Salomão pede sabedoria

(I Reis 3)
Depois de acabar com a vida dos que poderiam atrapalhar seu reinado, Salomão resolveu tratar de política exterior. Para isso, entrou em acordo com o faraó. Os faraós, que por séculos haviam sido os monarcas mais prestigiados da região, estavam em declínio. Na época de Psusennes II, esse aí que entrou em acordo com Salomão, as terras dominadas pelo faraó restringiam-se ao delta do Nilo, enquanto as terras altas ficavam sob domínio dos sacerdotes de Amon, com sua capital em Tebas. Psusennes II, cuja subida ao trono coincidiu mais ou menos com a morte de Davi — muito próxima, portanto, da coroação de Salomão — vivia sob constante pressão dos verdadeiros donos do Egito por um lado, e das tribos nômades do deserto por outro. Desse modo, a aliança com o rei de Israel, cujo território era estratégico por sua localização, vinha em excelente hora. Assim, Psusennes II e Salomão entraram em acordo, com o primeiro dando a mão da filha em casamento ao segundo. Salomão pegou sua mina e levou-a para morar consigo em Jerusalém.
Jerusalém. O plano de Salomão era meio malufista: transformar a capital israelita num canteiro de obras. Pretendia construir um palácio para instalar-se com seu futuro harém, muralhas reforçadas em volta da cidade e um templo para Javé. Sim, porque desde o Êxodo o povo adorava a Deus no Tabernáculo, que não passava de uma barraca de acampamento com mania de grandeza. Muito útil para um povo que peregrinava pelo deserto, mas um tanto anacrônico para uma nação há muito estabelecida. Além do mais, nem todo mundo tinha paciência, ou recursos, ou tempo, ou tudo isso, para ir até o Tabernáculo. Então o povo oferecia sacrifícios sobre os morros, o que era um problema: sem um sacerdote por perto nem todo o aparato da religião oficial, como ter certeza de que estavam mesmo adorando a Javé, e não a outro dos muitos deuses dos países vizinhos. Até Salomão, que devia dar o exemplo, oferecia seus sacrifícios dessa forma heterodoxa. E foi depois de um dia de particular fervor religioso que a vida do rei mudou.
Salomão fora a Gibeão, onde ficava o altar mais famoso de todos. Nesse dia ofereceu mil holocaustos. Ao fim do dia, exausto, o rei resolveu passar a noite ali mesmo. Num sonho, Javé veio falar com ele:
— Salomão!
— Coé?
— SALOMÃO!
— Quem é, mano? Tá me tirando?
— Sou eu, Salomão. Javé!
— Javé??? Não me zoa, ô!
— Sou eu, Salomão.
— É tu memo?
— SOU, PORRA!
— FAAAAAAAAAAAAAAAAAALA, JAVÉ! Pela órdi?
— Hein?
— Tudo céito, mano?
— MANO É UM CACETE! EU SOU É DEUS, TÁ ME OUVINDO? DEUS!
— Ô, foi mal aê. Fala, Deus, que que manda?
— Vim aqui lhe fazer uma oferta que não costumo fazer a ninguém, Salomão: faça um pedido e eu o atenderei.
— Pô, tipo gênio do Aladim? Da hora…
— MANÉ GÊNIO! ME RESPEITE!
— Sussa, Javé, sussa. É sério memo esse papo aê?
— Sim. Peça o que quiser, qualquer coisa.
— Viiiiiiiiiiiiiiiiiiiiixe, bem lôco. Então seguinte, Javé. Vô lançá a real: tô ligado que cê era mó truta do meu véio, e que ele nunca vacilou aí contigo. E aí cê até me deixou ficar no lugar dele, e eu ainda sou pivete, tá ligado? Tipo, achei da hora mesmo. Cê é firmeza, Javé, na boa memo. Cê é o Grande Truta das Quebrada Celestial, tá ligado?
— PÁRA DE ME PUXAR O SACO E PEDE LOGO!
— Tá, tá! Seguinte: o que eu mais quero memo é ser um sujeito ligêro.
— Ligeiro? Pra quê, Salomão? Israel vive em paz agora, você não vai precisar correr nem nada assim.
— Xi, véio, cê não tá ligado. Eu quero ser ligêro, mano. Espéito, manja?
