
O senhor tem razão. Eu e tudo o que tenho somos seus. Abraço!
A.

Era muita petulância do rei israelita. Como resposta, Ben-Hadade enviara uma mensagem que não deixava dúvidas sobre suas intenções, que já não eram mais apenas de aplicar um trote:

Acabe,
Não se faça de idiota. Eu requisitei todo o ouro e prata de seu palácio, além de suas mulheres e filhos. Mas você prefere dar uma de espertinho, não é? Pois que seja. Amanhã mesmo mandarei alguns empregados de confiança até aí. Eles vão examinar o seu palácio e as casas dos seus assessores, e vão pegar tudo aquilo que acharem que tem valor. O que você acha, hein?
B-H

Acabe ia ver o que era bom pra tosse…
— … WC?
— PwC? Mas vocês não eram de uma tal Siriema?
— Siriana, majestade. Eu perguntava onde fica o WC.
— Ah. Saindo daqui no corredor à direita, até o final, sobe as escadas à sua esquerda, passa pela porta do harém, vira na segunda à esquerda, desce uma escadinha de três degraus e por lá você se informa.
— …
— Você acha MESMO que eu conheço todo o palácio? Vocês andaram vasculhando tudo por aí, deviam saber mais do que eu.
— Er… Ok, majestade, com licença.
A saída do consultor deu ao rei sossego para remoer o ódio por Acabe e seu país. A resposta do rei de Israel à segunda mensagem demorara bem mais do que anterior. Ben-Hadade não tinha como saber, mas seu bilhete causara celeuma em Israel. Choramingoso como sempre, Acabe queixava-se pelos corredores do palácio. Que não era justo, que o rei sírio queria arruiná-lo e a seu reino, que era um absurdo, que onde já se viu. Quando conseguiram, a muito custo, interromper a cantilena do rei, seus assessores aconselharam: não entregasse nada, e Ben-Hadade que se fodesse. Acabe concordou, eufórico, mas na hora de escrever a resposta resolveu suavizar um pouco os termos:

Meu patrão Ben-Hadade,
Concordo com tudo o que o senhor disse na primeira mensagem. Tudo, tudo, tudo. Sinto dizer, porém, que não posso concordar com a última. É uma pena. Gostaria muito de poder ajudá-lo, mas não posso. Para qualquer outra coisa, sou sempre seu criado.
A.

Foi com a mão trêmula de raiva que Ben-Hadade escreveu o bilhete seguinte:

Porco israelita,
Que os deuses me capem matem se eu não invadir Samaria com um exército tão grande que, se cada soldado levar consigo um punhado de terra, a cidade sumirá do mapa.
B-H

A resposta de Acabe a essa ameaça fora, Ben-Hadade era forçado a admitir, de surpreendente coragem e presença de espírito:

Pão sírio,
O homem que diz “sou”, não é. O verdadeiro soldado conta vantagem depois da batalha, não antes. Em outras palavras, vem ni mim.
A.

Ben-Hadade recebera essa resposta de inesperada altivez enquanto bebia com os outros 32 reis em suas barracas perto de Samaria. Após ler o bilhete e passá-lo aos outros, o rei deu a ordem: era hora de atacar Israel. Enquanto isso, porém, Acabe recebia conselhos de um profeta. Os profetas de Javé haviam começado um movimento discreto de reorganização e, após uma ação aqui e ali, já eram até aceitos no palácio real — desde que Jezabel não estivesse por perto, é claro. Mesmo assim, evitavam as mensagens cifradas e as admoestações espirituais, apostando nos conselhos práticos para ganharem a confiança do rei. Esse profeta não era exceção: o recado que trazia diretamente de Javé para Acabe não tinha nenhum tipo de pirotecnia celeste, mas conselhos pertinentes quanto ao comando, divisão e organização do exército israelita. Enquanto Ben-Hadade e seus aliados ainda organizavam, preguiçosamente e cheios de si, a tomada de Samaria, o exército de sete mil israelitas subia a montanha para atacá-los. Quando deram por si, era tarde demais: os israelitas haviam causado baixas expressivas no exército sírio, botando o resto do contingente para correr. Comandados por Acabe, transfigurado em general eficiente e bravo, os soldados de Israel afugentaram seus inimigos, inclusive o orgulhoso Ben-Hadade, que fugira a todo galope.
— … É muito simples, como o senhor pode ver.
— Simples? SIMPLES? AQUELES FELASDAPUTA DO PAU CORTADO ME HUMILHARAM! VOCÊS VÃO ME DIZER AGORA QUE SABEM MAIS DO QUE EU, CORNOS?
— Majestade… O senhor contratou nossos serviços, só queremos apresentar nosso relatório e ir embora. Ainda temos que passar por um cliente no Egito hoje, e voltar para o escritório para preencher nossos relatórios mensais de horas.
— Cara… Deve ser muito chato trabalhar nessa Sirigüela.
— Siriana, majestade. Bem, como eu dizia é muito simples. Toda a ação se baseia em três pilares:

  1. Sobrenatural O deus dos israelitas é claramente uma divindade das montanhas; por isso o exército sírio foi derrotado por eles naquela ocasião um ano atrás. Os deuses sírios, por sua vez, são naturais da planície. Portanto, se a batalha for em lugar plano, a Síria será invencícel
  2. Profissional Os 32 reis que ajudaram na campanha anterior podiam ser bem intencionados, mas não eram profissionais da guerra. A substituição deles por capitães, homens de pensamento estratégico e espírito belicoso, trará ao exército sírio grande diferencial competitivo, além de força no processo de tomada de decisões
  3. Estratégico O contingente empregado na batalha mal sucedida era suficiente para vencê-la, assim como as armas e equipamentos utilizados. O problema aí, frisamos, não era de pessoas nem de tecnologia mas sim de processos. Com os processos bem definidos pelos capitães convocados, os soldados sírios chegarão ao nível de maturidade desejado no projeto.

— O mesmo exército lutando num lugar plano comandado por capitães. É isso?
— Em resumo sim, majestade. O relatório detalhado deve estar em sua mesa até amanhã. Poderemos discutir também a implementação de uma ferramenta de Business Intelligence, que agregue valor a seu negócio com métricas, alavancando o potencial de…
— VÃO ALAVANCAR AS PUTAS QUE OS PARIRAM! FORA DAQUI! NÃO ACREDITO QUE PAGUEI ESSA FORTUNA POR UM SERVIÇO BOSTA DESSES!
Os consultores partiram assustados e desolados. Sozinho na sala de reuniões, o rei acalmou-se, pensou, e acabou considerando as ponderações apresentadas. Até que fazia sentido. Fazia? Não fazia? Saberia.
Dias depois, o exército sírio estava acampado em Afeque, cidade que ficava numa planície próxima a Israel. Era um exército mais lustroso e disciplinado, graças ao trabalho exemplar dos capitães indicados pela Siriana Consultoria. “Outsourcing é o futuro!”, pensava o empolgado Ben-Hadade. Sabendo do cerco, Acabe organizara seus exércitos também. Na verdade, já vinha se preparando para nova investida síria havia um ano, seguindo o conselho do profeta prático. Os israelitas acamparam em dois grupos de frente para os sírios e, comparados a estes, pareciam dois rebanhozinhos de cabras. Vendo o tamanho do exército inimigo, Acabe só tinha um pensamento — “fodeu” — mas adquiriu novo ânimo ao ser abordado por outro profeta da nova geração.
— Os sírios dizem que Israel venceu da outra vez porque Javé é um deus das montanhas. Javé manda dizer que isso é uma calúnia da porra, e que vai mostrar pra esses comedores de esfiha quem é que manda nessa merda toda.
Durante sete dias os dois exércitos permaneceram acampados de frente um para o outro, em silêncio e tensão crescentes. Ao sétimo dia alguém deve ter pigarreado e a batalha começou. Os israelitas mataram cem mil sírios só nesse dia. O resto do exército da Síria fugiu para Afeque, onde lhes aguardava uma piada daquelas típicas de Javé: as muralhas da cidade caíram, matando vinte e sete mil soldados. Ben-Hadade teve mais sorte: estava longe das muralhas na hora do desastre, e se escondeu nos fundos de uma casa. Dois dos oficiais contratados foram ter com o rei, oferecendo-lhe sua vasta expertise em negociações:
— Majestade, nós vamos até Acabe para implorar humildemente por sua vida. Ouvimos dizer que os reis de Israel são muito bondosos.
— E eu lá tenho escolha? Vão, vão.
Quando ouviu dos dois oficiais que Ben-Hadade ainda estava vivo, Acabe mostrou-se aliviado. Não era homem de guerra, só queria sossego na vida. Fora forçado pelas circunstâncias e ajudado por um deus furioso, mas em qualquer outro caso preferiria abrir mão de tudo a entrar em guerra.
— Meu irmão Ben-Hadade, vivo? Que maravilha! O que vocês estão esperando? Podem trazê-lo para cá.
Os oficiais voltaram à cidade com o recado. Ben-Hadade veio, desconfiado a princípio, mas relaxou quando viu que Acabe tinha mesmo boas intenções. Depois de um pouquinho de papo furado, partiram para as negociações de paz. Os termos, estranhamente, foram propostos pelo rei sírio, parte derrotada:
— Seguinte, Acabe. Eu vou devolver a você todas as cidades que meu pai tomou do seu. Além disso, sabe aquele shopping em Samaria? Pois bem: hoje mesmo vou dar ordem para desapropriarem um terreno em Damasco para que você construa um desses por lá. Assim todo mundo ganha, hein? Que me diz?
— Excelente, ótimo! Mas conversamos depois. Vá para casa, descanse. Esses últimos dias não foram fáceis.
A postura cordial e de boa índole de Acabe, quase brasileira, não agradou a Javé. Emputecido, deu instruções a um profeta que tinha em alta consideração. Depois de receber o recado, o profeta chamou um de seus companheiros de grupo e fez um pedido estranho:
— Me dá um soco.
— Mané soco.
— Anda, diabo. Me dá um soco. Aqui, ó.
— Vixe, endoidou… Rapaz, bate logo a cara na parede e não me enche o saco.
— INFELIZ! VOCÊ DESOBEDECEU A UMA ORDEM DE JAVÉ, E POR ISSO SERÁ MORTO POR UM LEÃO!
— Uuuuh, uuuuh, que meeeeda! Acorda, rapaz. Esse tempo já passou. O negócio agora é profecia de resultados, manja? Foi-se o tempo da profecia moleque, de pé descalço. O lance é pragmatismo teológico, manja? Ah, vá-te à merda!
Assistindo à cena, os outros profetas reunidos na casa riam de se dobrar. O que se recusara a agredir o colega fez uma saudação irônica e saiu da casa. Os risos, que já esmoreciam, viraram silêncio total depois que os profetas ouviram um rugido, seguido de um grito, seguido de um “humpf”. Quando saíram, viram seu debochado colega estendido no chão, ensangüentado. O leão olhou para eles, fez “humpf” novamente e se retirou. Aparentemente, desprezava as novas tendências da profecia.
Voltaram todos para dentro de casa. O profeta escolheu outro colega.
— Ei! Você aí! Me dá um s… FILHODAPUTA. Hm. Caralho, doeu. Bom. Obrigado. Deus o abençoe. Porra.
O profeta enrolou um pano no rosto para não ser reconhecido e foi para a beira da estrada esperar o rei passar. Quando Acabe ia passando, o homem começou a gritar:
— Me entregaram um prisioneiro no meio da batalha! “Toma conta dele, rapaz”. Toma conta… Tanta coisa pra fazer e eu vou tomar conta de vagabundo? Fui cuidar da minha vida e, quando vi, o safado tinha fugido. Agora dizem que eu vou ter que pagar 35 quilos de prata de multa, senão me matam. Pode um negócio desses, majestade?
— Se pode? Claro que pode! Te deram ordem para vigiar o prisioneiro e você deixou o cara escapar? Você merece morrer mesmo.
— Arrá! — o profeta deu um pulo e arrancou o pano do rosto — O senhor também, rei Acabe, deixou escapar o homem que Javé ordenou que o senhor matasse. Agora, diz Javé, o senhor vai pagar com a vida, e seu povo será destruído.
— Mas… Mas ele nem me falou nada de matar o rei!
— Ih, sei de nada. Só entrego o recado.
O profeta voltou para a casa dos profetas, feliz pela missão cumprida. O rei, por sua vez, voltou para Samaria chateado, com raiva e resmungando. Se mais alguma coisa o aborrecesse, era capaz de cometer uma loucura.

