Toninho

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Era uma manhã muito bonita de segunda-feira na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Na sala de coleta eu assistia ao meu sangue escorrendo por dentro de uma mangueirinha. Mais um exame dissera que meu pobre sangue estava contaminado por um retrovírus chamado HTLV-1, primo-irmão do HIV, o qual iria me matar de leucemia em alguns anos, após deixar-me cego e paralítico. Meses depois eu viria a saber que fora um erro de diagnóstico, mas então eu já ia para o terceiro exame, e pensava no que fazer da pouca vida que me restava. Enquanto esperava, ouvi lá fora aplausos, gritos de crianças e um acorde de violão-tenor. Não precisei ouvir mais nada; apenas um homem tocava violão-tenor no Brasil: era o Sr. Antônio Gomes Neto, mais conhecido como Toninho, dos Demônios da Garoa. Eles estavam lá fora fazendo um show para as crianças internadas na Santa Casa. Eu, que nunca vira uma apresentação dos Demônios, não podia sair dali para ir vê-los. Tocaram só umas três músicas, e quando eu saí não havia nem vestígio de crianças ou Demônios.
Corta para um fim de tarde de algum dia de 1999. Andava pela Rua do Arouche de volta do trabalho quando vi do outro lado da rua aquele senhor. Vinha de cabeça baixa, concentrado nos próprios passos, e mantinha os braços meio abertos, como se isso o ajudasse a manter o equilíbrio. Atravessei a rua para cumprimentá-lo:
— Com licença… Desculpe incomodar, mas o senhor não é o Toninho, dos Demônios da Garoa?
Ele fez uma pausa antes de levantar a cabeça. Quando olhou para mim, foi com uma expressão de tamanha surpresa que chegava a ser cômica.
— Sou sim, filho.
— Ah, eu sabia! O maior violonista-tenor do Brasil!
— Claro, sou o único!
— Sou fã de vocês, seu Toninho.
— Obrigado, muito obrigado. Estou indo agora ali na Santa Casa, preciso ver esse braço aqui, sinto uma dorzinha chata, aguda…
Andamos lado a lado por algum tempo, ele falando dos problemas de saúde que a velhice lhe trouxera de presente, e eu extasiado por estar ao lado de um ídolo.
Depois desse dia nos encontramos ainda algumas vezes ali no centro de São Paulo. Cumprimentávamo-nos discretamente como velhos conhecidos. Uns anos depois o encontrei novamente, dessa vez numa apresentação dos Demônios da Garoa no Bar Brahma. Ele estava sentado próximo ao lugar onde eu estava, e eu não resisti: mais uma vez cometi o crime da tietagem e pedi a ele que tirasse uma foto comigo.
Sexta-feira à noite minha mãe me esperava com a notícia: Toninho havia morrido. Senti uma dorzinha chata e aguda aqui dentro: ele nunca soube, mas esteve comigo num dos momentos mais tristes e solitários da minha vida besta.

28 comments

  1. Que coisa triste! Erros médicos acabam com a gente. Que bom que era um diagnóstico errado, mas que merda, será que eles não pensam no desgaste que é achar que a vida te escapa, seja a sua ou de alguém da sua família?
    Fiquei triste qdo soube da morte do Toninho também.

  2. Interessante você mencionar o Toninho. Meu pai adorava esses caras, e eu cresci ouvindo – e me divertindo com – os Demônios. Isto pode soar um pouquinho mais impressionante se você considerar que eu não gosto de MPB em geral, e samba em particular … Mas deles, ah, deles eu gosto, sim.
    Ah, sim – ainda bem que foi “apenas” um diagnóstico errado. Felizmente você ainda está conosco.

  3. Potz…
    O erro médico é horrível, mais veja só. Até valeu a pena, vc teve a oportunidade de conhecer essa especial figura(que além do mais, tem um belo apelido!)
    Triste sua morte.. =/ (alias nenhuma morte é feliz…ou é?)

  4. :/
    Pode parecer uma idiotice minha Marco, mas eu não ligo. É uma surpresa te ver falando dos Demônios. Tanta gente “renegando” (mas não é bem essa a palavra) coisas nossas, ainda que boas, e, de repente, vejo que você também gostava do Toninho, de todos eles, enfim. Encontrei esse senhor uma vez, no Mercado, comendo um pastel de bacalhau que se vende por lá. É um autógrafo que guardo com carinho.
    A minha surpresa surgiu por causa desse povo que renega e tal, e não porquê eu duvide do seu bom gosto – isso fique claro.
    Abraço.

  5. Triste quando morre alguém que admiramos. Tudo bem que a morte “é a única amante absolutamente fiel”, mas ela é desagradável à beça.
    Desculpe mudar de assunto, mas já esteve neste endereço? http://www.carpinejar.blogger.com.br
    Gostei muito do texto e queria compartilhar com você, uma vez que admiro seu estilo de escrever.

  6. Parabéns Marco, por ter a saudável cara de pau suficiente pra abordar quem você admira. Acho que todo mundo devia ser assim, desde que com o desconfiômetro devidamente ligado…
    PS: Alguém já falou que você tá a cara do Agepê ? (Sorry, não consegui evitar…)

  7. Ocê divia tê punhado um recado na porta da sala di coleta, dizendo ansim:
    Ói, dotô: num deu pr’isperá o inzame acabá. A veiz que morrê num tem importância, num faz mar. É qui os Demônio da Garoa tão tocando ali fora, antão eu vô í lá iscurtá pruquê depois que nóis vai, depois que nóis vorta, e vai qui nesse mei’tempo os demônio some.
    Assinado em cruz porque num sei escrever Marcurélio.
    quais, quais quais quais, quais quais quais…

  8. Olá,
    História muito intrigante, esses são os sinais que a vida nos manda. Poucas pessoas, palavras, ações, nos confortam em horas difícieis.
    Mas me restou uma dúvida, você melhorou do tal HTLV-1, ou o diagnóstico era furado mesmo?
    Abraços.

  9. vi uma mini reportagem na Folha esses dias comentando a morte do Toninho e tenho que dizer: a matéria não teve nem a metade da sensibilidade do seu post.Manda os seus escritos lá pra Folha,manda…

  10. seu sorriso tá bonito eheh. quanto tempo durou o tratamento ortodontico? vou ter que usar aparelho fixo, mas acho uma vergonha usar aparelho com 20 anos… tomara que seja por pouco tempo :~

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