— Hum. Então você quer sabedoria, é isso?
— Aê, Javé. Porque, se liga: se eu não for ligêro, como é que vou cuidar da parada toda, Israel, Judá e pá? Se eu vacilo, é mó embaço.
— Salomão, seu pedido me surpreende. Eu esperava que você me pedisse riquezas, ou uma vida longa, ou a morte dos seus inimigos. Em vez disso, você pediu sabedoria para governar com justiça. Vou te dar isso, você será o mais sábio dos homens, mas também vou conceder o que você não pediu: por toda a vida, você será um homem muito rico e, se andar comigo como andou seu pai Davi, terá uma vida longa.
— VIIIIIIIIIIIIXE! FIRMÃO, MANO!
— MANO É UMA PORRA!
— Aê, foi mal.
Vejam como é a malandragem: dando uma de humilde e pedindo a Deus sabedoria, Salomão conquistou o respeito de Javé e muito mais do que aquilo que pedira. Malandro é malandro mesmo. Quando acordou, Salomão se deu conta de que estivera falando com Deus. Então levantou-se, voltou a Jerusalém, e lá ofereceu sacrifícios como se esperava que o rei fizesse: na Tenda Sagrada, sobre o altar. Depois disso, ofereceu uma festa para as autoridades de Israel.
Dias depois, a sabedoria de Salomão foi posta à prova. Aconteceu que duas prostitutas chegaram logo cedo para uma audiência com o rei. Vinham discutindo aos berros, e foi difícil fazê-las sossegar. Mas finalmente estabeleceu-se alguma ordem, e uma delas dirigiu-se ao rei:
— Majestade, eu e essa outra aí moramos na mesma casa. Meu filho nasceu há pouco tempo, e três dias depois ela também teve um filho. De noite o filho dessa piranha morreu, porque ela tava bêbada e rolou por cima do moleque. E sabe o que ela fez, majestade? Veio devagarinho pra junto da minha cama e trocou as crianças!
— É MENTIRA!
— MENTIRA NADA! Acordei de manhã pra dar o peito ao menino, e estava morto. Mas eu não sou besta, conheço meu filho.
— VACA! COMO VOCÊ É CARA-DE-PAU! Majestade, o filho dessa mulher aí morreu e ela trocou com o meu.
— O filho é meu! O seu tá morto!
— O SEU tá morto!
— O SEU!
— O SEU!
— O S…
— CALAI-VOS!
Fez-se silêncio absoluto no recinto. O rei passara os últimos dias muito compenetrado, e era a primeira vez que falava em público depois da festa em Jerusalém. Ninguém esperava ouvi-lo falando daquela maneira.
— Calai-vos, eu lhes imploro! Deixai-me-vos que entenda a situação e assim a compreenda e tenha-lhe dentro de meu entendimento. Então tu dizeis que o filho é teu, e o que da outra está morto?
— Sim!
— E tu, por conseguinte, clamais que o defunto filho da outra é?
— Isso!
— Eis que vejo aí grande crocodilagem. Descolai-me uma espada, ó, mano.
O empregado trouxe a espada, e o rei ofereceu sua solução:
— Só há uma maneira de resolver esse imbróglio: que a criança seja partida no meio, e cada qual fique com uma metade. Resolve-se a parada. Estais ligados?
No mesmo instante, uma das mulheres lançou-se aos pés do rei, chorando:
— Não, majestade! Não faça isso! Dê o menino à outra, eu não ligo, mas não mate o meu filho!
A outra, porém, mantinha-se firme:
— O rei está certo. Decisão muito justa. É isso aí.
Vendo a situação, Salomão deu seu veredicto:
— Dizeis que devo partir o infante ao meio, qual mortadela? És uma vacilona, ó filha da maldade! Dai à primeira o menino, pois está claro que ela pariu-lhe de suas próprias entranhas.
No dia seguinte, não se falava de outra coisa em Israel: apesar do linguajar mais estranho do que antes, o rei demonstrara grande sabedoria ao julgar uma causa difícil. Com o respeito adquirido após o episódio, Salomão podia finalmente dedicar-se a reestruturar a nação.