17 comments

  1. Marcorélio: eu tenho mó medo de você! Menino, me senti vendo um filme agora!!! como é que pode? Você estava lá? By the way: eu queria escrever bem como você… parabéns, querido, é tão bonito a gente ver alguém que manuseia a língua com essa maestria toda! No duro.

  2. Marco,
    realmente sua habilidade é fantástica. Você deveria reunir seu material, entrar em contato com a Globo e tentar trabalho como redator do Casseta e Planete ou outros humoristicos, porque além de escrever bem, faz isso com muito humor.
    Aproveita cara!

  3. Salve! Conheci seu site há uns dois meses e ele já faz parte de meu roteiro diário de leituras. Hoje coloquei um link lá em meu blog. Sei como é difícil atualizar às vezes, com a correria da vida, mas torço para que você consiga escrever mais e com mais frequência por aqui. Abração!

  4. !!!!!KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK!!!!!
    Basicamente, é só o que eu teria pra dizer. Mas, cara, não posso deixar de tecer breves comentários.
    É simplesmente hilária a última das missivas enviadas por Acabe. É como se o próprio Javé a escrevesse. Muito bom, também, o trecho de ‘Canto de Ossanha’. Veio bem a calhar…
    Sério mesmo, cara, você ainda me mata de rir…

  5. Eu acho que o povo do meu serviço contratou os serviços da Siriric…, quer dizer, Siriana. A cada quinze dias temos reuniões enfadonhas e o pior, começam com sempre com um “devocional”, onde é feita a leitura (e os comentários pelos “crentes” de plantão) de um trecho da Bíblia (pena que não é a “Sacaneada”).

  6. O que são consultores?
    São pessoas que nao conseguem arrumar um emprego decente de jeito nenhum, tentando obrigar-nos a fazer coisas que não queremos, utilizando-se para isso de uma linguagem que nós não entendemos…
    Desculpem aí os consultores…

  7. Caralho!!!! Teu site é muito show!!! Li sobre o teu site na Época (capa “Blogs”). Só agora entrei. Adorei! Especialmente as sátiras sobre a bíblia. Já fui pastor batista. Hoje sou ateu. Também dei entrevista à Época há dois anos. Se quiser dar uma olhada, digite “Libertando-se do Armário” no Google e acesse a matéria.
    Continue fazendo esse bom trabalho!!!!
    Abração e ótimo 2007!
    Sergio Viula

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