54 comments

  1. sem comentários! é o melhor personagem até agora, junto com moisés. é o bicho. jacaré te abraaaaaaaaaaaaaaaça, marcão

  2. “— Eis que vejo aí grande crocodilagem. Descolai-me uma espada, ó, mano.”
    Maravilha!!! De repente me parece que Salomão ocupa pouco espaço na bíblia e essa história vai acabar logo. Uma pena.

  3. Olá Marco,
    Ótimo post, concordo com aninha, é um dos melhores personagens até agora. Gargalhei com “o plano de Salomão era meio malufista”. Muito boa mesmo. Fala aí véi, nínguem melhor que você para torcer a língua até parecer um autêntico mano. Quando leio escuto na minha mente quase que a voz do Zé Pequeno. Efeito impressionante.
    E, sem dúvida, o anacronismo dá um efeito espetacular.

  4. Muito bom, parabéns! Me fez lembrar os tempos nos quais eu andava com a rapadura debaixo do braço. Acho que tinha uns 10 anos quando ouvi essa história na igreja. Muito boa a mistura das duas formas de fala do personagem. Valeu!!!!!

  5. HuaHaha-HuaHaha-HuaHaha-HuaHahaaaaa!
    Cara, muito bom o lance da mistura do “malandrês” com o castiço, o melhor foi:
    “Eis que vejo aí grande crocodilagem…”
    Esse foi o melhor de todos.

  6. Eu suspeitava que depois de pedir sabedoria, Salomão iria ficar com um linguajar culto, mas assim tá muito mais foda.
    Demais mesmo!

  7. “FAAAAAAAAAAAAAAAAAALA, JAVÉ! Pela órdi?” e “Cê é o Grande Truta das Quebrada Celestial..” são as melhores, mto bom.. abraço marco

  8. Eu também acho que vou rir muito do Salomano. Não vá ter pressa nem nada com ele, hein? Escreva bem devagar, com capricho. Quero que dure muito!

  9. apesar de Salomão ter sido a causa de grandes problemas na minha vida na escola de freiras, eu adoro essa história da criança partida ao meio e esse Salomano está impagável. Alguém pediu, e eu concordo: tenha calma com ele, que eu tô adorando.

  10. “Deixai-me-vos que entenda a situação e assim a compreenda e tenha-lhe dentro de meu entendimento.”
    HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
    Caralho, Marco. Sifudê.
    Isso tá genial!

  11. Seu chicoteia, esse foi particularmente inspirado. Você se superou. Dos últimos, digamos, 10 capítulos, acho que esse foi o mais engraçado e com umas sacações ótimas. Parabéns.

  12. Marcorélio, meus parabéns!
    O emprego novo tem te feito muito bem, estás conseguindo dar uma personalidade genial ao Salomão.
    continua assim! (to parecendo professor de primário hehehe)

  13. E aí, marco, blz? Cara, vc tá legal? Nunca vi puxarem taaanto o teu saco como nesse último capítulo… se fosse comigo ficava sem conseguir andar duas semanas.

  14. claps, claps, claps, muito muito bom, todas as frases citadas nos comentários eu ia citar tbm, ou seja, estamos todos de acordo que vc tá fodão hein…
    Bjus, Flávia

  15. Seguinte mano o Salma ficou muito estranho com este novo linguajar que mistura erudição e linguajar chulo de rua mesmo assim muito 10 gostei demai e estou bolando o meu blog e aguardo a sua ajuda para divulgação aqui deixo minha benção e agora sou Pai Absinto Saravá

  16. Ha, isso tá cada dia melhor! Eu estava mesmo com medo que o Salomano perdesse toda aquela linguagem moleque, a linguagem arte, a malemolência da comunicação…. mas vejo que meus temores eram infundados…

  17. Cara, esse trecho do Salomão pedindo sabedoria foi a coisa mais engraçada que eu já li, desde o livro do Dom Quixote.
    É demais!!!!
    Dá pra ler muitas vezes.

Deixe uma resposta para Marcelo Paiva Cancelar resposta